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Nenhures

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07
Dez21

Ômicron e África Austral: o gemebundismo

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Há dias países europeus vedaram o acesso a voos comerciais vindos da África Austral, na sequência do anúncio da variante Ômicron da Covid-19. Entretanto quatro escritores renomados, residentes em Moçambique, publicaram críticas contundentes dessa decisão, e do que consideram ser a mundivisão que a promoveu, os quais muito se têm repercutido e, também, induzido uma miríade de posicionamentos similares nas redes sociais dominantes: o angolano José Eduardo Agualusa e o moçambicano Mia Couto publicaram o manifesto  "Duas Pandemias", o português António Cabrita o ditirambo "A Vergonha, ou do Diabo à Entropia", e o moçambicano Armando Artur deixou agora o poema "Ómicron e os Outros".

Sobre este assunto vou botar um postal que (me) é antipático. Pois concordo com muito do que os autores referem - sendo que essa medida logo foi criticada pela Organização Mundial de Saúde, e pelo próprio secretário-geral da ONU, ainda que este tendo expressado a sua oposição em termos infelizes e até inaceitáveis (o "apartheid" foi uma política demasiado violenta para servir agora de material para analogias superficiais e mesmo provocatórias, como escorregou Guterres). E porque tenho apreço pessoal por três destes escritores, os que conheço pessoalmente, e por vários daqueles que os secundam e aplaudem. Mas discordo, e imenso, do sub-texto que perpassa estas proclamações, o feixe de mundivisão que os habita.

Dado esse conteúdo antipático do texto começo por uma ressalva (aquilo a que os ignorantes chamam agora, por pirosice arrivista, "disclaimer"), explicitando o que penso (mais do que tudo, o que intuo) sobre a situação. Em primeiro lugar, e ainda que sendo leigo nestas matérias, desde o anúncio da nova variante Ômicron esperei (perspectivei; tive esperança) que, à imagem de outras variantes que foram surgindo (a "brasileira", a "sul-africana"), não tivesse repercussões muito gravosas - mesmo que tenha efeitos preocupantes em nichos populacionais -, uma relativa amenidade que se vem confirmando, ainda que pareça ser mais contagiosa do que as variantes vigentes.

 

E julgo que este bloqueio aéreo, bem como muita da preocupação institucional (pois os temores sociais têm outras fontes) com a nova variante, advém de uma defeituosa - eu direi que demagógica - abordagem sanitária à Covid-19, uma desvairada intenção de reduzir o contágio, uma utopia de erradicar o vírus, e assim "continuamos a discutir isto com base em incidências de casos, visando um bloqueio de contágio irrealista, em vez de nos concentrarmos no essencial: hospitalizações, mortes e protecção dos mais susceptíveis", como diz Henrique Pereira dos Santos. Tanto em Portugal como noutros países europeus, vários destes também a braços com a renitência de largos sectores da população em vacinarem-se, o que potenciará as derivas governamentais para medidas restritivas das interacções endógenas e exógenas. Mesmo que estas sejam, como é evidente na rápida disseminação internacional desta variante Ômicron, algo espúrias pois ineficientes.

