17
Nov24
Os lagartos do Ídasse
jpt
Uma querida amiga enviou-me uma mensagem dizendo-me qualquer coisa como "tomas as dores de Moçambique como se seja o teu país, e também acho que o seja...". Respondi-lhe que está errada. Gosto do país e espero-lhe o menor mal que seja possível (desejar o "melhor" é uma utopia, e esta é sempre "a mãe de todas as..." desgraças). Mas não é o meu país, nem nunca o senti assim. Fui durante quase 20 anos, como um dia tão bem me (nos) explicou o então ministro José Mateus Katupha, metaforicamente um "cunhado" - ou seja, alguém que foi viver para a terra dos "donos". E gostou.
Explico-me, a ela e não só. Durante a década dos meus quarentas este regime moçambicano enquistou. Mas a política que me preocupava - até porque blogava - era a portuguesa. Pois sou um patriota (esse termo que os esquerdistas abominam...). Recordo uma alvorada em que olhei para o espelho e me insurgi num "vou chegar aos 50s e estes gajos ainda estarão no poder!", aquele execrável PS. O me que enojava nem era Sócrates - mariolas daqueles existem em todos os regimes, partidos, ideologias. Era a abjecta cumplicidade, conivência ou complacência desta "lisboa", e de vários que eu conhecera, um ou outro até amigo. E o que me preocupava era - como se veio a comprovar - o antidesenvolvimentismo que toda aquela camarilha clientelar promovia.
Sobre Moçambique? Trabalhava e convivia. Com gente empenhada, de densas biografias e de argúcia analítica, universitários na maioria, mas não só, um gabarito colectivo que imenso me faz falta neste remanso dos Olivais. Claro que nisso se discutia o país, seus rumos de desenvolvimento. Mas eu nem fazia proselitismo (nunca o fiz nem farei) nem opinava em público. Vim a escrever no "Canal de Moçambique" - um jornal de "oposição". Fi-lo porque um dia o amigo Fernando Veloso me convidou. "Pagas-me?", provoquei-o. "Claro, quanto queres?", respondeu. "490 meticais por uma página semanal", o equivalente um maço de Rothmans diário! Ele riu-se e acordámos. E durante anos nunca escrevi sobre política local.
De quando em vez um ou outro "estrutura" que eu conhecia abordava-me, amigavelmente, dizendo que me lia e que eu ia bem. O sentido era óbvio, um "assim não fazes mal". Por vezes diziam-me "não percebo bem o que escreves...", e eu ria-me, pois era exactamente o que eu sentia ao (tentar) ler os textos de jornal do António Cabrita ou do Luís Carlos Patraquim - ambos muito mais cultos e complexos do que eu, e que me deixavam (e ainda deixam) tantas vezes meio atarantado. Ou o que me disse ontem uma amiga vizinha, chegada de férias: "estou a meio do teu Torna-Viagem"... "tens umas histórias óptimas", sorriu, "mas escreves um bocado rebuscado... é o teu estilo, a tua mania"...
Não escrevia sobre política local porque aquela que me preenchia era a portuguesa. Mas também porque sabia que qualquer crítica que colocasse seria sempre por alguns entendida como a de um "xicolono", assim contraproducente. E também porque quem não gostasse de qualquer opinião minha a faria respingar sobre a minha mulher e sobre o seu enquadramento laboral. O que seria uma injustiça extrema, até porque ela já tinha de me aturar no dia-a-dia, e esse seu calvário já era demasiado.
Em blog apenas uma vez opinei. Poucos dias antes de partir escrevi no ma-schamba (que então era bastante lido) um "em Moçambique sou chissanista". O que me valeu alguns resmungos de amigos, frelimistas, oposicionistas ou estrangeiros. E continuo a sê-lo (quem quiser perceber porquê terá de me pagar, será suficiente uma xima e uma cacana no "Roda Viva").
Uso este meu longo auto-enquadramento para responder à minha amiga. Eu sou daqui. E estou aqui. Mas tenho uma visão sobre Moçambique. Poucas semanas depois de lá chegar, em 1994, a aldeia comunal onde vivia, cerca de Montepuez, foi avisada que o ministro da Agricultura iria visitar a empresa agrícola que ali funcionava. Numa manhã aproximou-se a comitiva, meia dúzia de carros. Eu estava no mercado e num ápice todos fugiram. Com excepção de meia dúzia de anciãos, já algo trôpegos, ali sentados a vender o tabaco cultivado, os quais eu ladeei. E por mais "rebuscado" que tente ser não conseguirei descrever o terror generalizado e a angústia, hirta e digna, daqueles mais-velhos já incapazes de se escapulirem.
Naquela época escasseava a literatura analítica sobre o país. Certo que Geffray já tinha publicado (e tão atacado fora) mas o derrame crítico foi subsequente, lá para já XXI, primeiro estrangeiro e só depois nacional. Mas para mim aquele momento foi elucidativo: em plena paz estabelecida, a "população" (como se dizia), o "povo", tinha terror do poder.
