O Segredo de Justiça e a CMTV
(Ante)Ontem, já noite adulta, fui ver em diferido o grande colóquio eleitoral ("a nove"). Nessa rota cruzei a CMTV onde reinava um painel de futebol e vi um sumarento rodapé sobre o "Cartão Vermelho", um processo de investigações judiciais sobre o Benfica que está em voga. Prossegui na demanda da cidadania eleitora mas resguardei a apetência clubística para ali regressar.
Do debate retirei dois galardoados: a medalha de prata foi para João Cotrim de Figureiredo (IL). Talvez devido a algum viés meu, mas quero crer que não só por isso. Pois o candidato foi esclarecedor na sua apresentação e incisivo nas suas críticas, sublinhadas por uma saudável rusticidade na forma como afrontou o incumbente António Costa. Mas o grande vencedor, arrecadando a medalha de ouro da noite, foi Rui Tavares (LIVRE), de longe aquele que mais terá sossegado os seus eleitores e até a outros atraído. Pois Figueiredo havia, nas suas duas primeiras intervenções, utilizado uma sarcástica confrontação com Costa, ao solidarizar-se com o moderador Daniel, dado não se ter dignado o primeiro-ministro a responder-lhe às perguntas que este lhe colocara. E logo de imediato Tavares, assumindo sem rodeios as presumíveis dores de Costa, contra-atacou o dirigente da IL utilizando a mesma formulação, assim esvaziando-lhe a eficácia de qualquer continuidade estilística. Demonstrando assim a todo o país e, em especial, ao seu putativo eleitorado a sua disponibilidade para ombrear com o PS e também a sua competência e o seu afã como guarda-costa retórico, e assim político, do secretário-geral socialista.
Ainda assim, mesmo que amputado dessa sua específica artimanha, Figueiredo logrou outro sucesso ao aflorar o tópico da "maioria absoluta" como garante da almejada, porque sacrossanta, "estabilidade". Costa havia invocado o presidente Sousa como caução de futuras boas práticas socialistas se vier a conseguir esse objectivo eleitoral (o qual julgo muito plausível). Nesta sua investida o representante da IL lembrou, implicitamente, que a degenerescência da ideia de "maioria absoluta" nos foi legada pelo consulado de José Sócrates. E explicitou que no final desse período - sob a tal maculada maioria absoluta, prenhe de más condutas pessoais, arrombamentos do sistema financeiro, afrontas à liberdade de imprensa, tenazes sobre o poder judicial e, talvez acima de tudo, um enorme desplante colectivo -, exactamente nas vésperas do início de processo de "ajustamento estrutural "(sob instruções conjuntas de Bretton Woods e de Bruxelas), aconteceu o 16º congresso do PS. No qual triunfou a moção encabeçada por Sócrates, a qual fora delineada e capitaneada por António Costa. Assim lembrou aos eleitores o quão falsária é a "narrativa" vigente, a de que já in illo tempore Costa se havia apartado do socratismo, ao exilar-se nos Paços do Concelho lisboeta. O que de facto não acontecera, tal como o seu partido não o fizera, como o comprovam os resultados daquele congresso - em que Sócrates foi reconduzido por uns esmagadores 93,3% dos delegados -, e é escarrapachado no montante de membros de governo e seus assessores dos últimos seis anos, bem como de actuais (euro)deputados, que foram fiéis agentes do poder socratista.
Recordo tudo isto porque me lembro não só das incontáveis negações das evidentes aleivosias socialistas daquele período, então produzidas por políticos e fazedores de opinião, estes quantas vezes atribuindo tais indignações dos cidadãos a "ressabiamento" da "direita" (termo que nesse recente então era entendido como sinónimo de "extrema-direita", aliás "fascismo") e a "campanhas" (até "cabalas") urdidas por esconsos interesses malevolentes. Mas memória ainda mais interessante é a do acontecido após a explosão do processo judicial intentado contra Sócrates. Face ao transbordo, de facto civicamente inaceitável, das transcrições de escutas telefónicas para as páginas dos jornais - estes assim dolosamente tornados em receptadores de bens roubados - houve um demorado e veemente coro de reclamações socialistas, indignados com a violação do "segredo de justiça", exigindo até uma luta contra alguma volúpia dita populista, adepta da "república de juízes".
