Onde estará a tenista?
A "L' Equipe" de hoje tem esta primeira página, associando-se à preocupação global - muito catapultada pelas declarações alarmadas de várias das suas colegas - sobre o paradeiro da conhecida tenista chinesa Peng Shuai, desaparecida há cerca de vinte dias após a sua denúncia de ter sido violada por um ex-vice-primeiro-ministro chinês.
Mais do que tirar conclusões sobre o nosso ambiente discursivo e as hierarquias das preocupações que nele vigoram - por exemplo, imagine-se o que iria por esta imprensa nacional e pelas nossas redes sociais se uma tenista negra tivesse sido alvo num "court" de uma "boca" ordinária de um qualquer caucasiano, ou se uma tenista "transgenderada" tivesse visto posta em causa a sua condição atlética feminina -, ou grandes elaborações sobre o sistema político chinês, o que será de desejar é que a campeã chinesa logo se anuncie de boa saúde, saída de um qualquer retiro, destinado a fortalecimento psicológico, recuperação de qualquer lesão, ou treino físico peculiar. Ou de meras férias em recanto exótico. Esperemos isso. Ainda que o costume chinês de fazer desaparecer figuras gradas por razões do seu desalinhamento com a o "Bom Senso" governamental faça temer que não se trata apenas disso.
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Esta situação e o relativo silêncio português sobre a matéria faz-me lembrar um pequeno episódio, que me ficou encravado, e que bem denota o anacrónico seguidismo dos marxistas ao governo chinês, por mais absurdo que seja o postular de alguma ligação entre o velho ideário comunista e o regime capitalista, colonialista e imperialista de Beijing.
Em Abril de 2020, na que era ainda a alvorada deste longo Covidoceno, muitos se interrogavam sobre o que havia acontecido na China aquando do aparecimento do vírus. Como surgira e, acima de tudo para a opinião pública (pois a efectiva origem interessava mais aos cientistas), como se disseminara tão rapidamente. Notícias havia que algumas delegações (pelo menos a francesa) às Olimpíadas Policiais, acontecidas em Wuhan em Outubro de 2019, haviam tido surtos de fortíssimas gripes após o término dos jogos, o que deixava entender que esta nova doença se iniciara antes do que era reconhecido pelo governo local. Muito se falava sobre prisões e desaparecimentos de pessoal médico daquela região que havia tentado alertar para a gravidade da situação. Enfim, discutia-se sobre hipotéticas delongas que pudessem ter acontecido no controlo inicial da pandemia, um debate muito assente num enorme défice de informação.
Em meados de Abril o "The Guardian" publicou um artigo no qual aludia ao facto de que, através da análise das telecomunicações, se apontava para que cerca de 13 milhões de indivíduos haviam saído de Wuhan em meados de Janeiro, durante o período de Ano Novo Chinês. E que dada a virulência da então ainda epidemia isso muito fazia duvidar dos dados sanitários divulgados pelo governo, que indiciavam que em Beijing tinham morrido apenas 8 pessoas e em Xangai outras meras 10. No fundo, demonstrando que a política chinesa de extremo controlo informativo construía uma "narrativa" falsa, e que teria influenciado atrasos iniciais na luta contra a disseminação viral, algo potenciando os resultados catastróficos mundiais que todos conhecemos.
Dado estar durante aquele confinamento inicial a sofrer de uma monomania covidiana, partilhei esse artigo do "The Guardian" no meu mural de Facebook. Um bom amigo, residente em Maputo, partilhou a minha publicação indicando que a ela chegara através de mim, referindo-me carinhosamente (eu sei que era o seu sentido) como "professor", coisa que fui, que então já não era (nem sou), e forma de me apresentar que nunca activei no registo de blog ou redes sociais. A reacção dos velhos comunistas, até meus conhecidos, a essa sua publicação foi descabelada. Injúrias ao tal "dito professor", assim mesmo. E, como corolário tão típico do ambiente intelectual do marxismo-leninismo, invectivas à "imprensa ocidental" "mesmo que se apresente de esquerda" sempre pronta a "fazer campanhas". O que era necessário, como sempre o foi ao longo de XX, era negar qualquer má prática dos "camaradas" - mesmo que estes sejam estes chineses - e contestar os malvados "ocidentais" "capitalistas", em particular os "primos portugueses" (falo, como é logo claro para quem conheça aquele contexto, de lusodescendentes).
Espero que esses velhos comunistas, um ou outro até novo romancista, intelectuais, académicos, revolucionários deste quilate, possam agora resmungar outra vez contra "as campanhas antidemocráticas" da "imprensa ocidental" e - secundariamente - apoucarem este "dito professor". Porque isso será sinal que Peng Shui apareceu, de boa saúde e em boa forma desportiva, e de novo fulgurante nos "courts" de ténis.
[Presumo, António, que seja para textos meus deste tipo que não tens paciência, como acabas de me referir. "Paciência", como te disse. Abraço]
Adenda: a tenista reapareceu. Independentemente de outras considerações isso é o fundamental. Mas, claro, deste episódio - e para além do processo futuro - poder-se-á retirar a demonstração da perfídia da "campanha" da "imprensa ocidental" e a má-fé reaccionária desses (e até do modesto este) agentes provocadores que querem criticar a linha revolucionária chinesa.