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Nenhures

Nenhures

12
Jan24

Dois de Ídasse (para terminar)

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 Ídasse Tembe (1955): "Sem título", técnica mista sobre papel artesanal, assinada e datada de 2002, Dim. - 25 x 34 cm

(Acesso ao leilão digital desta obra)

De Idasse sou amigo, mesmo. Desde quase que cheguei a Maputo - o meu primeiro ukanyu bebi-o com ele, na machamba do seu sogro. Que dia!... E depois houve muitos, de partilhas nossas. Quando, bastantes anos depois, passou a sexagenário eu deixei um breve texto sobre ele, dizendo a verdade, só a verdade, (mas não) toda a verdade - pois muito mais haveria para escrever. Repito um trecho, apropriado para quem não o conheça: "Idasse é um sábio, apaziguador - até pessoalmente o sentimos, o seu convívio invadindo-nos de paz e isto sem recursos a quaisquer misticismos de pacotilha. Com profunda e única sageza convoca as concepções da "aldeia", daquele mundo tsonga do qual ele, ronga Tembe, provém. Trá-las naquela miríade de seres imaginados que nos rodeiam, míticos se se quiser. Nele vivemos num mundo de lagartos antropófilos e aves semagoiro, uma fauna dançarina panteão de pequenas divindades, poucopotentes, que entre nós cirandam, com e por mas talvez também contra nós, neste descaminho constante, sempre a refazermos, tropeçando. É assim que Ídasse é um sábio, filósofo na sua maneira, antropólogo mais do que nós. E o maior artista plástico moçambicano."

Vendo agora duas obras suas, forma de quase me eviscerar - ainda por cima por cá pouco as valorizam. Falo um pouco sobre elas. A primeira constava de uma exposição que o Ídasse fez em 2002, apresentada na Associação Moçambicana de Fotografia. E que deu brado... pois eram desenhos de nus, como este que aqui apresento. Foi considerada pornográfica!, o que me ri disso e ele também, teve até de ser acompanhada de um cartaz vedando as visitas aos menores... Enorme demonstração do moralismo cristo-marxista vigente na elite político-administrativa local. 

Vibrei com a exposição - naquilo de sonhar comprar tudo por atacado, coisa irrealizável pois então seguia já de salário de professor... Mas fiquei com esta "mulher escarificada". Pelo apreço que tive mas também por coisas cá minhas, uma ideia, mera especulação pois nada sustentada em investigação dedicada. Mas ainda assim acompanha-me a hipótese de que as escarificações femininas, formas de transição de estatuto etário e não só - e que demarcam onde "a mulher não é como peixe" - são uma codificação ("culturalização", se se quiser) das zonas admitidas como erógenas, assim um código da sexualidade legítima.

 

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 Ídasse Tembe (1955): "Sem título", pastel sobre papel, assinada e datada de 1998, Dim. - 30 x 45 cm

(acesso ao leilão desta obra)

E esta segunda é um dos "Lagartos Dançantes" com que o Ídasse preencheu uma belíssima exposição em 1998, na qual fui mestre de cerimónias. Esses tais "lagartos", meio-míticos, meio-místicos, que acompanham o mundo, seus nossos "guardas", o panteão do qual o Ídasse é áugure, o único que eu conheço, talvez mesmo o único resistente.

Porventura o gosto eurocentrado fará encolher os ombros diante destas pérolas. Que posso eu dizer?

06
Jan24

Na venda de uma escultura de Shikhani

jpt

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Nenhuma descrição de foto disponível.

Shikani, Sem Título, Dimensões - 76 x 28 x 15 cm (ligação para o leilão desta obra na Cabral Moncada)

Não me venho armar em parvo... apenas partilho a constatação, própria mas também alheia, de que se na vida algo aprendi uma das temáticas em que isso aconteceu foi a arte moçambicana. É normal, durante alguns anos fui responsável por centros culturais, organizei imensas exposições, olhei catálogos - e muito mais folhas de sala ou desdobráveis. Falei com os veteranos da matéria. Conheci inúmeros artistas, com alguns fiz amizade. Participei em vários júris de selecção e premiação. E, mais divertido, organizei várias (e tão saudosas) passeatas - nas quais grupos de admiradores percorriam ateliers no grande Maputo, vendo e (muito) comprando.

