O Podcast Mudo (6): favas em Almada
Vou usar o barco para atravessar o Delta do Trancão. Chego ao cais em cima da hora, leio que está quase de partida, estugo o passo e acorro à bilheteira. Nela se arrasta um casal de decanos, em atrapalhadas delongas, informações descabidas, carteiras confusas, esmiuçar de trocos. Segue-se-lhes uma meã trintona, dotada de aquele tão típico ar de simpática geniquenta, sempre insuportável. A qual embrulha a aquisição do bilhete com o vasculho da carteira, perguntas sobre quaisquer outros assuntos e até sorrisos circundantes. Lá compro o bilhete, um minuto depois do cais ter encerrado. Não é grave, não estou apressado, a favada almadense por ora meu destino não fugirá e nem sequer estou atrasado, além de que no bolso trago um livro e tabaco, antevendo delongas.
Mas irrito-me com estes pequenos egoísmos, os dos "direitos adquiridos", naquilo do "estou à vossa frente, aguentem-se, atrasem-se ao meu ritmo...", a inexistência de qualquer cuidado com os vizinhos, esta forma de cidadania dos filhos de malteses e ratinhos, catarse dos destratos sofridos pelos antepassados. Por isso, e já só diante dos torniquetes, resmungo, em monólogo pouco audível, "raisparta estas conversas na bilheteira". Mas o porteiro - que agora é dito e fardado de "segurança" - ouve-me, sorri, e completa-me "é esta estrangeirada!...". Sigo-lhe que "não, estes chatos até eram portugueses". Ele riu e insiste "mas a estrangeirada fala muito...". Agora sou eu que sorrio e vou lá fora fumar. Mais sorrio por o compatriota suavemente irónico com a tal chata "estrangeirada" ser negro. E como este pequeno desabafo afinal me mostra que isto está muito melhor do que alguns o pintam.