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Os Escravos de Tromelin

capa escravos.jpg

Les Esclaves Oubliés de Tromelin, de  Sylvain Savoia narra a história dos 160 escravos malgaxes transportados pelo navio francês "L' Utile", pertencente à Companhia das Índias Orientais, que seguia para a Maurícia e naufragou em 1761 na ilha de Areia, como então se chamava a Tromelin, hoje reserva natural, situada a cerca de 470 km de Madagascar e a 560 km da Reunião e da Maurícia. A qual fora notificada 40 anos antes mas estava ainda incorrectamente cartografada.

img-1.png

ilha de areia.jpg

À ilhota, com um km² e 8 metros de altitude máxima, aportaram os sobreviventes, 122 marinheiros e 88 escravos. Através de um trabalho comum conseguiram construir uma embarcação com os salvados. Sendo essa pequena demais para a todos transportar, os marinheiros franceses partiram, deixando os captivos mas prometendo-lhe um rápido envio de socorro. O qual não veio a acontecer por oposição do governador da então colónia das Mascarenhas, então concessionada à Companhia, apesar da relativa proximidade da ilhota.

Só cerca de uma década depois, já com a tutela do território  entregue ao Estado, devido à falência da companhia majestática na sequência da Guerra do Sete Anos, foram organizadas tentativas de resgate. Falhadas as duas primeiras, apenas 15 anos depois do naufrágio o salvamento se consumou, resultando na recolha sete mulheres e uma criança entretanto nascida, os únicos que haviam sobrevivido no inóspito lugar, batido por ciclones, parcialmente inundável, alimentando-se de tartarugas, peixes, pássaros e água salobra. E com a ironia triste que reina na História, a ilhota seria renomeada Tromelin, o nome do comandante do navio salvador. (A apaixonante e terrível história está aqui detalhada).

O episódio viria a tornar-se conhecido, Condorcet abordá-lo-ia no seu célebre Reflexões Sobre a Escravidão dos Negros, e foi bastante difundido pelo emergente movimento abolicionista.

img-7-small480.jpg

Entre 2006 e 2012 houve quatro expedições arqueológicas francesas na ilha, patrocinadas pela UNESCO no seu programa "A Rota do Escravo", e realizadas pelo Grupo de Pesquisa de Arqueologia Naval. Um trabalho de resgate de memória, recuperando as vivências daquele grupo que se tornou uma pequena sociedade - um eco está neste texto, centrado no que é possível recuperar, as condições materiais daquela espantosa sobrevivência: Survivre à Tromelin: stratégies d'adaptation de naufragés sur une île déserte au XVIIIe siècle. Na imagem os muros dos edifícios construídos com coral, tão frágil forma de abrigo face aos constantes ciclones.

esclaves_tromelin_text.jpg

tromelin3.jpg

Sylvain Savoia participou nesse trabalho como ilustrador, estando na ilha durante a segunda expedição (45 dias em 2008). E faz neste livro uma emocionante articulação entre o relato das suas experiências e as dos seus colegas, trabalhando naquele isolamento, e a evocação daqueles desgraçados robinsons totalmente involuntários. Num grafismo amigável, naquilo da "ligne claire", fica um belo hino à resistência sobre-humana dos naúfragos e um cuidadíssimo mas nada monótono relato do trabalho de pesquisa realizado, daquele ofício metódico, humilde, nisso consistente do arqueólogo. Mas também, e é esse o cume do livro, e que o torna superlativo, como a participação nessa "arqueologia da aflição" - como o Max Guérout, o arqueólogo responsável, luminosamente intitulou este eixo de pesquisa -, lentamente o vai impregando da emoção face àqueles destinos, uma consciencialização que é a forma de lhes dar a possível voz, uma réstia da "voz dos afásicos" como um dia disse um historiador. De os dignificar, pois fazendo-os reviver um pouco.

Não sei se o livro terá edição portuguesa. Mas é o tipo de publicação que se justificaria. Pois é uma belíssima obra. E com toda a certeza colheria a atenção promovida pelo debate sobre a história do tráfico de escravaturas em Portugal. Mas é também um bom ponto de partida para reflectir, sobre o quanto há para fazer na investigação nesta matéria. Penso nos inúmeros vestígios de naufrágios na costa moçambicana, e não só, tantos deles carregados de escravos. Nos entrepostos do litoral, sítios de embarque dos capturados. Com tanto para estudar, para através disso trazer à possível vida, a da consciência presente, essa desgraçada humanidade. Pois este é o tipo de livro que incendeia a imaginação (activa) dos mais-novos. E que a ressuscita, nos mais-velhos. 

 

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  • banda desenhada
  • savoia

editado por jpt a 14/9/19 às 11:43
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