Também escrevi, um pouco, sem ademanes. Lembro os textos mais "sonantes", entre outros, quando os "mais-novos" (da minha geração, entenda-se) que introduziram a Arte Contemporânea no país fizeram Bienal Internacional e me convocaram para escrever no catálogo ("Conversar o MUVART"). E depois me fizeram curador de uma outra dessas bienais. Mais, como memória muito, imensamente, honrosa guardo que - mesmo sendo eu estrangeiro - quando morreu o ícone da moçambicanidade que o grande Malangatana foi, o FUNDAC (de facto, o organismo actuante do Ministério da Cultura) me encarregou de escrever a sua proclamação fúnebre: "Malangatana". E participando eu - e, repito, sendo estrangeiro - no júri de selecção para o prémio de "Consagração" (qua Figura Artística Nacional) que o atribuiu à também tão simbólica escultora Reinata Sadimba, fui incumbido do texto justificativo: "Reinata Sadimba, prémio FUNDAC".

Nesse cadinho de opiniões, explícitas e implícitas, nunca escondi as minhas preferências entre os artistas nacionais. Ídasse, meu enorme amigo, verdadeiro mano. Sobre o qual escrevi, breve, quando aconteceram "Os 60 anos de Ídasse", já eu dele longe, aqui na minha "Pátria Amada". Ele, Ídasse, que foi o único que deixei que me pagasse comissões - pois mano mesmo - sobre o fruto das caravanas de endinheirados que lhe levava a casa, pois lembro de umas moelas no bairro de Benfica, e algumas 2Ms nas barracas ali ao seu Jardim.

E, ainda acima, o grande Mestre Shikhani. Sobre este apenas deixei o meu lamento fúnebre "Neste Ano Após-Shikhani". Onde deixei a razão do meu encanto pelo meu artista moçambicano preferido. Nada extrovertido, mergulhado na sua arte e nos seus, Shikhani foi (e é) muito menos (re)conhecido do que o mereceu. Também por isso me lembro do meu espanto quando, de visita a Lisboa, vi um cartaz da ARCO de Madrid (talvez em 2002, não sei) em que a imagem era uma obra do mais-velho Shikhani... Isso também a demonstrar que alguém nele atentara e o retirara do estereótipo de "arte africana" e quejandos...

Shikhani era único. Neste meu breve texto lembro uma das vezes que entrei sua casa adentro. E ele depois de nos mostrar inúmeras pinturas foi buscar algumas das suas últimas esculturas - e raras, pois deixara de esculpir ("já não tenho força", disse naquela sua voz cava terna). Fiquei absorto, de encantado. Comprei uma, pelo preço que pediu - claro, nunca regateei com artistas e muito menos o faria diante de alguém daquela dimensão. 1000 dólares, nada demais pois naquela época eu podia e o mais-velho merecia muito mais.

A vida decorreu. Agora, 25 anos já passados, vendo algumas obras, entre as quais esta minha escultura de Shikhani. Porquê, se tanto a gaba?, perguntarão. "Vão-se os anéis e ficam os dedos", diz o sábio povo, esse que tudo sabe. Que se vão os dedos e fiquem os cotos, acrescento eu, agora. Vendo esta minha escultura de Shikhani. Sei que se o fizesse em Moçambique, até pelo seu valor identitário, nacional, isso seria fácil, e bem paga - porventura seria ela suficiente para resolver o problema que me assombra.

Mas, enfim, estou na minha "Pátria Amada", o apelo por este artista é diferente, reduzido mesmo. Entreguei a obra (e outras) a uma leiloeira. Avaliou-a pelo preço facial que eu paguei há 25 anos... E colocou-a agora à venda, apenas durante a primeira semana do ano (que me parece um infausto momento para vender arte...).

