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Nenhures

Nenhures

23
Dez24

Pré-Natal 24

jpt

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No Metro, sigo em pé, como quase sempre. Vou tão embrenhado na deliciosa história de Madame Francinet, ela envolta no funeral do Monsieur Bebé e todos aqueles messieurs - releio um Cortázar de bolso, 34 anos depois!, demonstram-no os gatafunhos datados que lá deixara, isto na sequência de ter ido agora a Lagos falar sobre o monumento (de época, de época..., constatei nesta releitura sexagenária) "Rayuela" -, e tanto assim que distraído, falho a saída na Alameda, terei de ir até à do burguesote "El Corte Inglés", essa horrível patada na urbe que a dupla Sampaio & Soares nos deixou (já ninguém se lembra, somos municípes tão velhos que habituados às escaras, como se estas indolores...).

Nada praguejo à minha distracção, quase senil, pois será apenas breve atraso neste meu rumo a convívio que sei será alegre, juntando-me a gente que conheci há quarto de século, alguma outra há quinze anos ou isso - "fui muito feliz em Maputo!", ironizarei já de vinho na mão, "e acima de tudo fui lá jovem", mas isto já não direi, que não é noite para angústias melancólicas, ainda para mais porque os convivas surgem óptimos, os homens a aguentarem-se com esmero ("estás com um g'anda aspecto!" terá sido a frase mais trocada durante abraços e beijos...), as mulheres a manterem-se lindas, tanto que as desconfio em recursos ao sobrenatural, mezinhas de cá ou "vacinas" de lá...

Mas divago, pois estou no Metro, dizia, sigo em pé - como quase sempre -, embrenhado num livro. Quase a meu lado, encostado às traseiras de um banco, dando-me o seu perfil está um homem. Percebo-o asiático, olhando-o um pouco mais virei a dizê-lo nepalês. Feioso, barba mal semeada - que não descuidada -, na orelha direita apôs um brinco, mais agrafo do que argola. De súbito puxa para si a mulher que está à sua frente, agarrada ao varão central - e só então neles atento, olhando-os por cima dos meus óculos - abraça-a pela costas, com firmeza, gosto, ternura (talvez amor, quem o sabe?), uma evidente cena namorada, ela sua conterrânea, bonita. Deixa-se enleada, concede-lhe um breve olhar, apenas ápice, e regressa ao seu telefone, no qual vasculha o Facebook, e frenético está-lhe o dedo do "scroll down", vejo-o.

Mantenho os olhos baixos, como se no livro, mas aquela toda indiferença traz-me sorriso - não cruel, até solidário, pois nós homens "somos todos diferentes, todos iguais", nisto dos desamores, ocasionais ou perenes, diria eu ao tipo se fosse para lho dizer... Mas sorrio, nos tais olhos baixos, até mais por aquele império do Facebook. Nisso cruzo o olhar com uma mulher, dois bancos afastada. Vem bonita, a entrar nos setentas, belo cabelo prateado muito cuidado, um anorak azul marinho novo, um excelente cachecol vermelho, uma senhora - rumo ao "El Corte Inglés", decerto. Está ela com um enorme sorriso, a tender para o riso. Tanto que logo descruzamos os nossos olhares - teremos sido os únicos a atentar no breve desamor. Para logo de novo nos entreolharmos, brilhantes de humor, e desviarmo-nos, no esforço de evitar a risada, desajustada. Malvada, até.

O casal nepalês sai no Saldanha - tudo isto foi um lampejo -, rumo à sua felicidade possível. O meu soslaio encontra a senhora de regresso a si própria. Logo chegamos a São Sebastião, fim de linha. Enquanto arrumo a história de Madame Francinet no bolso - o tal "Blow-up e Outras Histórias" -, deixo, qual cavalheiro, passar quem se levanta dos bancos. E com a senhora troco um levíssimo, quase imperceptível, aceno, simultâneo. Apropriado aos que construíram uma memória conjunta.

E sigo lesto a juntar-me, jantando, a tantas outras memórias conjuntas.



(Desejo-lhe, minha senhora, um Feliz Natal, musical, como o deste presépio do Dino Jethá)

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