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Nenhures

Nenhures

24
Dez20

A elisão dos cristãos

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(Bruxelas)

O que está acima, imagem e legenda, é um postal que deixei abandonado em rascunho na Páscoa de 2019, aquando dos terríveis atentados no Sri Lanka e a propósito das comunicações de Barak Obama e Hillary Clinton, então lamentando os atentados aos "adoradores da Páscoa". O dístico toponómico é de uma rua de Bruxelas que me chamara a atenção - e tem uma origem bem prosaica, sem pingo de "manifesto", pois apenas ecoando a história mais ou  menos mítica dos rituais religiosos locais, para além de ter uma versão francófona algo incorrecta. Mas recupero-o nesta quadra cristã, religiosa e cultural. Não tenho agora grande paciência para elaborações "globalizantes" sobre este folclore "interseccionalista" que está na moda, decerto que já candidato a "património intangível" da UNESCO, entre ranchos de "cante", "caretos" e agitadores de "chocalhos". Entre o qual tais "homens cristãos", cultuais ou meros culturais, são sempre pontapeados em detrimento de outros cultos, esses sim sacralizados. E, já agora, por ali ou acolá, erradicados quando não dizimados. Face ao silêncio propagandístico, académico e subsidiado. Ambiente de anuência que é, com toda a certeza, refracção do nosso complexo de culpa. Cristão. Ateu cristão.

 

21
Out20

O Sequestro da Minha Mãe

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(A Mãe de Franz Marc, 1902)

A minha mãe Marília tem 94 anos. Há pouco mais de uma década que vive numa "residência". Foi ela e o meu pai António que nos anunciaram a sua opção de assim continuarem, suprema forma de consciência e, mais do que tudo, coragem. Alguns anos depois o meu pai morreu. Ela seguiu, continua. Cada vez mais só, desaparecida a sua geração, familiares, amigos, colegas, até alunas. Valem-lhe os bons cuidados "residenciais". E a estremosa filha, genro e noras. E tanto também o meu mano-velho, que o Atlântico apenas fisicamente aparta. Não tanto o meu angustiado descuido. E alguns lampejos de netos e bisnetos, em família carregada de emigrantes.

Desde Março que dela nos apartámos, em precauções até anteriores às normas estatais. Pois família informada e racional, e também de médicos, de gente nada negacionista dos cuidados face à gravidade disto que passamos. Depois, meses passados, já na alvorada do Verão, passámos a ter direito a visitá-la. Um visitante por semana, meia hora apenas, no exterior das instalações, no aprazível jardim. E em grupos íamos vê-la, alguns apenas à "paliçada" do jardim, saudávamos, a mostrarmo-nos, e falávamos breves minutos. Depois um de nós entrava para o breve período, conversando sob as árvores e junto ao lago onde tartarugas fazem as vezes da fauna bravia.

Há mais de dois meses surgiu um surto de Covid-19 na residência. Infecções em vários funcionários e em metade dos residentes, estes octogenários e nonagenários. Mas não na minha mãe. As visitas foram canceladas, mesmo aos residentes que não haviam sido infectados. Como é óbvio sem qualquer razão sanitária para a estes se lhes vedar as visitas, nos moldes sanitários vigentes. Mas compreendemos a angústia da instituição e a escassez de recursos humanos que adveio - e mesmo sabendo nós, até profissionalmente, que este isolamento nos idosos acelera, e muito, os síndromes demenciais.

Os residentes foram recolocados, apartando os infectados dos outros. E confinados aos aposentos. A minha mãe - pela primeira vez desde os seus tempos de estudante - passou a partilhar um quarto com uma "vizinha". Lamentou-se-me um pouco, dessa partilha de espaço e de ao quarto estar confinada. Bisneta de militar, neta e sobrinha-neta de militares, filha e sobrinha de militares - de oficiais da Flandres a cadetes do 28 de Maio, tantos depois coronéis que in illo tempore o meu pai, algo civilista, dizia que aqueles almoços de família lhe faziam pensar que estava na Grécia -, irmã de militar, mãe de militar, mãe, sogra, tia de vários mobilizados para as "guerras d'África", diante desse seu lamento, eu, o benjamim estapafúrdio apesar de já neste estado, mobilizei-a para a guerra: "Mãe, a senhora ao seu lado não é sua colega ou vizinha, é uma camarada, isso não é um quarto é uma camarata! Esta é a sua campanha, a guerra contra os Covid-19!". Numa réstia de força riu-se, de lá, num "é isso, filho, esta é a minha guerra!". Mas à minha irmã confessou-lhe, em visceral ironia, "aqui fechada no quarto estou a cumprir uma pena?".

Entretanto passaram meses, nenhum dos residentes infectados adoeceu. E cumpridas foram as sucessivas rondas de testes requeridas. E há já três semanas que não há qualquer razão para que se impeçam as visitas. A não ser as delongas burocráticas - dizem-me que as autorizações da Administração da Saúde, uma qualquer absurda "desinfecção do edifício", sei lá o que mais.  Entenda-se bem, a única razão para que não possamos visitar a minha mãe é o pânico institucional, a histeria. E a modorra burocrática. Uma mescla que é apenas crueldade. Inconsciente crueldade. E assim está a minha mãe sequestrada! Apenas isso, tudo isso. E, tão audivelmente, a definhar. Tão dolorosamente a definhar.

"Escreve", dizem-me, autorizam-me ... "escreves sobre tudo, escreve sobre isto", sobre o sequestro da minha mãe. E, decerto, o das mães e pais de tantos outros. Há semanas que o ensaio. Mas que dizer?, pois quando o começo só ouço Brel, o Brel do meu pai que me faz falta, o Brel do meu pai com a minha mãe. Porque ele cantou tudo isto, nisso dizendo o que era necessário. E cantou que fossemos homens. Sede-o, sejamo-lo. Conscientes mas sem esta absurda, disparatada, crueldade.


(Les Deux Fauteuils, original de 1953)

J'ai retrouvé deux fauteuils verts / Dans mon grenier tout dégoûtant / C'est le fauteuil de mon grand-père / Et le fauteuil de grand-maman // L'un est usé jusqu'à la corde / Souvent l'on dormit dans ses bras / Il est lourd de la sueur qu'il porte / C'est le fauteuil de grand-papa // L'autre presque neuf n'a de-ci de-là / Que quelques tache d'argent / Sur le dossier et sur les bras / Grand-mère y a pleuré dedans // Tout petit home de grande joie / Vous les connûtes encore amants / Se tenant tendrement les doigts / Disant les mots qu'on aime tant // J'ai retrouvé deux fauteuils verts /Dans mon grenier tout dégoûtant / C'est le fauteuil de mon grand-père /Et le fauteuil de grand-maman
 
 
E por isso prossigo: 
 
 
(Les Vieux, original de 1963)
 
Les vieux ne parlent plus ou alors seulement parfois du bout des yeux / Même riches ils sont pauvres, ils n'ont plus d'illusions et n'ont qu'un cœur pour deux / Chez eux, ça sent le thym, le propre, la lavande et le verbe d'antan / Que l'on vive à Paris, on vit tous en province quand on vit trop longtemps / Est-ce d'avoir trop ri, que leur voix se lézarde quand ils parlent d'hier? / Et d'avoir trop pleuré, que des larmes encore leur perlent aux paupières? / Et s'ils tremblent un peu, est-ce de voir vieillir la pendule d'argent / Qui ronronne au salon, qui dit "oui", qui dit "non", qui dit: "Je vous attends"?
 
