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Mai23
O Conde de Ferreira
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Há 11 anos José Capela publicou o livro "Conde de Ferreira e Cª: Traficantes de Escravos", colecção de biografias de comerciantes de escravaturas ("negreiros") do século XIX. Quando ele morreu deixei no "Canal de Moçambique" esta muito breve recensão a esse livro (e a outro que ele publicara no ano seguinte, uma verdadeira pérola: "Delfim José de Oliveira..."). Foi uma espécie de homenagem minha, pois Soares Martins (de pseudónimo Capela) fora muito importante na minha vida e tinha (e tenho) para ele uma enorme gratidão. E um grande respeito intelectual, também (mas não só) por ter passado décadas a vasculhar documentos e a publicar, sem pejo nem adornos, sobre como o comércio de escravos foi estruturante no pré-colonialismo português em Moçambique. E como isso moldou as características do subsequente regime colonial - apesar das tralhas lusotropicalistas e lusófonas que vão subsistindo, já para não falar das dulcificadas invocações dos "bons velhos tempos", que tanto misturam as normais (e respeitáveis) memórias individuais de juventude com pronunciamentos de cariz sociológico. Enfim, talvez com um bocadinho de exagero, mas cheguei aos 50 anos com a sensação de que se tive algum "maître à penser" acabou por ser ele... sem que isso possa macular a sua memória devido às atoardas que vou botando. Mas já estou a divagar, avante,
Nesse "Conde de Ferreira..." Capela deixou explícito que vários desses comerciantes de escravos regressaram do Brasil mais ou menos após a ilegalização da actividade e se integraram na sociedade do novo regime liberal (e o financiaram), usando as doações beneficientes para ascenderem socialmente. Nisso também patrocinando instituições que ainda existem (misericórdias, hospitais, etc.).
Sei agora por intermédio do historiador João Pedro Simões Marques que aconteceu o que eu esperava há já anos - os cirugiões plásticos da História descobriram o Conde de Ferreira (tão presente por esse Portugal afora, ainda que quase ninguém saiba quem foi). E o "Público" (claro) já está em ardores de expurgar as tais instituições dessa memória...
Eu continuo na minha, ao que consta na documentação da época (ainda que um pouco posterior) o malvado D. Pedro I não só castrou um aio devido aos seus ilegítimos actos sexuais (um antecessor do prof. Ventura e seus acólitos, está visto) como matou por mãos próprias uns esbirros do seu pai (e terá até comido parte do coração de um deles, a crer ou no cronista ou na colecção de cromos a que tive acesso). E apesar de tudo isso, que tanto agride os actuais valores, continua ali, plantado no centro do nosso Mosteiro de Alcobaça, como símbolo de amor, ainda por cima. Não será, mesmo, de acabar o que os franceses começaram, e rebentar-lhe com a tumba? Ou, pelo menos, retirá-la dos nossos olhos, evitar aquele elogio à memória da ditadura, da pena de morte e da castração por infidelidade amorosa (invertida ou não)?