O Podcast Mudo (3): adenda a Malangatana
Reincido sobre o mais-velho Malangatana pois tendo eu botado uma memória que dele retenho logo ontem uma minha amiga-FB teve a gentileza de me narrar o seu episódio com o Mestre. Breve história mas tão dele denotativa. E também sintomática de outros tempos (felizmente) passados:
Naquele 1971 (sim, 1971...) a minha correspondente embarcara na Portela de Sacavém no avião da TAP que faria a ligação Lisboa-Lourenço Marques. Ainda imobilizados na placa foi sondada em surdina pela hospedeira: uma qualquer passageira - "senhora" dir-se-ia naquele tempo mas não agora - reclamara-se incomodada por seguir ao lado daqueloutro viajante, cujas características somáticas lhe desagradavam. E por isso lhe perguntava se se importaria ela de uma discreta troca de lugares, assim ombreando ao longo do voo com o tal indivíduo, algo a que ela se aprestou sem delongas - e nisto não posso deixar de presumir que a hospedeira tenha exercido o seu experimentado olhar clínico sobre a mole de passageiros, em busca de alguém menos rústico. "Sorte a minha" diz-me ela agora, pois durante o longo trajecto aéreo - presumo que naquela época ainda com escalas - o homem se apresentou, disse do que vinha e nisso se gerou convívio. Era o Malangatana, claro, regressando a casa após a estada em Lisboa financiada pela Gulbenkian - apesar de já ter passado anos na temível prisão da Machava (padecimento que veio a ilustrar) e de nesse mesmo ano ter sido outra vez preso. Ao fim daquela continuada conversa, já em Mavalane, a jovem recebeu este presente - um gesto que nós podemos adivinhar inscrito no continuado "charme" que Malangatana exalava mas também, é evidente, como um carinho à jovem pelo seu acto de ali ombrear, mostrando-se avessa à pestífera arrogância que ainda grassava entre tantos dos seus compatriotas. Deixou-lhe assim este agrado, o "sim meu irmão porque a voz difusa [da] criança é uma flor na boca do nosso dia a dia, 24.9. 71", que seria emoldurado logo que chegado a casa.
Décadas passaram e o então já consagrado Malangatana veio expôr ao Casino Estoril. "Morava perto e fui vê-la. Discretamente meti na sacola o quadrinho. Diante dele, discretamente mostrei-lho. Que alegria!, dizendo-me "Mas tu guardaste isto quando eu ainda não era conhecido?"..., sua tão típica reacção que se pode imaginar, até ver e escutar.
Sorrio com o pequeno episódio e peço autorização para o divulgar, ao que Nené Barbosa logo tem a amabilidade de aceder. Escrevo o postal e deito-me, ainda cedo. Acordo, insone num qual breu mas estremunhado para ler as coisas demasiado densas que me rodeiam. Assim agarro na tabuleta e revejo o episódio sobre Wiriyamu (e não só) da excelente série "A Guerra" que Joaquim Furtado realizou há uma década, algo que vinha adiando há alguns meses. E venho a ter o prazer de rever o bom do padre Zé Luzia - que há anos raspei em Lisboa mas com o qual não privo desde a sua estada em Angoche... - ali entrevistado. E também Malangatana, num breve aparição neste episódio, centrado nas sevícias prisionais sofridas. E acalenta-me esta "dose dupla" dele...
Depois, na alvorada, café e cigarro(s) havidos regresso à "primeira forma", volto a resmungar. Com este centramento actual em Wiriyamu, o massacre, a alusão a alguns outros massacres, as "desculpas" apresentadas ou a apresentar. Sem rodeios, este tipo de discursos sobre os "massacres" (que trazem implícita mas indita a definição quantitativa e qualitativa do que é um "massacre"), é apenas eco das nossas sensibilidades actuais, prontas a horropilarem-se com desmandos havidos.
Não sou pacifista, julgo que há guerras justas e/ou necessárias, sendo defensivas ou mesmo preventivas (e esta última é uma tese complicada de defender). E muitas das guerras são justificáveis no seu a posteriori - vamos encerrar-nos na avaliação da pertinência moral das Guerras Púnicas, da conquista da Gália? E nisso temos a tendência para contextualizar o passado longínquo, isentando-o do crivo moralista, mas de julgarmos o passado recente. Ora as guerras têm um contexto histórico e a sua justificação passa muito pela sua adequação às ideias vigentes, por serem contemporâneas de si mesmas. E, de facto, as guerras coloniais portuguesas - as três guerras de independência africanas - não têm essa justificação. Eram, foram, anacrónicas. Injustas por isso. E ao dedicarmo-nos às desculpas por "excessos" militares ou policiais, aos "desmandos", às específicas violações dos "direitos humanos" ou da "convenção de Genebra", poderemos aliviar as consciências, as tais sensibilidades horripiladas. Mas ao centrarmo-nos nesses episódios estamos, de facto, a caucionar o geral da guerra, aquilo que seguia segundo os compêndios. Ora o que é de "lamentar" (o que não é "pedir desculpa") são as três guerras. E não os massacres.
Mas isso é muito mais difícil. Pois muito mais radical. E também não dá para grandes slogans... Até porque, honestamente, já passou meio século. É tempo de ombrearmos, nos aviões e alhures.