Les vieux ne rêvent plus, leurs livres s'ensommeillent, leurs pianos sont fermés / Le petit chat est mort, le muscat du dimanche ne les fait plus chanter / Les vieux ne bougent plus, leurs gestes ont trop de rides, leur monde est trop petit / Du lit à la fenêtre, puis du lit au fauteuil et puis du lit au lit / Et s'ils sortent encore, bras dessus, bras dessous, tout habillés de raide / C'est pour suivre au soleil l'enterrement d'un plus vieux, l'enterrement d'une plus laide / Et le temps d'un sanglot, oublier toute une heure la pendule d'argent / Qui ronronne au salon, qui dit "oui", qui dit "non", et puis qui les attend
 
Les vieux ne meurent pas, ils s'endorment un jour et dorment trop longtemps / Ils se tiennent la main, ils ont peur de se perdre et se perdent pourtant / Et l'autre reste là, le meilleur ou le pire, le doux ou le sévère / Cela n'importe pas, celui des deux qui reste se retrouve en enfer / Vous le verrez peut-être, vous la verrez parfois en pluie et en chagrin / Traverser le présent en s'excusant déjà de n'être pas plus loin / Et fuir devant vous une dernière fois la pendule d'argent / Qui ronronne au salon, qui dit "oui", qui dit "non", qui leur dit: "Je t'attends" / Qui ronronne au salon, qui dit "oui", qui dit "non" et puis qui nous attend
 
E termino com o que é necessário:
 
 
 
(Le Bon Dieu, original de 1977)
 
Toi / Toi, si t'étais l'bon Dieu / Tu f'rais valser les vieux / Aux étoiles / Toi, si t'étais l'bon Dieu / Tu allumerais des bals / Pour les gueux // Toi / Toi, si t'étais l'Bon Dieu / Tu n's'rais pas économe / De ciel bleu / Mais / Tu n'es pas le Bon Dieu / Toi, tu es beaucoup mieux / Tu es un homme // Tu es un homme / Tu es un homme

12
Out20

Especificidade lusa

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Não somos assim tão específicos:

A estação de rádio que ouço é esta, a Music3, pública belga centrada na música dita "clássica", muito ilustradamente polvilhada com as ditas "mundial" e "jazz". Quantas vezes cruzando-as, sequenciando-as, de um modo para mim - que não sou melómano/conhecedor - surpreendente, iluminador. Ouço-a por esse prazer. E porque tem muito interessantes falas e conversas sobre música. E porque me permite diariamente ouvir francês, que é uma língua aprazível mesmo para quem a domina mal, como é o meu caso. E porque me lembra Bruxelas, cidade na qual, afinal, muito gostei de viver. Digo tudo isto para que não venham atirar que me estou "a armar", a encenar-me culto, intelectual, neste meu desvendar.

E refiro a estação para vos dizer que hoje, no noticiário das 7, uma das questões brevemente afloradas foi a da necessidade belga de este ano reflectir sobre as formas familiares de comemoração do Natal ...

Não somos assim tão específicos.

28
Mar20

Os dias do COVID (21): o meu ponto de ruptura

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gripe espanhola.jpg

(Texto meio-desconexo em registo diarístico. Ou seja, blog:)

1. Saio na alvorada, após as 3 ou 4 horas de sono que vou tendo. Aqui na quinta aquém-Tejo as nêsperas estão a despontar, colho laranjas,  uma ou outra tangerina, limões para a limonada. Passeio sobre o orvalho. Fumo em jejum e fujo à introspecção. Depois tento escrever um trabalho que me é infinito e será infindo, leve-me ou não a gripe. Ensaio projectos que nunca farei - nem nunca teriam os parcos financiamentos que exigiriam, pois quem quererá antropologias agora, no futuro que aí vem? Procuro ler, o de tudo um pouco que trouxe. Mas a mente salta, leva horas a estacionar, nada avança. E resmungo o mundo, resmungo-o no tom superficial, esse que é o adequado ao (meu) bloguismo, procurando espantar os temores. Resmungo as delongas havidas nas medidas sanitárias no meu país, esperando estar a exagerar seus efeitos. Resmungo os delírios da "nova direita" internacional, mergulhada num ideário que irá custar imensas vidas e - também - mais desastres económicos. Resmungos apenas blogais pois não sou intelectual comentador - e agora tanto me dariam  jeito uns trocos avulsos para as contas domésticas, e assim desnudo-me na inveja que tenho desse dinheiro fácil da opinação. 

Mas, de súbito, choco com versões, discursos, que me são ponto de ruptura. Pois iro-me, na vontade do abismo abaixo dessa perfídia alheia. Diante desse desrespeito, malévolo. Se desonesto se irracional nem julgo. Nem apupo. Apenas desembesto. Aqui. Minha forma de sobreviver.

2. Desde meados de 1918 a "gripe espanhola" devastou mais do que a hecatombe da Grande Guerra, entre 20 a 30 milhões de mortos. Também em Portugal - uma das minhas bisavós foi vítima. Durante as comemorações do centenário do armistício apanhei este cartoon numa bela exposição sobre a I GM na Bélgica.  É notável a sua legenda: "Podendo viajar porque espanhola, ela não se poupa: é a gripe "globe-trotter!...", caricaturando a sua chegada à fronteira belga neste formato torero. A mensagem era explícita, anunciando o que agora se diz pandemia, a sua origem e o seu modo de disseminação. E denotava o contexto político de então: a "espanhola", e este toureiro que a ilustra, podia viajar pois a Espanha mantivera-se neutral na I GM.

Sabemos hoje que a gripe de 1918-1919 não teve origem em Espanha. Porventura brotou nos Estados Unidos. E ter-se-á disseminado na Europa através dos contingentes militares americanos, devastando uma população exaurida por quatro anos de guerra. Ora na Espanha neutral, sob regime democrático e imprensa livre, as notícias da epidemia espalharam-se, em contraste com o silêncio imposto pela censura militar vigente nos países beligerantes. Daí o epíteto "gripe espanhola", uma "má fama" assim devida à liberdade de informação. E à paz. À democracia, sempre frágil, sempre manipulável, sempre corrompível. Mas democracia.

3. Um século depois enfrentamos ameaça homóloga mas os seus efeitos serão menores pois amenizados pela parafernália industrial e o conhecimento médico - a "biomedicina", como a apoucam os (pós-)marxistas multiculturalistas identitaristas de retórica new age. Mas mesmo assim este é o pior momento das nossas gerações. Um confinamento generalizado que convoca cenários quase-apocalípticos, tantas vezes cine-ficcionados que assim julgados irrealizáveis.

Em cada um vinga a angústia pela saúde da familia e parentela espiritual. E até pela própria. E com a sua comunidade particular, com o que se passa(rá) no nosso Portugal e nos países outros, mais naqueles que nos são próximos em geografia ou sentimento. E, vá lá, em alguns, mesmo com o mundo. Mas também uma outra angústia, sobre o futuro: pois a crise económica que aí vem amarfanha as esperanças para os próximos anos. 

Nisto vou algo egocêntrico, alvitro sobre o que acontecerá connosco, comigo e com o meu grupo alargado, etário, social. Trememos agora, terrores com a sorte dos nossos filhos, angústia com a dos nossos pais, já avoengos. Suspendemo-nos à espera de "alisar curvas", como se um gráfico fosse totem e nos proteja. Talvez, talvez ... Mas depois dessa "curva achatada", daqui a um mês, dois meses, que nos sobrará para os próximos cada-vez-menos anos que nos restam, àqueles de nós que sobreviverem ao vírus? Que nos restará a nós, os pequeno-burgueses ditos "classe média", os que toda a vida viemos remediados, agora desempregados, profissionais liberais desvalidos, ou meros eventuais, já cinquentões ou sexagenários, aqui chegados em casais naufragados, endividados e tão taxados? A nós, que conseguimos boiar no rescaldo da crise financeira da década passada, pois então ainda algo mais jovens, mas nisso também feitos tão trôpegos? Que ocaso teremos?

