Dois de Ídasse (para terminar)
Ídasse Tembe (1955): "Sem título", técnica mista sobre papel artesanal, assinada e datada de 2002, Dim. - 25 x 34 cm
(Acesso ao leilão digital desta obra)
De Idasse sou amigo, mesmo. Desde quase que cheguei a Maputo - o meu primeiro ukanyu bebi-o com ele, na machamba do seu sogro. Que dia!... E depois houve muitos, de partilhas nossas. Quando, bastantes anos depois, passou a sexagenário eu deixei um breve texto sobre ele, dizendo a verdade, só a verdade, (mas não) toda a verdade - pois muito mais haveria para escrever. Repito um trecho, apropriado para quem não o conheça: "Idasse é um sábio, apaziguador - até pessoalmente o sentimos, o seu convívio invadindo-nos de paz e isto sem recursos a quaisquer misticismos de pacotilha. Com profunda e única sageza convoca as concepções da "aldeia", daquele mundo tsonga do qual ele, ronga Tembe, provém. Trá-las naquela miríade de seres imaginados que nos rodeiam, míticos se se quiser. Nele vivemos num mundo de lagartos antropófilos e aves semagoiro, uma fauna dançarina panteão de pequenas divindades, poucopotentes, que entre nós cirandam, com e por mas talvez também contra nós, neste descaminho constante, sempre a refazermos, tropeçando. É assim que Ídasse é um sábio, filósofo na sua maneira, antropólogo mais do que nós. E o maior artista plástico moçambicano."
Vendo agora duas obras suas, forma de quase me eviscerar - ainda por cima por cá pouco as valorizam. Falo um pouco sobre elas. A primeira constava de uma exposição que o Ídasse fez em 2002, apresentada na Associação Moçambicana de Fotografia. E que deu brado... pois eram desenhos de nus, como este que aqui apresento. Foi considerada pornográfica!, o que me ri disso e ele também, teve até de ser acompanhada de um cartaz vedando as visitas aos menores... Enorme demonstração do moralismo cristo-marxista vigente na elite político-administrativa local.
Vibrei com a exposição - naquilo de sonhar comprar tudo por atacado, coisa irrealizável pois então seguia já de salário de professor... Mas fiquei com esta "mulher escarificada". Pelo apreço que tive mas também por coisas cá minhas, uma ideia, mera especulação pois nada sustentada em investigação dedicada. Mas ainda assim acompanha-me a hipótese de que as escarificações femininas, formas de transição de estatuto etário e não só - e que demarcam onde "a mulher não é como peixe" - são uma codificação ("culturalização", se se quiser) das zonas admitidas como erógenas, assim um código da sexualidade legítima.
Ídasse Tembe (1955): "Sem título", pastel sobre papel, assinada e datada de 1998, Dim. - 30 x 45 cm
E esta segunda é um dos "Lagartos Dançantes" com que o Ídasse preencheu uma belíssima exposição em 1998, na qual fui mestre de cerimónias. Esses tais "lagartos", meio-míticos, meio-místicos, que acompanham o mundo, seus nossos "guardas", o panteão do qual o Ídasse é áugure, o único que eu conheço, talvez mesmo o único resistente.
Porventura o gosto eurocentrado fará encolher os ombros diante destas pérolas. Que posso eu dizer?