20
Set23
O "Kuxuva", restaurante goês em Maputo
jpt
Sou mesmo avesso ao tétrico "saudosismo", aquilo do "antes é que foi bom", no fundo nada mais do que um "ó tempo, volta para trás". Que é inibidor, acima de tudo porque embrutecedor, pois sendo a memória selectiva sempre ela nos conduz a pensar e sentir o passado depurado das pústulas dolorosas que teve, enquanto maximizamos as leves actuais cicatrizes que delas nos sobraram. Sim, claro que se preferiria ser mais-novo do que este agora mais-velho, mas isso é outra coisa, tem a ver com as cáries, o desentumescimento, artrites e radiculites, o desmemoriar, a mouquidão, etc. E, acima de tudo, a inadjectivável morte, a alheia e até a nossa próxima, cada vez mais próxima.
Já a "saudade" é outra coisa. Falo da real, não a metafórica "do futuro", que isso sempre me pareceu trinado de poetice. É legítima essa "saudade" por alguns dos nossos que tão bem nos fizeram sentir, entusiasmando-nos, e já não nos estão próximos: aquela antiga e bela namorada agora decerto que já vetusta hárpia, o querido amigo depois desavindo, afinal um traste que é melhor nem encontrar, os ídolos que nos constituíram gente, a beleza de Vítor Damas e Rui Manuel Trindadade Jordão no verdadeiro José de Alvalade, Bernstein a ensinar música na televisão, o cego Borges a cirandar pelo mundo... E, mais do que tudo, pelos nossos ascendentes, naturalmente já findados, a argúcia culta da minha avó materna, conjugada com a boa mesa (ou assim me sabia) que comandava, o Senhor meu tio, homem verdadeiramente marcante. E, claro, os pais: o que não daria eu para me sentar aos 59 anos a falar com eles nos seus 60? Agora, "saudade" do passado tal qual ele foi, como seria bom voltar? Nada disso, por demasiado lânguido, que um tipo saudoso fica um odalisco.
O que louvo é a "saudadezita". Isso do inesperado, o de súbito ser assomado, nisso mimado, por excertos do passado, laivos do vivido, breves odores, sumarentas risadas, vislumbres, aquela carícia afinal indelével, acordes, sabores, estes até indiscerníveis... Sim, "saudadezita" que não diminutiva, bem pelo contrário, engrandecedora, pois resquícios alentando-nos no refrescar do necessário "avante".
Essa "saudadezita" que me invadiu ao ler este artigo. Pois durante quase duas décadas fui cliente regular do "Petisco", o célebre restaurante "goês" de Maputo, casa modesta, pois sem ademanes, cozinha familiar assente em legado de gerações, ambiente gentilíssimo, comida deliciosa - e decentemente barata. Lá fui inúmeras vezes, em família, junto a amigos, mesmo em momentos da vigorosa indústria de seminários, e até a festas de aniversário da petizada, naquela minha era de pai algo recente. E quantas vezes a ir buscar comida, o "take-away" obrigatório, nisso sempre me abastecendo da magnífica panóplia de achares e chutneys, e de piripiri. E, como é óbvio, filiando-me nas suas chamuças, ali âncoras da minha adesão à ideologia chamucista. O "Petisco" foi-me paisagem vivida, calcorreada. Sentida.
Há algum tempo soube que fechara, devido a razões várias - entre as quais o embate sofrido com a pandemia Covid. Muito o lamentei. Mas sei agora que a industriosa família se reorganizou, apesar da dolorosa perda entretanto sofrida. E que agora abriu um novo restaurante, nas imediações do anterior (na Mártires da Machava), mantendo-se fiel ao reconhecido perfil gastronómico: a cuidadosa continuidade da tradição goesa, já de si uma mescla de séculos, mas ali completando-se na harmonia com os saberes circundantes.
É o "Kuxuva" - "saudade" em changana ("mas "saudade" não há só em português?", clamarão os das versalhadas avulsas). E a esta "Saudade" eu prezo, pratico-a. E nesta madrugada deixo-me pensar, não nostálgico mas viçoso, que se chegar a Mavalane "te" direi "leva-me directo à Mártires da Machava", "ao Kuxuva". E alambazar-me-ei.