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Nenhures

Nenhures

25
Out20

O torso dispensável (transcrição)

jpt

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(um dos inúmeros dichotes gráficos sobre o presidente Sousa que brotaram nos últimos dias)

Raramente leio o "Expresso". E nunca leio Clara Ferreira Alves. Ontem uma amiga, que sabe do meu desagrado com a caprichosa plumitiva, convocou-me: "Lê a crónica da CFA". Li. Tenho uma visão bem mais negativa dos bonzos dominantes do que a da autora (ou seja, não, Sousa não é melhor do que isto, como ainda sonha CFA na sua conclusão). Ainda assim o texto é muito clarividente. Por isso, e dado que o acesso é só para assinantes do jornal, roubo-o e transcrevo este excelente

O Torso Dispensável (Clara Ferreira Alves)

Estamos, parece, em plena comédia. E na administração da desorientação, todos os dias renovada em mais uma declaração, uma justificação, um comentário e, claro, uma entrevista. Os nossos governantes privilegiam a mensagem em detrimento da eficiência e da logística. Não funciona? Apresenta-se mais um relatório açucarado de amargas contradições para o povo engolir. Num dia há crise política e dramalhão, no dia seguinte vai ficar tudo bem e somos todos amigos e patriotas. A triste figura que António Costa tem feito nas negociações com o Bloco de Esquerda, que está a ter um momento warholiano que só pode ser interpretado como chantagem a um primeiro-ministro enfraquecido e a um partido dividido, não o recomenda. E não seria o momento adequado para o espetáculo. A líder do BE tornou-se a bela do baile e deixou-se tratar como tal. O sentido de Estado é inexistente, mas uma coisa aquela gente sabe, farejar a fraqueza. A fraqueza é farejada por todos os animais políticos, e Costa deixou-se tratar como um subalterno dependente. Nenhuma vitória daqui sairá.

E antes da desorientação, veio o aviso aos portugueses, dez milhões de crianças que precisam de “um abanão”. Tantos estudos e tantos peritos para nos passarem uma vistoria. A ministra da Saúde corre de um lado para o outro com ar assustado e afadiga-se em conferências de imprensa com dados e em recados aos que a interpelam, ou, como ela diz, empurram. Quando um ministro se sente “empurrado” perdeu a autoridade. Quando um primeiro-ministro passa mais tempo nos telejornais do que sentado a pensar pela sua cabeça, perdeu a cabeça.

Desde o episódio deprimente da cataplana que sabemos que os agenciadores do populismo são mais importantes do que os políticos resolutos. Nenhuma reforma sairá daqui, continuamos na visão política do Estado esmoler. Um subsídio de duas centenas de euros para os trabalhadores da saúde em vez de uma reorganização das carreiras da saúde e do sistema público e parcerias com os privados, não vai, pela manifesta insuficiência de subsídios, resolver a falta de quadros nos hospitais e centros de saúde. O sistema aguenta? Não aguenta se o crescimento for exponencial durante o inverno. Em vez de afirmar o contrário da realidade, negando-a, porque não começar a reformar um sistema que se revela inadequado e à mercê de improvisos e boas vontades? (...)

António Costa perdeu a bússola ou deixou-a esquecida num canto. E vai a caminho de perder a autoridade. Enquanto a mesa do banquete estava cheia, os sorrisos socialistas aqueciam os brindes à prosperidade. Agora que a mesa está vazia, e mais vazia ficará, o espetáculo é o de incompetência, que gera a lassitude geral. O ano de 2021 será cru e nem sequer podemos confiar num governo que usa as palavras esquerda e direita como moeda negocial. Costa não devia ter cedido como uma dama lacrimosa ao PCP e ao BE e agora é vítima de ambos. Nenhum deles pretende ver o próprio partido aliado a uma crise económica brutal, e esperam ganhar mais com a crise afastando-se dela do que ajudando a resolvê-la. Põem o interesse do partido acima do interesse do país, e nada disto é novo ou admirável. Quando o declínio chegasse, prefeririam estar bem longe do poder, agitando as massas e o descontentamento.

Se Costa pensou que tinha nestes dois partidos de esquerda os melhores aliados, devia ter pensado duas vezes e analisado a história da democracia portuguesa desde 1974. Ao repelir o PSD como interlocutor, deu a este a vantagem imensa de o poupar para poder ser poder no futuro, e afastou o único partido, o social-democrata, que poderia ter ajudado o PS nesta aflição. Rui Rio nem precisou de falar ou contra-argumentar. Bastou-lhe estar quieto e calado. Qualquer crise política, no meio de uma pandemia incontrolada ou, pior, descontrolada, será responsabilidade dos partidos da ‘geringonça’ e das suas intrigas interesseiras. O povo aguarda o desfecho enquanto assiste à comédia de enganos.

Ora é nestas ocasiões que se necessita das clássicas auctoritas e gravitas. E que temos no Palácio de Belém? Marcelo meio nu. No mesmo dia em que a fotografia lhe revelou o torso, o Presidente foi alvo de chacota, trocadilhos e memes eróticos, pornográficos ou achincalhantes. Em vez de arregaçar as mangas, em sentido real e metafórico, Marcelo, o Presidente da República, despiu-se como se fosse mergulhar no Guincho e chamou as câmaras. Tal como Costa, Marcelo acha que isto lhe traz mais popularidade. Um Presidente da República irreverente é diferente de um Presidente da República ridículo. Convém preservar a dignidade para os momentos solenes em que é convocada, quando fala aos portugueses. Já temos comediantes suficientes e profissionais, não precisamos de mais. Em vez de discutirmos coisas sérias, aqui estamos a comentar anedotas, acidentes e cláusulas acessórias. Esta tem sido, por grosso, a estratégia do Governo para desviar as atenções dos temas emaranhados como Tancos, Pedrógão ou mesmo a covid. Acabamos a comentar ninharias, esquecendo de fazer as perguntas principais. Com a espantosa conferência de imprensa do campeonato Champions, ou o apoio de Costa a Marcelo, ao lado de Marcelo, durante uma visita a uma fábrica de automóveis, o Presidente ficou enleado na estratégia e nada fez para se libertar dela. O torso não ajuda. Preferimos os torsos clássicos dos museus.

Em vez do exibicionismo, não seria preferível preservar a qualidade da autoridade? Em vez dos comentários a esmo, que nos cansam, não seria bom ouvir um discurso coerente e consistente de propostas e soluções, de disciplina sustentada por um pensamento? Marcelo Rebelo de Sousa não consegue domar a personalidade e adaptá-la ao cargo que ocupa? Sabemos que ele é melhor do que isto, o homem do torso dispensável. Políticos nervosos não postulam ações triunfais e precisam de cabeça, tronco e membros

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