Os Dois Corpos do Presidente (transcrição)
Abaixo transcrevi um texto de Clara Ferreira Alves sobre o "estado da arte" da política portuguesa. E logo uma amiga me chamou a atenção para um texto de António Guerreiro - o qual, do que conheço na imprensa portuguesa, é o é o colunista que mais aprecio, na sua coluna semanal no "Público". É uma excelente análise da deriva do presidente Sousa, partindo do episódio noticioso que foi a sua recente vacinação.
(O texto está reservado a assinantes mas eu transcrevo-o aqui. Crente que numa terça-feira ninguém compra um diário da sexta-feira transacta)
Os dois corpos do Presidente
(António Guerreiro, 23 de Outubro de 2020)
Para a história da iconografia política, em Portugal, é mais importante do que parece, à primeira vista, a fotografia do Presidente da República (de Daniel Rocha, no PÚBLICO de 19 de Outubro), de tronco nu, sentado num cadeirão azul, a ser vacinado contra a gripe por um enfermeiro. O tronco nu do presidente publicamente exibido não é uma novidade, vimo-lo já muitas vezes filmado e fotografado na praia. Mas aí, como acontece com todos os corpos na praia, ele quase se anula na sua corporalidade, é como se a pele fosse o fato do banhista e tivesse um efeito de ocultação (razão pela qual o nudismo é uma prática completamente anti-erótica); mas sentado no cadeirão, a ser picado no braço por um enfermeiro que ali ocupa o lugar do soberano, o Presidente de tronco nu apresenta-se sem dissimulações, sem filtros, e suscita um outro olhar. O que vemos, então? Um corpo naturalmente envelhecido e flácido (mas não exageradamente, para quem tem mais de 70 anos). Nada de obesidade, mas apenas um corpo em decadência, ainda que discreta, onde a carne e a pele estão sempre em excesso.
A foto mereceu um editorial no PÚBLICO, onde o seu director, Manuel Carvalho, classificou o gesto do Presidente como um atentado ao “bom gosto”. De um ponto de vista estético, isto é, da sensibilidade do espectador, compreende-se a classificação do desnudamento do Presidente como sendo de “mau gosto”. Mas para uma análise de iconologia política, essa questão estética não é pertinente e é a dimensão simbólica (o efeito de banalização, a que Manuel de Carvalho também se refere) que prevalece. Numa análise interpretativa dessa dimensão simbólica, impõe-se a evocação da metáfora dos “dois corpos do rei”, que o historiador alemão Ernst Kantorowicz (1895-1963) usou num estudo famoso da formação do Estado moderno. No centro do seu estudo histórico-genealógico, publicado em 1957, intitulado precisamente Os Dois Corpos do Rei, está a noção de corpo político e a ficção mística do duplo corpo do rei: o primeiro é o corpo natural e perecível, sujeito ao tempo e à fragilidade humana; o segundo é o corpo político, de carácter perpétuo, que ao ser transmitido (e o ritual da coroação é um acto da dramaturgia política dessa transmissão) escapa aos limites da finitude. Este corpo místico, ligado à sacralidade da política, não pode morrer, porque a dignidade não morre: Dignitas non moritur é a fórmula que, segundo Kantorowicz, constrói um paradigma dos soberanos vivos e imortais, onde se misturam instituições e corpos místicos. Estes axiomas da teologia política elaborada no Ocidente medieval permaneceram válidos até à instituição de uma “teologia profana”, em que se transpõe para a dimensão terrena da contingência política do Estado secularizado a Majestade divina, como mostrou Kantorowicz na sua grande narrativa da invenção do Estado moderno.
De forma laica, e ilustrando a tese de Carl Schmitt de que os conceitos fundamentais da política moderna são conceitos teológicos laicizados, o princípio dos dois corpos do rei nunca deixou de manifestar um enorme poder de sobrevivência. Não podemos deixar de pensar no grandioso estudo de teoria política de Kantorowicz quando vemos que o actual Presidente da República decidiu desde o início apresentar-se publicamente sob a forma de um excesso de corpo profano (que Manuel Carvalho, no seu editorial, chama “estratégia de banalização”), aquele corpo demasiado visível, sempre a oferecer-se às múltiplas máquinas de visão e reprodução modernas, exibindo demasiada carne, demasiada paixão, e eclipsando aquele outro corpo mudo, misterioso, invisível, sublime, que impõe distância e se confunde com o próprio Estado. No entanto, é possível perceber que a sua estratégia não é da “banalização”, mas a singularização pelo excesso, do qual este último gesto documentado na fotografia de Daniel Rocha é a manifestação mais eloquente. Aquele corpo vulgar, que se assemelha a todos os corpos envelhecidos, vai para além dos seus próprios fins e entra no êxtase da sua imanência. Dito de maneira muito mais singela: com este seu último gesto escandalosamente profano o Presidente não pretende descer ao nível do homem banal, mas elevar-se a um estado paradoxal. A nível nacional, o outro pólo do seu gesto de desnudamento — aquele onde não há invisibilidade nem sublimidade possíveis — só tem um correspondente no seu amado Ronaldo.