30 anos depois o poder estatal é muito pior! O regime enquistou, repito. O povo - que nem sempre tem razão mas onde radica a soberania (a qual nunca se subordina a reclamadas legitimidades históricas...) - protesta em contínuo. A (minha) simpatia com os protestos é evidente. Intelectual, ideológica até. Ética.
Mas isso não implica gostar do conteúdo de algumas críticas. Vejo um filme com um líder oposicionista em comício recorrer a argumentos regionalistas ("tribalistas", dizia-se) - "a senhora que aprenda a nadar para atravessar o rio", gritava Manuel Araújo para gáudio da população, invectivando uma dirigente oriunda do sul do país!. Leio escritos de teor racista, acendendo indignações contra "minorias" étnicas - "nasceste aqui por acaso", escreveu Araújo sobre um "branco". E é temível o potencial indutor destas derivas, mesmo que sejam apenas escorregadelas retóricas ocorridas no calor da polémica.
Pois uma coisa, necessária, é exigir justiça sobre mandantes e executantes de crimes - acabo de ver uma reportagem da Al Jazeera com um jovem manifestante assassinado por estar a bater tachos e panela. Outra coisa, catastrófica, é acoitar revanchismos colectivos ou lutas "étnicas". Ou derivas a la Idi Amin, pugnando por exclusões populacionais. Justiça é uma virtude. Delimitar "inimigos internos", bodes expiatórios, é um crime. E se é esse o caminho dos líderes da oposição o país não irá para melhor...
As redes sociais e as telefónicas fervilham com os acontecimentos de Moçambique. Nesse feixe constam agora um texto e uma entrevista de Mia Couto, o mais conhecido escritor moçambicano. Não gostei dos seus conteúdos. E muita gente também não. De imediato brotaram textos críticos, o que é normal, em particular num momento destes. Mas alguns dos argumentos brandidos são acintosos.
Diante dessa verrina, até pérfida, lembro uma situação com o Mia Couto. Carlos Cardoso tinha sido assassinado, causando uma imensa comoção no país - os mais antigos lembrar-se-ão disso. Mas também um pânico em Maputo - no dia do seu funeral três moçambicanos pediram-me para se acolherem em minha casa, decerto que por pensarem que isso lhes daria uma espécie de "asilo político". E um foi efectivamente para lá sossegar.
Junto ao féretro acotovelávamo-nos centenas de pessoas. Murmurando o mandante do crime. O Mia Couto foi falar. Eu ladeava algumas das suas pessoas mais próximas, que o escutaram angustiados com os riscos em que estava a incorrer. "Quer ele ser o próximo?", disse-me entredentes um seu muito querido. Quando terminou, desceu até junto de nós e eu disse-lhe, comovido, "Mia tens de ter cuidado! "Eles" também abatem escritores...". "Queres que me cale?", ripostou.
Ele acabara de dizer isto, em Novembro de 2000:
"(...) O sentimento que nos fica é o de estarmos a ser cercados pela selvajaria, pela ausência de escrúpulos dos que enriquecem à custa de tudo e de todos. Dos que acumulam fortunas à custa da droga, do roubo, do branqueamento do dinheiro e do tráfico de armas. E o fazem, tantas vezes, sob o olhar passivo de quem devia garantir a ordem e punir a barbárie. (...) queremos uma nação de paz, em que vale a pena ser-se justo e honesto? Porque se queremos essa outra nação, então alguma coisa vai ter que mudar. E mudar radicalmente.
A questão é que já muitos de nós perderam a crença nessa mudança. Compete-nos vencer esse esmorecimento. Porque é isso que pretendem (...) os que estão matando a nossa pátria. Que abandonemos a crença, que abracemos o desalento e aceitemos, com conformismo, a ordem do crime organizado. (...)
Esta morte põe à prova os governantes deste país. São eles que devem responder com actos, investigando não apenas este como outros crimes que foram deixados impunes (...) E já não bastam palavras, declarações de sentimento. Esperam-se actos." (O texto completo está em "Pensatempos", Ndjira, 2005, pp. 99-100).
Enfim, neste Novembro de 2024, quando é aparente o estertor de um regime, quando as "massas" protestam em uníssono, é relativamente fácil - mesmo que se em Moçambique ainda seja algo arriscado "tomar partido" - escrever críticas acaloradas, e até acintosas, a um apenas indivíduo, porque dele se discorda.
Mais difícil, muito mais difícil, foi naquele Novembro de 2000, falar (quase) sozinho daquele modo. Respeite-se isso! Pelo menos isso!
E isto digo eu, que não sou compatriota dele, nem amigo (tenho uma relação cordial, mas sem qualquer intimidade), nem "fan" da sua literatura (sou leitor, o que é diferente). Nem concordo com o viés com que ele está a analisar o seu país. O seu país, repito.
Enfim, que os lagartos do Ídasse protejam Moçambique.