Pesadelo comigo e com os outros que me ombreiam. Só imagino uma hipótese. Esperaremos neste "confinamento", e na "mitigação", algumas semanas enquanto for isso lei. E logo que esta aligeirar, e será em breve, pois "as coisas" precisam de voltar a funcionar, o show must go on, teremos de ser os primeiros a sair, antes da madrugada, a calcorrear a praça de Grève - que o agora propagandeado "teletrabalho" será para os outros, para os já empregados, a "aristocracia da classe média" como se disse naqueles séculos anteriores. Seremos assim a segunda vaga de convívio consciente e voluntário com o vírus. Agora os profissionais de saúde, da ordem, dos transportes, cidadãos até heróicos. E depois seremos nós, mas surgindo como lumpen, mão-de-obra não-institucional, apenas disponível, alguns ainda podendo arriscar negócios de parcas esperanças, a maioria procurando trabalhos para os quais não estávamos preparados, desqualificados assim. E teremos ainda outros problema: se então andarilhos poderemos voltar a casa, conviver com os filhos e pais, arriscar contaminá-los? Ou precisaremos, burguesotes habituados a sanitário próprio e banho diário, de nos recolher a compounds por razões sanitárias? E estes existem? Talvez, se o Estado (e as câmaras) convocarem esse demencial manancial de "hostais" e "hoteis" que brotaram no portugal disneylandico, na patética west coast que o país quis ser.

4. Neste meu remoer, nem duas semanas confinado, de súbito cheguei ao meu ponto de ruptura. Pensava um texto - de blog, claro - tipo "manifesto". Sobre a necessidade de articularmos com os países africanos (sim, a propósito de Moçambique, minha  paixão) o combate a esta pandemia. Nos quais os défices hospitalares são enormes. Certo é que as suas composições demográficas são diferentes, e outros serão os impactos da gripe. Mas também letais. Pois será agora que instâncias como a CPLP ou, e ainda mais, o acordo de Cotonu deverão funcionar. Mesmo que estejamos agora com a "corda na garganta". Pois se nos escandalizamos com as reticências do ministro holandês, algo alheando-se da situação espanhola, se exigimos comunhão na UE para o enfrentar da gripe e o avivar das economias, como poderemos virar as costas às realidades pauperizadas com os quais temos compromissos políticos e de ombrear humano?

Todos estes processos, internos, europeus, globais, exigem congregação. Entender o que se passa, e algo concordar com o que fazer - agora mesmo, amanhã. E depois de amanhã. O socorro sem pressupostos é uma obrigação humanitária. Mas a reconstrução, a reabilitação pós-covídeo, exige acordos. Lisura, mesmo que discordante. Em suma, temos que perceber como isto nos aconteceu, como o combater, e como o ultrapassar.

5. A pandemia tem razões naturais. Mas também tem causas políticas, complexas. A gripe foi potenciada pelos mecanismos ditatoriais do comunismo chinês, que protelou a divulgação da informação e as estratégias de combate à então epidemia. E que permitiu a disseminação da população residente na zona da inicial infecção. Foi uma típica reacção de uma burocracia totalitária, como várias que a história de XX tanto comportou. E para isso contou também com a fragilidade das Nações Unidas, e da sua OMS, que foi cúmplice desse protelar, timorata face ao poderio chinês. Assim assassino e devastador.

Há alguma similitude com 1918: então os países sob censura militar calaram a situação, a democracia pacífica anunciou-a e ficou com o ónus da sua origem, cujos custos não terão sido apenas simbólicos. Agora as democracias, na pluralidade das suas reacções e nas delongas habituais nos seus processos de tomada de decisão, estão sob uma enorme pressão. Um desastre. Com temíveis repercussões futuras, económicas, políticas. E culturais. É tempo para nos congregarmos frente ao vírus mas também em defesa da democracia. Adiar um pouco as querelas entre os mais liberais e mais estatistas, mais "politicamente correctos" e mais conservadores, mais do género mais da nação, mais laicos ou mais soberanistas, etc. Conciliar diferentes perspectivas em defesa do que é fundamental. Ou seja, ceder excepto no que é fundamental. Como meter isto num postal de blog, como meter o Rossio na Betesga?

6. Estava nisto, neste blogar, quando fui abalroado, causando o tal meu ponto de ruptura. Ao deparar-me com um postal de Facebook de uma colega minha, moçambicana. Algo soez, vil, abjecto. E, para minha dor, logo subscrito por meus amigos e antigos alunos. A tese propalada, mas não original, pois já por aí grassa, é simples: fomos nós, europeus (entenda-se, a UE) que contaminámos África. Portanto teremos (com os EUA) de pagar aos países africanos por essa praga que lhes enviámos. Não os chineses, frisa ela (e tantos outros), pois esses "respeitaram a quarentena", ao contrário dos indisciplinados europeus, ao contrário dos americanos (e antes dos britânicos) com suas diferentes políticas de absorção viral. 

Locutora e seus subscritores são pessoas com estatuto reconhecido, não meros "populares" prenhes de atoardas. Estou diante de "intelectuais orgânicos" a quem Estados e algumas fundações pagam para pensar e ensinar. Mas doutrinam estas falsidades. Ímpias. Por mais que sempre alardeando a sua refutação dos preconceitos, das discriminações, logo agora surgem reproduzindo, de facto ipsis verbis, o antigo cartoon que encima este postal. Para eles somos nós o torero de então, o agente disseminador, poluidor. Não porque somos um toureiro espanhol mas porque somos o branco "ocidental" - mesmo que tantos destes locutores sejam brancos, até "ocidentais".

Pois o que os move, o que os conduz na produção desta falsificação da história (hiper-contemporânea), é o ódio à democracia, aquela a que repudiam, com desprezo, como "democracia formal". O seu ódio ao mundo "pan-ocidental" (como disse Wallerstein, para o apartar do leste europeu e lhe agregar as antigas colónias de povoamento britânicas). Por isso, por esse efectivo amor ao comunismo e aversão aos países europeus, e ao mundo  democrático, vêm agora - neste catastrófico momento - reclamar que paguemos a África uma infecção que consideram termos causado. Elidem, como agentes do conto do vigário, as práticas chinesas que nos conduziram a este estado das coisas. Louvam a sua "disciplina" - construída, sabe-se, por formas de controlo totalitário com tecnologia intrusiva das liberdades individuais que resistimos a aceitar como desejáveis na democracia liberal [veja-se o breve filme]. E toda e qualquer informação que lhes questione as malvadas teses, o entoar do seu odioso comunismo, consideram falsidades dos americanos, aquilo da invectiva à "voice of America" como nos tempos soviéticos tanto se ouvia ...

 

(This is How China Beat the Corona Virus - should we copy?, por George Thompson)

Mas não é só a apologia do capitalismo de Estado chinês, através da falsificação consciente da realidade (ou seja, da violação grosseira das regras deontológicas que presidem a expressão pública de funcionários públicos académicos).  É a mistificação, doutrinária, de um "Sul" ("abissal" no jargão): por isso seríamos nós condenados a pagar pela pandemia que espalhámos em África. Não a China, que tem enormes contingentes de nacionais nos países africanos, que atrasou o reconhecimento e o combate à epidemia e que permitiu a fuga de milhões de pessoas da zona original do vírus. E não o Brasil, que segue uma política epidemológica ainda mais liberal - e desconexa - do que a dos EUA (ou da Suécia, ou as que a Grã-Bretanha e Holanda ensaiaram). Ou seja, essa apologia do "Sul" conduz a que nem "amarelos" chineses, nem "pardos" brasileiros sejam imputáveis. Apenas nós, "brancos" euro/norte-americanos. Ainda que tendo sido os nossos contextos abalroados e estejamos, repito, com "a corda na garganta". E para esta via intelectual nada importa o fenotipo do "intelectual", apenas o seu can-can de "orgânico" ...

