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Nenhures

Nenhures

24
Fev23

Slava Ukraini! Слава Україні!

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Na semana em que se cumpre um ano sobre a invasão russa da Ucrânia e na qual Putin discursa, ilegitimando este país e responsabilizando o "Ocidente" pela guerra em curso, dado  que "Tentaram arrancar as terras históricas da Rússia, o que é agora chamada de Ucrânia", enquanto brande a ameaça de utilizar armamento atómico, uma amiga - conhecida em Maputo - prefere enviar-me a ligação a uma "carta aberta ao presidente da República" emitida pela cidadã Sófia Smirnov (pelo nome presumo ser de ascendência russa ou de dupla nacionalidade). Na qual - tal como o PCP também faz - se insurge contra a condecoração atribuída ao presidente ucraniano, que vitupera como governante corrupto, agente de inúmeros crimes de guerra, cúmplice de militantes nazis, cabecilha de um Estado ditatorial e promotor de actividades criminosas.

 

Smirnov avança também contra os "ataques" sofridos pelo PCP (que define como "Partido Democrata", assim mesmo com maiúsculas exaltantes) movidos por cidadãos estrangeiros (ucranianos), denunciando "a quem foi permitido tudo". Mais avança que a democracia portuguesa tem sido violada desde há três anos, em particular neste último - deixando presumir que estabelece uma ligação entre as políticas sanitárias face ao Covid-19 e o apoio estatal (e societal) ao esforço de guerra ucraniano. Também augura (ameaça?) a disrupção do sistema democrático nacional caso continue esse apoio. E sublinha essa falha democrática por os portugueses não terem sido "consultados" sobre esta política nacional e estarem a ser alvo de uma constante manipulação. E explicita ainda a sua visão da situação, concedendo que igualmente o presidente Putin não será condecorável - nisso promovendo uma igualdade política entre os dois presidentes e regimes - e que se preocupa com as crianças "russas, ucranianas, sírias e palestinas", forma de sublinhar a sua crítica à preocupação face a esta invasão mas não com outras acontecidas mundo afora. 

Ou seja, esta "carta aberta" é uma breve súmula dos argumentos anti-ucranianos que alguma opinião portuguesa tem promovido, por vezes mascarados pelo estipular de uma igualdade entre as posições russas e ucranianas, outras vezes mais francas, ao explicitar de uma particular malevolência sita em Kiev e a Oeste - duas vias bem demonstradas neste 24 de Fevereiro pelas posições dos três partidos comunistas portugueses com representação parlamentar, o BE e o LIVRE agora (um ano de guerra já passado) no minuete da imparcialidade, o PCP ainda "resiliente" no vira da culpabilização da NATO e dos EUA.

Surpreendeu-me ter recebido aquela mensagem. Talvez a minha amiga não conheça as minhas perspectivas sobre a guerra ucraniana. Resumo-as: não andam longe do que consideraram - num país onde a liberdade de expressão sofre enormes pressões e a oposição à guerra foi desde logo considerado crime, passível de pesadas punições - a Associação de Antrópologos russos e a Associação de Arquitectos e Urbanistas russos que desde logo condenaram a invasão através de documentos subscritos por inúmeros e corajosos membros dessas associações profissionais. E acolhi com simpatia um texto de 79 intelectuais "não-ocidentais" sobre esta guerra, apelando a um discernir ponderado, e nada "russófilo", da situação - ainda mais relevante para quem vive ou viveu em países africanos, dada a nacionalidade e proeminência continental de vários desses subscritores. Textos que ecoei neste blog e que convoco para balizar o que penso sobre quem surge agora a frisar que o relevante é criticar Volodymyr Zelensky, e as suas malfeitorias - e que julgo poderem ser significantes para a minha amiga, dado o seu perfil pessoal e carreira profissional.

Outra dimensão é o que a russófila Smirnov refere sobre Portugal. O nosso regime é uma democracia representativa, no qual há 48 anos que o eleitorado português vota sucessivamente, e por largas maiorias, em partidos que defendem uma participação activa na NATO e uma inserção na União Europeia, e nisso também na sua política externa. A democracia representativa não se esgota no voto - daí a sua arquitectura institucional, aqueles "pesos e contrapesos" sempre ditos checks and balances, e os efeitos (às vezes tectónicos) dos pulsares das opiniões públicas livremente expressos. Mas implica que delegamos nos nossos representantes a condução da política, neste caso a externa. Ou seja, não só fomos "consultados" como estamos - todos os dias - a ser "consultados", e o argumento da russófila Smirnov é uma falácia propositada, efeito da sua evidente aversão à democracia. Pelo que não há qualquer ilegitimidade (e muito menos ilegalidade) quando a Assembleia da República se recobre das cores nacionais ucranianas em homenagem à espantosa resistência daquele país diante da invasão imperialista russa. Mesmo havendo podres na sociedade ucraniana...