Enfim, enquanto me deixei eu vogar nestas tão recentes memórias, acabou-se o debate entre os nove dirigentes partidários. Fui então ao diferido da CMTV, onde vigorava o painel futebolístico - composto por uma moderadora que julgo filha do grande Rui Águas, pelo antigo jogador José Calado, por um painelista de agressivo ímpeto e carregado sotaque portuense e pelo deputado socialista Pinotes Batista. O debate era interessante, pois demonstrativo da estratégia comercial da estação para potenciar as audiências: durante o longo programa foram sendo enunciados nacos das transcrições das escutas telefónicas a dirigentes do Benfica. E cada revelação era acompanhada do anúncio de que outra viria a ser apresentada durante aquele programa, tendo o último desses três episódios sido acompanhado com a primeira página do jornal "Correio da Manhã" do dia seguinte, ali publicitado como contendo todo o conteúdo das conversas telefónicas que se referiram àquele último assunto.
Concordando eu com escutas telefónicas como auxiliares de investigações judiciais, interrogo-me sobre a pertinência da gravação de conversas excêntricas às matérias em causa e, ainda mais, à transcrição destas. E é evidente que há crime no seu transbordo para fora do âmbito judicial e dolo na sua utilização comercial. Neste âmbito sempre se defende a imprensa - e assim o fez no "caso Sócrates" - invocando um superior "interesse público", que justificará a violação do basilar "segredo de justiça". Ainda assim tenho algumas dúvidas sobre se o tal "interesse público" nacional inclui saber-se se um funcionário do Benfica chama a outro "bufo do balneário", se um antigo presidente do Benfica trata um futuro funcionário do clube como "artista" ou se um vice-presidente do clube discorda da contratação de um jogador de futebol antes de lhe serem feitos exaustivos exames médicos. Enfim, ainda que leigo em matérias de ciências jurídicas, parece-me que isto é uma escandalosa violação do "segredo de justiça" com meros intuitos comerciais e totalmente desprovida de qualquer "interesse público".
É então interessante que nenhum dos próceres socialistas nem algum dos seus correligionários opinadores surja agora discordando destas violações. Mas ainda mais interessante é assistir-se - em pleno período de eleitoral - a um deputado socialista totalmente embrenhado nisto. Pois Pinotes Batista - que presumo ser remunerado nesta sua actividade, ainda que aceite a hipótese de que cumpra em regime pro bono essa tarefa a tempo parcial de comentador futebolístico em estação televisiva comercial - comenta todas aquelas violações do "segredo de justiça" com enfático entusiasmo e minucioso detalhe. E nada se ouve sobre esta mais-do-que-aparente contradição política e moral entre a postura de cidadania exigível a um deputado e o rasteiro e imoral atropelo das regras legais e do sentir democrático. Nem do seu secretário-geral, nem do presidente ou de algum órgão disciplinar (ou "deontológico") do seu partido. Pois decerto que aceitarão como relevante o facto do homem ser "anunciado na tv", os ganhos de visibilidade nisto de ser comentadeiro da bola. Note-se mesmo, nem a secretária-geral adjunta do PS, que encabeça a lista por Setúbal na qual Pinotes Batista consta em lugar certamente elegível, se incomoda com um dislate destes.
Porque é este o pessoal político do PS, entre o qual predomina este "vale (quase) tudo" desde que dê "jeito". E o qual se prepara para vencer com uma enorme maioria, talvez até absoluta. E que neste seu "jeito" governará. Olhando para o passado recente, recordo que João Galamba, apenas conhecido pelo seu veemente afã no negacionismo das aleivosias socratistas, ascendeu à tutela estatal das concessões mineiras. E sob esse paradigma nada me surpreenderei se ainda viermos a ver este Pinotes Batista no Ministério da Justiça...
Temos uma vantagem. É que já estamos habituados, e pelos vistos satisfeitos, com esta cepa torta.