E, para cúmulo da impudicícia destes locutores (e subscritores), tudo isto assenta na total desresponsabilização dos Estados africanos e das suas sociedades, de facto uma forma elíptica de (auto-)racismo. A epidemia é conhecida há já meses (ainda que tendo sido elidida pelo poder chinês, delenda est Carthago ...), e a sua travessia intercontinental acontece há algum tempo. Que fizeram os Estados africanos para se fecharem? Mesmo para barrarem estes horrorosos "diabos brancos", nós-mesmos, que transportamos malévola ou "indisciplinadamente" a temível maleita? Nem isso é questionado. E se nós o perguntarmos decerto que serão invocados, como explicação causal das ausências administrativas, o perene impacto estruturante, assim inibidor, do comércio de escravaturas, do colonialismo, do neocolonialismo, da discriminação dos afrodescendentes. E mais alguns detalhes, mais ou menos avulsos. 

7. Meu ponto de ruptura? O vírus não é um inimigo, é agente de patologia. O inimigo é este tipo de gente. Falsária. Interlocutora. Interna. Melíflua quando precisa (de subsídios, de investimento, de emprego). Abjecta, como agora. Na crise que aí vem é preciso defender a democracia. Não apenas dos soberanistas xenófobos, a crescente extrema-direita. Mas também destes racistas comunistas. Um democrata não defende caças às bruxas ou saneamentos ou limites à liberdade de expressão. Mas temos a obrigação de os apontar, aos falsários, de os refutar. Desprezar. De os combater, sim. Mas também de escarrar para o chão à sua passagem.

30
Mar19

O "Ponto de Encontro"

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[Postal para a rubrica Delito à mesa, no Delito de Opinião]

O "Ponto de Encontro" é o meu porto de abrigo aqui em Schaerbeek. Por cá a um estabelecimento como este chamam "petite restauration", o que pode esconder muito, até apoucando-o. Por isso prefiro, e muito, tratá-lo pelo nosso antigo termo casa de pasto, o qual deixa antever um local de alimento e estada, convívio.

A gente sabe-o, negócios destes não vivem das "estrelas" dos críticos ou da publicidade. Mas muito dependem dos patrões, de como estes sabem acolher a clientela, vinculá-la. E aqui é mesmo a casa do casal Belchior, o Luís e a Sónia, que muito justificam o "cinco estrelas", pois são gente com muito boa onda. Daquela rara de encontrar. Da qual se gosta não por qualquer atendimento particular, por alguma "atençãozinha" feita, pequeno favor ou informação. Simpatiza-se, e chega. E volta-se no dia seguinte.

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Alentejanos de Elvas, mas o Luís cresceu aqui no bairro (na "comuna") até à adolescência, quando a sua família fez "torna-viagem". Chegada a recente crise, trancada a actividade económica na zona, para cá voltou, num verdadeiro regresso à "origem". E se a história local da imigração portuguesa sempre remete para a praça Flagey, em Ixelles, onde se agregaram os patrícios desde os anos 1960s (por lá está o Fernando Pessoa a simbolizá-lo), desde então que também houve um menos conhecido fluxo alentejano ancorando a Schaerbeek - e tanto que no quarteirão acima está ainda a antiga sede do clube "Campomaiorense", encerrado há um ano. Por isso chegar ao "Ponto de Encontro" é encontrar um núcleo alentejano residente, de elvenses e de campomaiorenses em particular. Desde uns poucos de jovens recém-chegados, ainda quase glabros, até outros bem mais antigos, com meio século de Bruxelas, alguns também veteranos da guerra de Angola, com tanto mundo marchado.

Mas o que é muito significativo, demonstrando a qualidade do serviço e a excelência dos donos, é que tendo aberto o "Ponto de Encontro" em Outubro - antes exploraram um café distante apenas dois quarteirões - a casa não se encerrou na clientela portuguesa. Pois abundam os belgas, tantos deles acotovelando-se para o jogo das setas (o Luís é jogador federado, os jogos do campeonato nacional são constantes). Chegam espanhóis, romenos, ocasionais turcos, há um inglês habitual, e brasileiros, pois claro. É Schaerbeek, é Bruxelas, com a bela marca "Elvas", "Alentejo" mas não nela encerrada. Anima.

E há a comida. Sim, com a tal marca alentejana. Almoços durante a semana, e também jantares aos fins-de-semana. Nos quais a cozinha é reforçada pela amiga Sandra Madeira, elvense, claro está, imigrada há pouco e que antes explorou restaurantes em Elvas e Borba ("Sabores do Alentejo"). O cardápio é curto e variado, 3 pratos do dia nos sábados e domingos, 2 nos dias úteis. E o sistema é o de preço pelo "menu" (exceptuando a sobremesa).

Aqui partilho a bela memória do almoço de sábado passado:

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sopa Juliana, que estava como deve-de-ser, e que fora antecipada pela mini Super-Bock e por um apetitoso cacho de azeitonas, que se apresentavam em estado muito meritório.

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cesto de pão, com legítima manteiga Gresso, aqui acompanhado da até mítica água de Carvalhelhos.

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E o que convocara a atenção, migas com entrecosto. Não me é necessário adjectivar a qualidade do prato. Apenas refiro que os três convivas à mesa não deixaram migalha de migas, e roeram, despudoradamente, todas as fibras do saudado entrecosto. Saciados, com extremo agrado, foi como ficámos. Foi esta parte do repasto acompanhado de vinho da casa, dois copos de tinto Ermelinda Freitas por pessoa.

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Para a sobremesa aportou o não tão regional pudim Molotov, símbolo do acima referido cosmopolitismo da casa. Foi comido com agrado geral.

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E para rematar o café e a aguardente Mosca. A "bica" bem tirada, algo não tão usual assim por estas paragens (e outras). E a água-da-vida bem aprazível. Foi, aliás, repetida.

Preço? Com Molotov à parte - e, pormaior que julgo relevante, a dez minutos pedestres do coração do "bairro europeu", a praça Schuman e sua chusma de restaurantes "italianos", "irlandeses" e quejandos - o "menu" importa em 13 euros.

Em suma, belo repasto, excelente acolhimento, clientela simpática, e preço mais do que acessível. Quereis melhor conselho?

Ponto de Encontro, Av. Dailly, 150, 1030 Bruxelles (encerra às segundas-feiras)

 

21
Mar19

Marjorie, o meu primeiro amor

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Marjorie foi o meu primeiro amor. Marjorie Hart de seu nome completo, uma jovem médica americana. Encontrei-a no emirado Sarrakat, onde ela era missionária adventista e prestava cuidados médicos gratuitos a uma população deles tão carente, isto apesar do tanto petróleo  que o país tinha, coisas típicas do atraso civilizacional. Mulher bondosa, corajosa, séria. E linda, loura de olhos azuis, bem torneada naquela magreza da vida frugal e dedicada que levava, deliciava no seu vestido azul de ganga com que a conheci - e pela sua memória ainda hoje me encanto ao ver uma mulher assim vestida.

Nunca lhe disse do meu amor. Um pouco por timidez, a princípio. Depois, uns meses após a ter conhecido, pois percebi-a apaixonada pelo Michel e preferi calar-me, compreendi o quão inútil seria declarar-me. Pois era óbvio que ela o preferiria. Lembro-me ainda, sempre a lembrarei, da angústia desiludida sentida ao entrevê-los beijando-se ...

