O Hino do Facebook: "Act Nice and Gentle"
(The Kinks "Act Nice And Gentle")
Ontem a simpática rubrica da SAPO de Destaques realçou este postal, dedicado aos tão habituais abrasivos comentários anónimos nos blogs, e aventando o seu hipotético efeito inibidor, indutor do abandono blogal - e ainda mais interessante é o texto dado que se trata, explicitamente, de uma reflexão sobre bloguismo não político, o qual aparentaria comportar um registo mais plácido nas opiniões recebidas.
O assunto é velho como o mundo (blogal), e já em 2006 Pacheco Pereira abordou na imprensa o ambiente do comentariado anónimo nos blogs, suscitando críticas que recorriam a uma (pobre) argumentação, a qual se veio mantendo entre o cada vez mais esconso reduto bloguístico. (Então transcrevi artigo e respostas aqui). Blogando há 18 anos muitas vezes me referi a este tema, tanto no meu velho ma-schamba como, mais recentemente, nos colectivos És a Nossa Fé (no qual escrevi) e no Delito de Opinião. E foi neste último que, há poucos meses, deixei uma súmula, nada ensaística, do que penso desse ambiente, o postal "Têm os Anónimos Mães?".
Mas é relevante a grande diferença entre a interlocução nos blogs e na outra rede social escrita verdadeiramente dialogante que uso, o Facebook (sobre o distraído reducionismo de "redes sociais" ao FB - e ao Twitter - escrevi aqui). De facto, e por mais que haja - em particular entre bloguistas - críticas ao Facebook, seja por lhe invectivarem uma superficialidade temática e formal, seja pela denúncia das esconsas práticas da empresa, neste âmbito da interacção dialogante o ambiente daquela rede social é bem mais plácido. A razão é simples: a menor incidência de anonimato, ainda que seja evidente a existência de perfis falsos, associada à possibilidade de "bloquear" interlocutores. Mas é mesmo a menor presença do anonimato que em muito reduz a tendência para a agressividade espúria que se nota em tanto do comentariado blogal, o qual acolhe uma espécie de catarse digital das angústias gerais, como se nós bloguistas tivéssemos funções de "cuidadores" morais dos desapossados psicológicos...
Não é assim no Facebook. Nota-se ali uma tendência plácida. Também esta será um pouco artificial - não sendo um reflexo do estado geral -, assim servindo a plataforma para que cada um componha a sua pose pesssoal, a sua "personagem", como indivíduo atento, simpático e até gracioso, "amável" na sua distribuição de gentilezas ("likes") e saudações ("comentários") - tendo há anos o sistema-FB retirado a função de aceno ("poke").
É notório que há no FB (português e moçambicano - que são os que acompanho) alguns intervenientes, personalidades públicas, que têm murais muito concorridos e com interacções por vezes polémicas - principalmente no domínio da política (o futebol é um "mundo" específico...). Mas na maioria dos casos, a nossa, o conteúdo das interacções é simpático. E essa simpatia é reforçada, balizada, pela atenção que os intervenientes vão dando aos assuntos abordados. Ou seja, se um assunto é hipoteticamente polémico os "amigos-FB" por ele passam, ou não lendo ou não dando sinal disso. Se o tema é "pacífico", na tal placidez convivencial, é acolhido com satisfação.
Ilustro com o meu caso: este blog Nenhures é pouco acedido, mas o meu mural de Facebook é algo agitado. Ultimamente tenho escrito vários postais sobre refeições, restaurantes, pequenos passeios, sucessos familiares ou traços mais ou menos patuscos do quotidiano, "la joie de vivre" acantonada no remanso envelhecido. Os quais são acolhidos com simpatia, de modo sonoro e visível. Outros dias, de outros humores, deixo postais algo opinativos, ecoando a minha "visão do mundo" ou do "estado da nação", os meus resmungos. E a mesma gentilíssima rede de amigos-FB flana sobre esses textos... Sem contestação, sem críticas, sem polémicas. E, evidentemente, sem insultos. Apenas flana... Eu assumo a mesma atitude, não contesto em murais alheios as opiniões que possam ser sensíveis - posso propor alternativas musicais, recomendar outro restaurante, apontar temperos diferentes, brincar com resultados futebolísticos, etc. Mas não enfrento algumas opiniões substantivas sobre temáticas delicadas, ideológicas ou políticas, e muito menos religiosas.
Grosso modo, reina no FB um saudável ambiente, que também tem notórias dimensões de solidariedade moral (o acompanhamento das doenças e o sector necrológico são crescentes). E o qual se reflecte, no registo opinativo, na consagração de um "não chateio, não me chateiem", ou seja, não impinjo opiniões polémicas, não me impinjam as vossas... Exemplifico com dois recentes postais meus: emocionado, botei um postal sobre Rushdie, assunto relevante e texto crítico que (digo eu) ficou bem conseguido, o qual passou quase incólume à atenção dos "amigos-FB"; depois, divertido, botei um postal sobre os bilhetes para o espectáculo dos Coldplay, texto escrito de rajada sobre um mero "fait divers", o qual recolheu imensa atenção. É uma boa súmula das simpáticas interacções no Facebook. Tão distante, tão diferente, da destrambelhada malvadez anónima das catacumbas blogais.
E é por isso que concluo com uma proposta: o hino do Facebook deveria ser esta já velha canção dos The Kinks, "Act Nice and Gentle". Pois ali, até implicitamente através destas práticas, tantos entoam "(...) Just show some civility / Act nice, act nice and gentle to me / (...) I'm not difficult to please / Act nice and gentle to me / (...) S'throw away your false eyelashes / Act nice, act nice and gentle me / Holdin' my hand /Understand / Act nice / Act nice, act nice and gentle to me".
E isto, o conteúdo desta cançoneta, ao contrário do que muitos podem querer clamar, é o fundamental. Ainda que às vezes nos possamos (falo por mim) disso esquecer.