Um segundo aspecto concordante é a questão da (in)disponibilidade de vacinas no continente africano, levantada por Agualusa & Couto e por Cabrita. Sobre isso cito um postal que botei duas semanas depois de me confinar, um período angustiado em que ainda nem sequer se falava de vacinas, e no qual se temia (pelo menos eu temia) efeitos mais devastadores da Covid-19, em especial nos países africanos, sujeitos a infraestruturas médicas muito deficitárias: "Pensava um texto - de blog, claro - tipo "manifesto". Sobre a necessidade de articularmos com os países africanos o combate a esta pandemia. Nos quais os défices hospitalares são enormes. Certo é que as suas composições demográficas são diferentes, e outros serão os impactos da doença. Mas também letais. Pois será agora que instâncias como a CPLP ou, e ainda mais, o acordo de Cotonu deverão funcionar. Mesmo que estejamos agora com a "corda na garganta". Pois se nos escandalizamos com as reticências do ministro holandês, algo alheando-se da situação espanhola, se exigimos comunhão na UE para o enfrentar da gripe e o avivar das economias, como poderemos virar as costas às realidades pauperizadas com os quais temos compromissos políticos e de ombrear humano? Todos estes processos, internos, europeus, globais, exigem congregação (28 de Março de 2020)". Ou seja, a questão da produção e distribuição de vacinas contra a Covid-19 é - esse sim - tema fundamental. Mas, já agora, noto que estes escritores (e humanistas) renomados apenas o levantam publicamente a propósito da sua oposição a um bloqueio aéreo temporário, no que é uma evidente inversão de prioridades. Sobre essa matéria, que muito ultrapassa o meu saber, acolho-me junto a este artigo "Patent buyouts can help win the race against coronavirus mutations", mas aceito que haja outras soluções virtuosas.

Feita a (longa) ressalva avanço. Desde logo noto que, exceptuando o poema de Armando Artur, os textos invectivam os países europeus, eximindo brasileiros, os norte-americanos e canadianos, que o mesmo fizeram, ou outros países que tiveram medidas ainda mais restritivas (como o Japão). Nem a Angola se referem, que o mesmo fez em relação a sete países da África Austral. Dir-se-á que os europeus foram os primeiros a anunciar o bloqueio aéreo. Mas julgo que esse viés crítico face à Europa, que é tópico (historicamente compreensível mas também intelectualmente redutor) na intelectualidade afrocentrada, mina a pertinência da indignação actual. 

Mas o fundamental é o conteúdo dos textos.  A propósito desta medida Couto & Agualusa recorrem à tão actual metáfora do "muro" (convocando explicitamente as imagens do "muro trumpiano" e da pérfida "Fortaleza Europa" - "fortaleza" essa que é, convém sempre lembrar, um sorvedouro de imigrantes, de explicitamente porosa que é, apesar das invectivas dos intelectuais que vivem em países com fronteiras bem rigídas e extremas barreiras administrativas à imigração), "muro" esse que os europeus teriam criado com esta medida. E continuam, invertendo o mundo: "Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso. A penalização a que agora somos sujeitos vai agravar o terrível empobrecimento que os cidadãos destes países estão sendo sujeitos devido ao isolamento imposto pela pandemia."

Repito, para leitores mais truculentos: a decisão é errada em termos sanitários, com laivos histriónicos. Como os últimos dias o comprovam. Mas não fechou sociedades nem economias austrais, isto nem demagogia é, mas sim uma inversão que é inverdade. Os países da África Austral não foram encerrados, confinados. É o cúmulo do distraído eurocentrismo invocar esse fechamento, pois eles existem por si, interagem entre si e com os restantes países do mundo (nos termos que estes entenderem). Não se pode defender a imensidão de recursos económicos e culturais dessas sociedades, criticar os discursos (endógenos e exógenos) miserabilistas, as desvalorizações históricas sobre as culturas africanas, até contestar a prevalência da projecção de Mercator, elidindo por distorção a representação da grandeza física do ambiente sul africano, e clamar que o encerramento das fronteiras aéreas da Eurásia ocidental as condena a um isolamento, a um confinamento.

Mas se isso é um lapso de índole intelectual, na sobreelevação surpreendente de uma mundivisão subalternizadora basto datada, a questão actual é bem mais problemática: um bloqueio aéreo neste contexto é, evidentemente (e a pandemia que vivemos mostra-o bem) uma decisão de âmbito muito rápido. Uns dias?, umas semanas?, o necessário para as instituições em estado de alarme sopesarem os efeitos desta variante. Não barrará "os caminhos do progresso", seja lá o que isso for, o que será óbvio mesmo para os fundamentalistas da "globalização", idólatras do livre-trânsito.