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Ele era piloto de caças, bem apessoado, daquele tipo apreciado pelas mulheres, e ainda por cima célebre. Pois sobre as imensas aventuras do Michel (Tanguy) e do amigo, o Ernest (Laverdure), já havia vários livros e também uma série de tv, "Os Cavaleiros do Céu", muito popular. Enfim, eram umas verdadeiras estrelas, e com tudo isso as mulheres caíam-lhes nos braços. Que hipóteses teria eu? Para tudo piorar nessa época eu só tinha seis anos, como poderia cativar uma adulta? Decidi calar-me e esperar. Presumi que o Michel partiria, deixando-a. Ele era um tipo decente mas com a vida que levava não parecia possível que fosse manter um namoro ali.

Ele e o Ernest, tinham vindo de Mirage apoiar Azraf, instruendo deles em França. Sarrakat estava em guerra civil. O anterior emir, Muhammad, o pai de Azraf, fora assassinado pelo seu ignóbil irmão Mokhtar, desejoso de reinar. Para isso aliara-se aos americanos, os da petrolífera Middle East Petroleum, que tinham acorrido para ultrapassar a ELF francesa, a qual até então tinha explorado, de forma justa e respeitadora, o petróleo local. Então eram outros tempos, ainda estava fresca a crise do Suez, e De Gaulle opunha-se às injustas ambições dos americanos. Também por isso Tanguy e Laverdure ali estavam, ajudando o aliado e amigo Azraf, um tipo muito decente, dedicado ao seu povo, e cuja vitória final muito a eles se deveu.

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Mas antes disso aconteceu a desgraça. Kaleb, que os acompanhara, fora preso e torturado. A tudo resistiu, menos à malvadez de Ross, o perverso assessor americano de Mokthtar. Este ameaçou-o com aquilo que os yankees, ímpios, já haviam feito nas Filipinas (e os russos copiariam na Tchetchenia): enterrá-lo embrulhado em pele de porco, condenando-o à maldição eterna. A isso o pobre Kaleb não resistiu, e denunciou o refúgio das tropas de Azraf. Então, enquanto estas conquistavam a capital, a aviação de Mokhtar arrasou o esconderijo, apesar deste sinalizado com o Crescente Vermelho, onde Marjorie tratava dos feridos.

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A notícia da morte de Marjorie devastou-me. A mágoa durou-me anos, feita desilusão com a vida. E andei cego e surdo ao amor. Há pouco todos festejaram as bodas de ouro do namoro do Ric Hochet com a Nadine, coisa bonita, claro. Mas, e tantos anos decorridos já não parece mal dizê-lo, naquela altura ela muito se me insinuou, dengosa, e eu fiz-me desentendido, desinteressado, pois ainda tão incapaz de esquecer a Marjorie. A Nadine acabou por desistir, ficou com o Ric Hochet, o qual de nada desconfiou, ao que eu saiba, e pelos vistos têm sido felizes. Ou fazem por isso, nunca se sabe. E o pai dela também tanto queria aquele casamento, julgo mesmo ter sido para se rebelar contra ele, coisas da juventude, que ela começou a meter-se comigo.

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Mas com o tempo tudo se vai esmoendo, ou pelo menos assim parece. Um dia, na vilória do Iorix, conheci a Ariel, uma francesa. E ficámos juntos por uns tempos. Mas foi difícil, ela seguia tristonha, desinteressada até, como se estivesse comigo por desfastio. Pois não tirava o Alix da cabeça, apaixonada desde que ele por lá passara, uns meses antes. Fui aguentando, na esperança de aquilo lhe passar, tentando verdadeiramente conquistá-la, sendo o compreensivo que consegui. Ela era tão bonita ... Mas a paciência foi-se-me esgotando, a enfrentar aquele seu alheamento mudo. Um dia, e arrependo-me disso, fui cruel, bebera demais, atirei-lhe à cara quem aquele Alix era, mais o seu Enak, qual o tipo daquela gente. Coitada, era uma campónia, jovenzinha naquele ermo, a mãe morrera, não tinha irmãs, o pai era um gaulês bêbedo e os irmãos uns imbecis, nada sabia da vida ou do mundo, sem ninguém que lho ensinasse. Poderia ter sido eu, se tivesse sido um pouco mais paciente. Mas como?, tudo acabou ali ... ficou chocada comigo, "miserável!", "mentiroso!", gritou-me em pranto, descrente e horrorizada. Comigo. Parti. 

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Uns anos depois, eu mais maduro, já nos meus dez, aboletei-me no "Triple-Six", o rancho da Comanche. E, claro, pouco depois de ali aportar estava de olho na dona, um naco de mulher, garanto, por máscula que pudesse parecer. Mas logo percebi o quanto seria difícil conquistar-lhe a atenção. Pois entre ela e o Red Dust havia qualquer coisa, ainda que eu julgue que nunca se tenham vindo a juntar. E também por causa do seu feitio, mandona, sempre patroa, agreste. Eu compreendi-a, e a toda aquela sua amargura disfarçada de comando. Mas os outros não a percebiam, e muito menos o Red Dust, que era um básico. Bom tipo, lá no fundo, muito bom vaqueiro, danado para o tiroteio, mas mesmo básico. E se eu abordasse o assunto todos se virariam contra mim. Agora não, posso falar, já todos terão  morrido, pelo menos do Dust tenho a certeza disso, velho e doente, nunca o imaginei tão assim demorado, mas da Comanche nada sei. Estou certo de que ela era assim, rude, seca, exigente, porque era estéril e geria mal isso. A mim não faria diferença. Tivesse-se ela juntado comigo e se quiséssemos filhos poderíamos ter comprado uns índios ou pretos, mulatos de preferência, como agora está na moda, mas então não era costume. Mas não poder parir tornava-a tão amarga, arisca, desiludindo-me de qualquer esperança. Além daquilo com o Dust, claro, mesmo sem andar nem deixar de andar. Mas como o assunto começava a não me sair da cabeça e se calhar já estava a transparecê-lo, pois apanhei o ruivo a dar-me uns olhares de soslaio nada amistosos, decidi avançar.

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Naquela altura havia poucas mulheres. E onde cheguei a seguir só havia a Chinook. Esta era uma beleza, e uma doçura. Ainda para mais depois de ter conhecido a Comanche, rude como essa era, fiquei logo encantado com a índia. Mas, caramba, ela e o Buddy tinham acabado de se casar, logo tiveram um filho, estavam felicíssimos. E o Longway era um tipo excelente, como há poucos, talvez o melhor que encontrei. E um homem não se mete com as mulheres dos amigos, isso é sagrado. E assim fiquei, visitava-os, gostava da família, do ambiente. Conversava-se, comia-se, às vezes com algum passante à mesa. De quando em vez perguntava-lhe se não tinha uma irmã parecida para se me juntar, e devia ter, pois ainda por cima os índios confundem as irmãs com as primas. O Buddy sorria, percebia o elogio que a pergunta trazia, mas ela negava, não me devia achar grande peça. Ou então não tinha mesmo. E eu segui sozinho.

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Algum tempo depois conheci a Pandora. Todos estavam apaixonados por ela. Ou, pelo menos, interessados. Não havia quem o negasse. Não eu, digo-o com franqueza. Claro, ela era uma beldade. Fina, elegante, bem cheirosa, um pano de seda pura. E insinuante, tanta promessa, sonhava-se ao olhar para ela. Mas era tão pedante ... Percebia-se, nos seus trejeitos e ênfases, ser ela uma daquelas mulheres que nos infernizam a vida, nas suas exigências, nos seus amuos, pois tanto sabendo o quanto nos atraía, amarrava. E seguia já assim sendo apenas uma miúda, então ainda só uma aranhiça a aprender a tecer teias.  O que viria a ser depois, quando já sabida? E também logo percebi não ser ela para mim, haveria sempre de preferir um qualquer tipo de boas famílias, daqueles de estudos em universidades finas, belos empregos, gente respeitável. Era a esses que ela, sedutora, dava esperanças, só por eles aparentava deixar-se perseguir,  fingindo-se presa. Deve ter conseguido.  Guardar um deles. Às vezes imagino-a agora, daquelas que envelheceu magra, seca, decerto. Deve andar por aí, impante camuflando as infelicidades causadas.