Mais, contrariamente ao que ela afirma, o PCP (o tal "Partido Democrata" maiusculizado) não foi "atacado" - foi "criticado", com veemência, com virulência, mas isso não implicou quaisquer restrições ou sanções sobre o seu exercício político. Aos manifestantes a que Smirnov aludiu não foi "permitido tudo" mas sim o exercício do direito à manifestação pacífica. E a propalada crescente falta de democraticidade no país não casa bem com o facto da demagoga publicista ter publicado o seu texto na... página oficial da Presidência da República e ver o seu texto reproduzido por vários canais. Sem que o texto seja "censurado" (retirado) nem que ela seja objecto de quaisquer sanções, jurídicas ou morais, tal como não acontece com qualquer dos seus apoiantes e divulgadores - como a minha simpática amiga. Aliás, e para sublinhar essa liberdade de opinião, o seu texto é-me entregue através da sua divulgação num blog onde se acotovelam reproduções de artigos de imprensa e a publicação de opiniões russófilas - entre as quais as de um general português, evidentemente avesso à NATO, aparentemente comunista (ou, vá lá, compagnon de route), cujas características ideológicas não só não o impediram de ascender nas forças armadas nacionais como não o impedem de ser presença constante na imprensa escrita e televisiva, na defesa do regime de Putin. Enfim, este choradinho da falta de democraticidade em Portugal, sobre os ataques que os putinescos reclamam sofrer, não tem cabimento. Ou seja, o rosário smirnoviano é um cadinho de falácias demagógicas.

Um último ponto, o constante argumento de que há (e houve) na História outras invasões sobre as quais "nós" não nos interessamos, convocadas no paleio da autora compungida pelas "crianças sírias e a palestinas", sendo que outros locutores lhes juntam alguns outros casos, sempre ideológica e cirurgicamente laminados. É essa retórica também falaciosa, que quer ilegitimar uma mundividência europeia e seus interesses privilegiados. E quero juntar-lhe isto: neste invectivar da atenção reforçada sobre um ataque ao espaço político europeu nenhum dos locutores comunistas (porque é disso que se tratam) se lembra da invasão do Tibete, por exemplo. Ou um outro caso ainda mais recente - e talvez mais significante para mim e para a minha amiga, que ainda maior experiência africana tem do que eu: no recente mundial de futebol um jogador marroquino, após uma celebrada vitória, ostentou uma bandeira palestiniana, algo que foi muito saudado pela mole de bem-pensantes, em particular anti-ocidentais. E ninguém perguntou, que eu tenha visto, que desfaçatez era aquela do futebolista marroquino, pois o sacaninha poderia ter desfraldado a bandeira do Saara Ocidental. Mas não o fez... Nem isso clamaram os seus "pós-"marxistas europeus apoiantes...

A latere: eu nunca lera Smirnov até esta infausta mensagem da minha boa amiga. É muito interessante, como exemplo (tétrico) de uma mundividência que vai subsistindo. Pois deparo-me com um texto dessa publicista sobre "José Milhazes - o Ingrato". Não conheço o homem, nada sei sobre suas qualidades e defeitos, méritos e deméritos, apenas retenho o seu sotaque carregado (saudável pois tão raro na monocórdica televisão nacional) e o celebrizado "caralho!" que clamou em tempos. Mas ao ler este ataque pessoal que Smirnov lhe endereçou recuei décadas, até ao pós-25 de Abril. Nessa época, e tal como agora aconteceu com Milhazes, alguns antigos militantes comunistas, que se haviam exilado na URSS, tinham regressado ao país, saído do PCP e publicitavam a sua visão profundamente negativa do "socialismo real". Lembro dois nomes, Francisco Ferreira (dito Chico da CUF) e Cândida Ventura. Eram alvos dos maiores insultos, denegridos até ao tutano pelos locutores comunistas. É exactamente o mesmo que esta Smirnov (e vários outros, pululando pelas redes sociais) fazem agora a José Milhazes. É uma mentalidade abjecta, disfarçada de "opinião" política - e cujo miserável estatuto a História bem comprovou. E demonstra bem a "democraticidade" de quem assim perora.

Enfim, faz-me o favor, minha querida e respeitada amiga: não me mandes lixo deste. Pois, seja lá como for, Slava Ukraini! Слава Україні! E viva a Ordem da Liberdade para Zelenski!

 

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