Mais, que incomensuráveis perdas económicas sofrerão os países da África Austral devido a este breve período? Algum frustrado comércio de carga aérea com a Europa, mas que terá efeitos marginais. Algumas perdas no turismo, já de si reduzidas dada a situação pandémica. Alguma redução na interacção da negociação empresarial - mas esta também já muito readaptada aos preceitos da teleconferência, exponenciados pela Covid-19. Ou seja, algumas perdas económicas muito secundárias, de âmbito muito conjuntural, ainda que enfatizadas pois decorridas em países bastante empobrecidos, situação sublinhada pela longa crise pandémica. E, o que também será dínamo do incómodo motriz das locuções invectivadoras, a redução da mobilidade familiar entre os sectores mais cosmopolitas das burguesias urbanas africanas em pleno período festivo. 

Mas "barreiras ao progresso" por causa de um Dezembro menos alado? Francamente, é argumento descabido. De facto, o único argumento que se pode retirar do texto é o da reclamação diante de uma "penalização", qua "castigo", infringida aos africanos. Ou seja, o argumento ideológico, o assumir da situação não em função das dinâmicas que a causaram mas em função de uma visão (e muito moralista) da história vista como determinante, uma espécie de superficial "construtivismo" das relações internacionais. Em termos ríspidos? O que ali está é que face à doença a maldade europeia assomou, o pavor diante dos negros explodiu, e fechou os africanos nos seus "compounds" e nas suas "homelands", impedindo a sua ascensão ao "progresso".

Ora, para além desta inversão da situação, tanto Agualusa & Couto como Cabrita certeiramente apontam que os países da África Austral - onde aparentemente, para os decisores internacionais, surgiu a variante Ômicron - têm uma situação infecciosa muito menos gravosa do que na Europa. E consideram esse dado como denotativo da maldade da decisão constrangedora das viagens. Pois se os países (Moçambique em especial) têm poucas infecções porque barrar os vôos?

De facto, é uma realidade, os países da África Austral têm um fluxo de infecções bem menor do que os europeus, e não só por se viver aqui agora o Inverno. Pois tal disparidade dos efeitos da pandemia tem sido a realidade nestes quase dois anos, por razões que desconheço. E mesmo em Moçambique - ainda que tenham morrido vários conhecidos e amigos meus, um dos quais, tão jovem ainda, que sentia como se família fosse, o que tanto me acabrunhou - o impacto estatístico tem sido menor do que em países europeus. E quero sublinhar essa disparidade: Portugal foi em Janeiro/Fevereiro de 2021 durante algum tempo o país mais afectado, em termos absolutos, em todo o mundo. E recordo o que aqui botei: se em Abril passado havia quem aventasse uma "catástrofe planetária" a propósito do pico infeccioso na Índia é necessário pensar que Portugal tivera uma situação 14 (!!!) vezes pior. É certo que há um véu propagandístico de agentes governamentais e de avençados - muitos dos quais literatos e académicos com repercussão na intelectualidade moçambicana - que procuram esconder esta realidade. Cumpre aos intelectuais em África escaparem a esse ror de de lérias, mesmo sabendo que encontram algumas similitudes identitárias, pois de aparência ideológica - e, por vezes, convivenciais -, com esse paupérrimo núcleo de "intelectuais orgânicos" do poder português actual. E é necessário frisar que outros países europeus têm cruzado épocas de grande intensidade infecciosa.

Ou seja, o surto pandémico é bem menos gravoso em Moçambique do que nos países que estes escritores ali residentes invectivam. Isso torna-se óbvio, tanto em termos estatísticos como em termos do ambiente intelectual, das "representações" sobre o assunto. Cabrita, que muito padeceu com a Covid-19, ainda assim refere que durante esta pandemia sempre se sentiu mais seguro em Maputo do que em Portugal. Recordo que aquando do seu internamento eu escrevi sobre o assunto. E que na sequência do meu texto recebi meia dúzia de mensagens de moçambicanos, oriundas de Maputo, afirmando-me com veemência que havia um hospital público que estava a providenciar uma boa assistência aos doentes de Covid-19. Repito, um hospital a funcionar em termos positivos! E diziam-no, friso, não de modo crítico mas procurando salvaguardar a oferta hospitalar nacional, contestando a referência que eu havia feito a um défice dessa oferta.