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Acabei por ficar com a Esmeraldita, foi o Hugo que nos apresentou, disse-lhe que tomasse conta de mim e ela assim o fez. Estivemos juntos uns anos, bastantes até. O mal foi nunca ter ela deixado aquela vida, dizia-me não querer depender de mim. Terá sido outra a razão, pois ela fazia bom dinheiro, os clientes muito a procuravam, e eu nunca fui abonado o suficiente para cobrir tudo isso. E talvez ela não gostasse assim tanto de mim, eu servir-lhe-ia de amparo, e os homens mais a respeitavam por a saberem mulher de alguém, ainda por cima de um branco. E também não me quereria largar por respeito ao Hugo, de quem ela gostava como de um pai, e se calhar ele era-o, apesar de ela ser toda preta, há casos assim, e por isso para ela eu seria uma missão, por assim dizer. Um dia fartei-me daquilo, de estar apenas para os intervalos, deixei-lhe o que tinha, disse-lhe para montar a sua barraca, instalasse-se ela como patroa para aguentar a velhice que haveria de vir, mesmo que ela ainda estivesse muito bem, magnífica, malvada, apetecível, filhadamãe, pois ainda a recordo, dias há que me vem o seu cheiro, e tantos anos passaram. Nunca mais dela soube, espero que não tenha bebido tudo o que lhe dei, não tão pouco assim. E que não tenha apanhado a maldita doença, que a tantas levou.

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Passados anos, um dia perto do Alto Ligonha, parei numa cantina ao entardecer. A dona era uma mulata gorda, ainda em bom estado, do Chinde, vim a saber. Pedi algo rápido para comer e seguir viagem mas ela mandou matar galinha e decidiu que nessa noite eu dormiria num dos quartos que alugava nas barracas das traseiras. E foi acordar o marido, que estava na sesta, pois ele decerto que gostaria de falar com um patrício, afiançou. Passado um bocado apareceu-me o homem, estremunhado, um velhote tuga vestido à monhé com um ar já muito acabado. Olhei para ele e pareceu-me que já o vira algures, "você não é o Figueira?", perguntei-lhe. O que gostou de ser reconhecido!, até rejuvenesceu, não se lembrava de mim mas mentiu que sim, e logo nos foi buscar verdadeiro vinho, daquele mesmo de uva, que não vendia à clientela local, "habituados às zurrapas", e perdeu-se em recordações. Contou que a idade viera e se cansara, decidira parar a venda ambulante. Arranjara aquela mulher, "um aconchego" disse, e eu a pensar que sim, que o seria, tanto que me retivera nas paragens, mamana atrevida ... E tinha-se estabelecido por ali, a cantina dava para ir vivendo. Foi simpático, quando lhe disse que estava a pensar em largar África logo me avisou "se você vai para a Europa vá falar com o capitão, um homem muito bem-posto na vida, e boa pessoa, grande amigo meu, diga-lhe que vai da minha parte, vai ver que ele o encaminha". Bom tipo, o Figueira, nunca fez mal a alguém, um enganozito aqui ou acolá, mas nada mais do que isso. Estava já no final, via-se e mais mo disse a sua patroa, depois, já na noite longa, apoquentado por qualquer coisa nas entranhas. E que ficasse eu descansado, ela estaria ali, cuidaria do velho até se acabar, afiançou.

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Quando cheguei à Europa procurei o capitão, no pretexto de lhe dar novidades do Figueira. Como não lhe sabia o paradeiro disseram-me para tentar na casa do senhor Hergé, muito seu amigo, que decerto me orientaria. Lá segui até Etterbeek, à rua Philippe Baucq, 33. O morador surpreendeu-se com o meu engano, apenas sabia que o homem ali nascera e crescera pois a casa tem uma placa a anunciá-lo. Mas, fosse como fosse, já há muito que morrera. Expliquei-lhe que quem eu procurava era um amigo dele, o capitão Haddock, se me poderia dar alguma informação. "O senhor capitão também já faleceu, há alguns anos", com homenagens públicas e tudo, do  próprio rei, sublinhou, coisas que haviam sido noticiadas nos jornais, concluiu. 

 

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Fiquei abalado, estava a contar com alguma ajuda. Entrei no café da esquina, a precisar de algo para ganhar ânimo. E estanquei, sem querer crer no que via. Meio a dormitar ali estava, sentado numa mesa, o Professor. Como seria possível?, conhecera-o já velho, deveria agora ter para cima de cem anos ... Sentei-me à sua mesa e nem se surpreendeu, percebi que seria habitual os clientes juntarem-se-lhe. Ofereci-lhe uma bebida e aceitou. Pedi cachaça, brasileira, talvez isso lhe avivasse algumas memórias. Mas não havia, então mandei vir tequillas. Perguntei-lhe que fazia por ali, resmungou qualquer coisa, até alheado, e foi o dono, flamão, que se chegara à mesa como se que a proteger o velho, que explicou, "o professor fora um grande sábio", em Praga, na Suíça, noutros sítios. E por isso uma universidade católica dera-lhe uma pensão de velhice. E que agora vive naquela rua, num asilo de velhos, umas portas ao lado. Todos os dias vai àquele café, anima, convive e beberica. E depois, para que não se perca, ao anoitecer vão-no buscar ou algum cliente o vai entregar. Mas, avisou, que não lhe faz bem exagerar nas bebidas. E tequillas? É demais para ele, disse. Aí o velho irritou-se, como se lhe roubassem algo, e começou a falar, de quando andara no Golfo do México, Caraíbas, até Antilhas, mais da Amazónia. Nas terras das tequillas, por assim dizer. Inventou um bocado, mas quem não o faz?

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Posto ele a percorrer memórias também as minhas se soltaram. Estar com o Professor lembrara-me o Hugo, também já morto, e deste deixei-me ir à Esmeraldita. E por aí atrás, até, muito pelo desanimado que estava nesse dia, me assomar a Marjorie. Carpi-a ali, de novo, décadas passadas, já entre bebidas em demasia. Nisso o velho, que já cabeceava, despertou. "Marjorie? Hart?", "conheço-a bem ... mas que ideia é essa dela ter morrido? Está viva. Bem viva." Resmunguei, que estaria ele enganado, pensando-o até mais senil do que já vai. Insistiu, que estava certo, filha de um colega dele, Hart, renomado professor de estudos bíblicos da Andrews, uma universidade adventista do Michigan, muito conferenciara com ele ao longo de anos. O pai sim, morrera, quando ensinava no Peru ou na Bolívia, não se lembrava com exactidão, depois de o ter feito na Bahia e no Paraná, onde haviam convivido. Quis crê-lo, apesar de ser impossível, alvoraçado pedi-lhe que me dissesse onde a poderia encontrar. Chamou o flamão, afinal "não sou patrão, só trabalho aqui" respondera-me, e explicou-lhe como me levar até ela, depois de fechar a casa. Pois ele não me podia acompanhar, estava muito cansado e tinha que mudar a fralda, já empapada. Levei-o ao asilo, e regressei, nervoso, impaciente, mais curioso sobre o que o Professor quereria dizer, não podia acreditar que falasse verdade, alguma confusão teria feito.