Shikhani não foi "típico", nem fez "arte tribal" - aquela que os "cultos" europeus ainda julgam exsudar algo de "genuíno". Nem deixou "sunsets" ou casuarinas recortando o horizonte. Ou a denúncia de algo explícito... Foi Shikhani. Deixou Shikhani!

Enfim, se alguém se puder e quiser interessar, ainda tem três dias para comprar esta peça que eu digo um... mundo. Ou, pelo menos, poderá avisar outrem que conheça que se possa interessar. (E para isso bastará partilhar/reenviar este meu postal, o que eu agradecerei).

16
Set23

20 Anos do Movimento de Arte Contemporânea de Moçambique

jpt

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Que o tempo se escoa é um lugar-comum, até fastidioso. Mas há sempre momentos em que isso se impõe, de modo mais ríspido. Acabo de ver que em Maputo se inaugurou uma exposição colectiva (que estará até o início de Novembro), assinalando os 20 anos do MUVART - Movimento de Arte Contemporânea de Moçambique. Esse que então foi uma verdadeira pedrada no... rio artístico nacional.
 
"Caramba, 20 anos já!", sorrio/resmungo. E "Ora este seria um bom pretexto para apanhar o avião, ir matar saudades e ver como estão as coisas...", murmuro, como se tal me fosse possível. Enrolo um cigarro e fumo-o, em memórias das actividades do MUVART e/ou dos seus membros iniciais. Lembro-me também que escrevi um breve texto para o catálogo de uma das Bienais que o movimento organizou, que bem difícil me foi, pois impus-me não aparecer pretencioso - e é muito difícil a um não especialista não ser pretencioso quando escreve sobre arte, em particular a dita "contemporânea". Não ficou grande espingarda mas pelo menos, estou certo, não me armei em parvo.
 
Enrolo outro cigarro. A minha costela Rimbaud restringe-se a um dito dele, em carta tardia. E vem ao de cima, nesta manhã já outonal: "que faço eu aqui?".
 
Adenda: escrevo o postal, nesta verborreia quotidiana. Está terminado e lembro-me do que ontem encontrei um velho amigo, um tipo sempre ríspido, e que me vai lendo. Ao de leve expressou-se um pouco solidário comigo, registo verbal nele excêntrico. Percebi-o e fui-lhe dizendo que a autoderisão sarcástica é muito fundamentada mas não é lamurienta.... Riu-se e rematou "mas olha que as pessoas não te percebem", "tens de meter um emoji...". Não coloco tal coisa, mas deixo o aviso: o bloguista é o tipo que finge o buraco em que deveras está.

15
Jan22

Ídasse

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"O artista pode funcionar como um farol, um vidente", muito bem diz o Ídasse. Ele faz-me o enorme favor de ser meu amigo, mesmo amigo! Do qual eu sofro saudades, dos dias no seu bairro do Jardim ou das nossas caminhadas Maputo afora. É o meu artista moçambicano preferido, aquele de quem tenho mais obras, das afinal poucas que acumulei. E é um amigo preferido, "mano" se se quiser, querido como eu prefiro dizer. Talentoso é-o. Mas é também sábio. De uma sageza ponderada, recatada, embrulhada no seu maravilhoso riso, aquele gargalhar tantas vezes irónico e sempre sagaz. E é também, anuncio-o, o único homem que me apazigua - "porra, Idasse, tu dás-me paz", disse-lhe há já tantos anos, num dia que eu em polvorosa me esvaziei diante dele, de uma 2M e de uma mera tosta mista, verdadeiramente espantado com o seu efeito em mim, coisa estranha em homens da minha lavra que, quanto muito, só se apaziguam diante de uma ou (vá lá) outra amada mulher.