Para que não restem dúvidas: o censo de 2017 aponta que a Maputo Cidade tem 1120000 habitantes, que a Província de Maputo tem 1970000 habitantes. E que a limítrofe Província de Gaza (que presumo poder albergar hipotéticos pacientes na capital) tem 1420000 habitantes. Ou seja, para falar sem rebuço, Cabrita sente-se mais seguro em Maputo onde há um hospital público a funcionar bem face ao Covid-19 diante de um universo populacional destes, do que em Portugal! Sendo que nós, aqui, temos múltiplos hospitais a funcionar com muito mais pessoal médico e mais especializado, e com mais parafernália tecnológica, e que se viram obrigados a funcionar em notório sobreesforço, enfrentando uma grave crise sanitária. Tal como outros países europeus, dotados de superiores serviços de saúde pública. 

Assim sendo, face a estes números objectivos e às subjectivas sensações de segurança, é notório que, por mais exasperadas que sejam as percepções locais sobre a prevalência da Covid-19 em Moçambique e na vizinhança, o impacto explícito e implícito é bem menor do que na Europa. Será assim muito compreensível que as sociedades mais maceradas e os seus governos democráticos (dependentes das opiniões públicas) reajam, de modo até exagerado, diante do anúncio de uma nova variante, temida como imune aos tratamentos existentes.

E dos intelectuais e artistas humanistas dessas sociedades o que nós poderíamos esperar era solidariedade diante deste padecimento, global mas vivido de modo assimétrico. Não que levantassem o espantalho da "relação colonial" perpétua, alimentando o fervor contestatário da cidadania internética. Não que gingassem a escassez de infecções austrais. Não que viessem, como alguns outros romancistas e demais cidadãos moçambicanos fervilhando em modo facebook, gritar que nós europeus somos "histéricos" e "injustos", "colonos" ou mesmo "racistas". Mas sim analisando as causas da errónea de infértil decisão, as suas dinâmicas. E explicando-as aos seus vizinhos, compatriotas ou não, em vez de enfileirarem no discurso que "fica bem". E não só em África, sabendo a veneração (como Mia Couto recolhe) ou respeito que estes autores colhem aqui, admiração merecida que conduz a serem estes ditirambos de imediato consagrados como vozes justas e justificadas.

No fundo, e tal como Armando Artur diz agora, trata-se de refutar, neste Norte, esse viés de que "Vezes sem conta culpam-me vocês de todas / as contrariedades do mundo," isso que implica perceber tais humanistas e seus seguidores num "Agora que sei o que vocês sequer imaginam / jamais apelarei à vossa falsa bondade / nem mesmo à vossa estranha e obsoleta /amizade e solidariedade!". Pois percebendo que diante de tudo isto que se vai passando nada lhes é tão importante que invectivar quem pior do que eles está - e, mais importante do que tudo em termos políticos, pior se sente - sem procurar perceber o que ali (aqui) se passa. Convocando velhos fantasmas, reactivando-os, para justificar um, de facto, umbiguismo próprio. Altaneiro, até revanchista, no desfraldar da relativa saúde (viral, mental) austral face à exagerada doença (viral, mental) alheia, gritada ao "colono".

De facto, um umbiguismo que se traduz em nada mais do que um gemebundismo. Inintelectual. Alienante. E, por isso, até pungente.

Votos de saúde para todos. E também desejo, ainda que com menos intensidade, que os burgueses possam viajar na quadra natalícia entre a Europa e África, e vice-versa. E que por isso, acima de tudo por isso, pois já mais saciados de bacalhaus e matapas, camarões e farófias, possam desviar as suas indignações para outros assuntos. Continuando a clamar, eu sei-o, contra a "visão colonial" como causa dos males do mundo. Porque, de facto, é essa a fogueira que acalenta o tal gemebundismo. Esse que tantas simpatias colhe. Porque é... fácil.

 

Bloguista

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