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Fechada a casa o flamão levou-me até  Tanguy e Laverdure, L'Intégrale 6, Bároud sur le Désert.  Azraf leidt de aanval uit de strip Tangy en LaverdO Michel e o Laverdure lá estavam também, com os seus Mirage, febris e heróicos, a combater no deserto, entre a Síria e Sarrakat, nem percebi bem, que confusas são as fronteiras no deserto, contra estes daesh de agora. Azraf, como sempre, com eles ombreia, liderando o seu bravo e fiel povo, enfrentando no terreno as facções sediciosas, umas a soldo dos americanos e outras dos russos, todas apoiadas por mercenários bem armados.  Em torno dele, e com a protecção dos incansáveis pilotos, e através de incontáveis sacrifícios, a vitória está imanente, apesar da inferioridade de meios.

 

E, para meu encanto, maravilhado, extasiado, afinal Marjorie está entre eles, dedicada. Pouco consegui falar com ela, nem me reconheceu, pois tanto mudei, imersa no seu corropio, tão atarefada nos hospitais de campanha, cuidando dos feridos apesar da sua exaustão e da falta de recursos. Fico siderado, surge-me igual, igualzinha, o tempo não lhe deixou qualquer marca, nem uma pequena mácula. Até vestida da mesma forma - pois a ganga não passou de moda, concluo. Olho-a, entre lágrimas, ainda apaixonado e agora até mais, e percebo como tudo lembro das suas linhas, de todas as suas entoações e meneios, do seu olhar, o azul do mar ali no deserto. 

De imediato me ofereço para ir buscar medicamentos que tanto escasseiam. Diz-me que estão distantes, e alcançáveis por travessia perigosa, algumas horas através de caminhos de deserto fustigados pelos mercenários pró-russos e pelos últimos rebeldes dos daesh, temíveis. Partirei na alvorada, Kaleb, já recuperado das sevícias sofridas, acompanhar-me-á.

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E percebo o que acontecera naquela época. De facto, não a havíamos visto morta. Aproveitando o raid da aviação de Mokhtar, Marjorie simulara a sua morte. Temera que o Michel, honrado como é, após aquele beijo se sentisse na obrigação de ficar com ela. E não o quis reter, prender, pressentindo que no tempo isso o tornaria infeliz, homem de acção que é. Que abnegação dela! Que sacrifício pelo homem que amava, que despojamento. Que mulher maravilhosa, ainda mais do que eu a recordava.

Exulto com este reencontro. Não tenho esperanças. Sei que após esta guerra o Michel partirá, com o Laverdure, para onde a sua França o convocar. Mas também sei que se antes fui uma criança, para ela sou agora um velho. Nem 30 anos ainda tem, e após esta aventura, todo este deserto, regressará ao seu Michigan deixando de ser "Marjorie da Arábia", quererá ter uma família, criar filhos. Precisa de um bom homem para isso, talvez da sua igreja ou, pelo menos, um bom cristão. Para mim para tudo isso é tarde demais. Mas estou feliz, já nada lamento, é bom amar. E lembro-me do que alguém me disse em tempos, julgo que foi o Jonathan, um bom rapaz, um bocado hippie demais, mas bom rapaz mesmo assim, e muito dado a saídas dessas: mais vale amar do que ser amado. É isso mesmo ... 

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Kaleb chama-me, já está lá fora com os cavalos, o sol desponta. Bebo o resto do uísque que o flamão me deixou. E vou andando. Será apenas mais um deserto.

***

AdendaTanguy e Laverdure, L'Intégrale 6, Bároud sur le Désert (Dargaud, 2016). Inclui 3 pequenas histórias, e duas histórias editadas em álbum em 1970: "O alferes Bang-Bang" (Lieutenant Double-Bang!), de 1968, publicada no "Tintin" português (#13 a 35, do 3º ano, 1970), e "Luta no Deserto" (Baroud sur le Désert), de 1969, publicada no "Tintin" português (#29 a #51, do 4º ano, 1971)).

Desenho de Jijé, argumento de  Charlier. "Tanguy e Laverdure" surgiu no primeiro número da revista Pilote (1959), e o seu desenhador era Uderzo, que abandonou esta obra em 1966 por estar demais atarefado com Astérix. O livro integra um dossier sobre a série e sobre a folhetim televisivo "Os Cavaleiros do Céu", e uma bela entrevista com Benoît Gillain, filho de Jijé e também autor de BD, sobre a carreira do pai.

 

17
Dez18

Flândria

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Tão (abissalmente) estuporado ando que esquecera o aviso que um patrício me dera para hoje, para ter cuidado "que o problema destes gajos é com os turcos, os pretos e os árabes mas depois começam e vai tudo, nós, os espanhóis, todos ...". Saio de manhã, como sempre viro à direita, na via de Schaerbeck, o "bairro turco" como ironizo, a 200 metros a mercearia portuguesa, plácida conversa sobre o cartaz (ontem afixado) de "Roberto Carlos em Bruxelas" enquanto me abasteço das cápsulas Nicola. Avanço mais 500 metros, ao café-restaurante compatriota, nada bebo que ainda não é meio-dia, resmunga-se o pequeno nevão de ontem e a reviravolta do Porto, ainda hesito se beberei um bagacinho "só para aquecer", mas há que manter o nível. Volto a casa, enquanto cozinho uma destas minhas trapalhadas vou fumar à varanda e ouço tantos estampidos e gritaria que julgo haver festa ali ao Cinquentenário, que raio de dia, com este frio, para a fazerem. Senil estou, é a minha filha que me convoca para todas estas sirenes. Pois aqui mesmo, a 500 metros, se virando à esquerda, na via do "bairro europeu" estão os fascistas flamengos (ou flamões, como aqui dizemos) a manifestar-se, a armarem confusão entre o tal Cinquentenário e o Berlaymont, esse que dista cá de casa tanto como o café Luanda se aparta do café Polana (ao lado do Frutalmeidas, para os distraídos). Não que seja eu europeísta radical, e que apupe a "nação", patriota que sou (sim, sei que o termo provoca o sorrisinho adamado dos esquerdinhas funcionários públicos). Mas um tipo vê, na vizinhança literal, esta turba fascista - não muitos, 5000 numa cidade onde há pouco 75000 desfilaram por uma melhor política climática. Mas violentos. -, carregada de estandartes nacionalistas, os desses que apoiaram a ocupação alemã na I GM, o dos rexistas que apoiaram a Alemanha nazi, e percebe-os. Têm tanta legitimidade como os catalães, e têm os mesmos propósitos, não nos enganemos com as retóricas e os meneios.

Os estampidos já pararam, agora escasseiam as sirenes, a família está na calma dominical. E o pai a blogar o seu desprezo pelos fascistas portugueses, esses que desde Bolsonaro gozam com os "moderados", pequena gente sem mundo ("sem cabaret" como li o outro dia) e sem dignidade. Gente incapaz de perceber o até egoísta "mas depois quando começam vai tudo, nós, os espanhóis, todos ...". E para com os patetas que foram à escola e chegaram a doutores que vêm falar da importância das "identidades históricas", como se estes nacionalismos fossem um minério semi-precioso, coisa natural, inultrapassável. Pois se assim é convirá lembrar que os primos destes gajos emigraram para a África do Sul onde eram uns pés-rapados imundos. E horríveis seguidores da jihad da sua igreja reformada. E que os avós destes gajos emigraram para o Congo. E disso é melhor nem falar. Ou seja, para quem não gosta de imigrações bem que podiam ter vergonha na cara. Tal como os "venturinhas" e os CDS-Bolsonaros que se meneiam por Lisboa. É mandá-los para Ramallah. Parece que ficarão bem servidos.