Não sei, honestamente, se estas palavras conseguem transmitir o respeito, imenso, que tenho por ele, por aquilo que ele sabe transmitir, grafica, intelectual e sentimentalmente. Para os menos sensíveis, daqueles que precisam de factos, traduzo-me: quem entra em minha casa tem logo uma mulher escarificada e um passo à frente uma curandeira a parir. E diante da minha cama, onde as visitas não entram, está um dançarino flutuante daquela maravilhosa série de 1998. Cá longe, sigo com Idasse.

Que as pessoas em Maputo o procurem. Não o incomodem. Mas tentem fruí-lo, aquilo que possam. E, entretanto, que leiam esta sua recente entrevista ao jornal "O País", onde para além de abordar o seu percurso repisa questões prementes no sector cultural do país. As quais, infelizmente, são sistematicamente esquecidas.

Adenda: como as ligações às páginas informáticas dos jornais são muito perecíveis, e também porque a página de "O País" é de acesso algo irregular, aqui deixo esta edição de "O País.pdf"para consulta desta entrevista, agradecendo à leitora que me enviou o documento.

12
Ago21

Os grafitos no Padrão dos Descobrimentos

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Alguém foi-se ao Padrão dos Descobrimentos e escreveu uma qualquer tralha. Caiu "o Carmo e a Trindade". Gente "saiu à rua" (hoje em dia é "aos teclados") arrepenhando os cabelos, rasgando as vestes, acorrendo à honra pátria, a Câmara aprestou-se a limpar a ofensa aos ancestrais, a célere Polícia Judiciária pôs-se em campo e logo desvendou ser o crime uma agressão estrangeira, assim sossegando-nos por não se tratar de uma sempre temível traição.
 
Todo este disparate dá-me vontade de... também bramir. Desde há imensos anos que está Lisboa (e não só) carregada dos tais grafitos. Boçais e imundos. Dizeres estapafúrdios, desenhos indigentes, rabiscos, miríades de "bastos" de todos os tamanhos e posições. Toda essa tralha amadora e morcona de facto legitimada e potenciada pela consagração - pela academia, pelas instituições estatais, pelo "gosto informado", agora até pelos construtores civis - da "street art" (de facto, uma mera "street curio"), que nada mais é do que o piroso desta era - a patética Pasionaria da Graça, os "Pierrot com lágrima" a louvar os profissionais de saúde ditos a "linha da frente" contra o Covid, etc. No fundo, tudo isto seguindo a coberto pelo culto da "intervenção".
 
E agora todo este "ó da Guarda!", "Aqui-d'el-rei!"? Recordo que há uns tempos o jornal "Público" (claro) publicou um artigo de 4 universitários sitos em universidades americanas. Portugueses, brancos, de meia-idade, e de nome compósito. Defendiam a prática espontânea da "intervenção" "decolonial" sobre os monumentos. E desvalorizavam os críticos dessa festança como meros "homens, velhos, brancos e de certa classe social" [burgueses, entenda-se. Ou seja, os que tendem a assinar com nomes compósitos, para quem não perceba]. Alguém deu porrada nesse "paper curio"? Nada, que ninguém se vira a esta gente dos ademanes.
 
Enfim, vai um ror de disparates. E nisso lembrei-me de um texto que escrevi há sete anos quando encontrei uma "intervenção" "decolonial" no ex-libris colonial em Bruxelas. Para quem tiver paciência aqui deixo a ligação.

31
Mai21

Elogio da Arte Viária

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arte viária.jpg

Apesar de na véspera ter sido vacinado (produto Pfizer, adianto devido ao interesse geral na matéria) e de estar na situação pela qual ao pressionar o local onde fora injectado ser acometido de uma impressão, dita dor, e de estar então também na iminência de ser acometido por síndrome febril (febre, como se dizia no meu tempo), estive neste último domingo num agradabilíssimo convívio na Arrábida. Nesse Parque Natural, e para além da extrema simpatia e elegância dos convivas, pude conhecer este belo exemplar da simbiose entre Arte e Natureza. Coisas que só nos são proporcionadas pela Arte Viária (aka street art).

 

Bloguista

Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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