13
Dez18

O Clima, aqui em Bruxelas

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(21.11.18)

Ontem cerca de 300 estudantes liceais manifestaram-se contra a global apatia institucional face às emissões poluentes e seus (muito) presumíveis efeitos climatéricos. Foi aqui mesmo na minha vizinhança, geográfica e pessoal, uma congregação de alunos de várias escolas bruxelenses na praça Schuman, centro das instituições europeias, o coração do “bairro europeu” da capital administrativa da UE.

Os jovens apontam aos organismos multilaterais e governos nacionais o escamotear dos dados reais da situação ecológica actual e dos concomitantes indícios para o futuro. Exigem a divulgação da gravidade da situação e aceleração de novas políticas. Não há aqui o bucólico do sonho pastoral, anti-industrialista e anti-capitalista, que alimentou ecologistas de décadas passadas. Há sim a consciência da necessidade de preservação ambiental – algo que este mais-velho poderá sintetizar como implicando novos moldes produtivos, novas formas de consumo, com novos processos de produção identitária. É um novo radicalismo, bem distinto dos anteriores radicalismos estetizantes, e nisso eunucos, dos ecologismos ocidentais.

A reacção a esta demonstração foi muito interessante. Um dos vice-presidentes da Comissão Europeia, o finlandês Jyrki Katainen, desceu à praça para conversar com os jovens manifestantes (algo que um político da Europa Austral dificilmente faria). E chegou, simpaticamente, com os argumentos de medidas já tomadas ou anunciadas sobre reclicagem ou substituição de plásticos, temas actuais, decerto que importantes e saudáveis, mas de facto apenas presumidas panaceias face à grandeza dos desafios que se enfrentam, até símbolos da modorra político-institucional. Ou seja, Katainen veio, simpática e até paternalmente … desconversar, elidir o fundamental que os manifestantes colocam, assim tentar inconsciencializá-los (algo que um político da Europa Austral facilmente faria), acantoná-los no comezinho do “ecologicamente aceitável” e do folclore a que muitos bem-intencionados ainda se deixam vincular.

À melíflua iniciativa de Katainen a reacção deste jovens foi fantástica. Mal ele enunciou as suas ideias apaziguadoras, o rame-rame do costume, face a quem apela a um debate sobre verdadeiras soluções, um dos manifestantes, um tipo para aí com 17 anos (!) , teve o sangue-frio de improvisar, clamando “Temos uma mensagem para o Vice-Presidente da CE“: “Dois minutos de silêncio“. E todos se calaram, olhando para o homem.  Pois para resposta à desconversa que melhor do que o silêncio?

Isto sim, é um grande radicalismo. O radicalismo nada folclórico do realismo. Exigente.

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Adenda: Deixo um trecho de um documento dos manifestantes. Pode ser que os adultos, ainda que decadentes e já degenerados, possam aprender algo:

People have underestimated the power of silence. The omission of climate change facts and solutions has prevailed for way too long in our society – and this needs to change immediately. Indeed, politicians, the media and institutions themselves censor each other due to their inherent conflict and because of external pressure. However, people do not yet know the scale of this censorship and how self-censorship has taken over in modern days and become a power that in fact, culminates in the control of everyone, everywhere. This is so ingrained in society that the population does not seem to either notice it, realize it, or care. We live in an increasingly smaller world, under the impression that it is a more open place, where public and private spheres have blended together and become almost undistinguishable. In this intensely globalized world people do trust politicians and institutions because, after all, in who would they trust? However, people do not see through the curtain. So many powers lie behind these organizations, but their sole interests are all the same: to not scare people and cause endemic panic to society, yet most importantly: to protect our economy, our insatiable economy.

08
Dez18

Os gilets jaunes em Bruxelas

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Ainda estou a por o gorro e as luvas e vejo-os passar, a estes “tiagos amarelos” de cá, tão poucos que os julgo a cauda da manifestação, mas logo me afianço que não, pois mais à frente vão uns poucos mais, tudo apressado com ar de quem já está na hora do almoço. Mesmo assim desço e chego-me à praceta – para um lisboeta Schuman é até risível –, feito mirone. Encontro-a vedada, só numa esquina dela saem alguns transeuntes, numa pequena passagem que apenas habitantes podem cruzar, ainda que por mim passem mais de uma vintena de filipinos (ou serão indonésios?, percebo que, estuporadamente, não os distingo de imediato), vindos sem o olhar embasbacado de turista ou os necessários apetrechos dessa condição. Serão talvez um distraído grupo de culto ou, se calhar, só comensal. Deste lado do arame, literal, está um grupo meio desasado, ouço o espanhol muito andino por aqui usual, três casais de velhotes gringos, gordões não-obesos, falam alto, como lhes é geneticamente necessário, e estão a adorar esta Europa que lhes coube, e mesmo à minha frente um jovem casal português, indeciso, a ela percebo-a, no seu casaco justo, muito bem torneada, muito bem mesmo, raiosparta que é raro ver alguém assim, e ele tem postura funcionária, cabelo ralo a escassear-se, e tudo nele me lembra um qualquer de Tennessee Williams. No pequeno impasse sorrio ao meu óbvio (e profético) estereótipo. E dada a gaguez muda na minha dianteira, avanço à polícia e pergunto como aceder ao metro ao que junto, feito sonso, um “o que se passa?”. Ela dá-me um sorriso lindo, resplandecente, flamengo di-lo-ei, que também é a única coisa que desvenda, sob aquele capacete e a armadura (parecida com aquelas com as quais os másculos oficiais da GNR espancam os recrutas), explica como contornar até a próxima estação e pede enfáticas desculpas pelo incómodo, devido a “uma manifestação”. Todos damos meia-volta e seguimos, os patrícios trintinhas fazendo por não notar, nem com aquele laivo de aceno ou recanto de sorriso, ser eu, barbudo encanecido sob gorro e ganga, um português, isso que o sotaque grita, e de ter feito para os esclarecer, talvez por coincidência, talvez por simpatia, vão lá eles saber ... Sigo atrás do pelotão, os do espanhol são tipo ciclistas da Colômbia, já estão quase em Ambiorix, os avulsos caminham em ritmo de sábado, os gringos bamboleiam palrando, o ainda casal (desculpem-me mas tenho que o dizer …) vai lento, mesmo à minha frente, nem sequer lhes vi as caras, mas repito-me o mudo apreço pela patrícia, ouvem-se sirenes ao longe, e zumbidos de helicópteros, e têm soado estrondos, daqueles que eu diria tiros se estivesse em Moçambique. Hesito, devo ir atrás destes até ao metro?, percorrer a cidade a ver a agitação, assim conhecer um pouco desta Bélgica, mais Valónia do que a outra mas ainda assim, fingir-me o ainda andarilho interessado, com prosápias de intelectual que fui, e até disso fazer um postal de blog, daqueles aos laiques e até comentários? Mas lembro-me que daqui a bocado o Chelsea joga com o City, acho que é esse, e inflicto, na via de casa vou a uma loja, onde nunca entrara, para comprar filtros, “bonjour” e é isso que quero, sff, e o lojista, indiano, responde-me “bom dia”, e eu surpreso, a perguntar-lhe no meu atrapalhado francês como me percebera, e depois até se é de Goa, e ele segue, em português também trapalhão que não, mas “na minha loja anterior – e diz um bairro que eu não fixo – tinha muitos clientes portugueses”, “aprendi a falar um pouco” (e aprendeu) e, saltando para o francês, “quando o senhor entrou vi logo que o senhor é português”. Rio-me, agradado com a surpresa, e nisto de haver qualquer coisa de óbvio. E mais me rio, já caminhando para casa, com o tão óbvio “bon chic bon genre” do casalinho – não sei se já disse, a rapariga era mesmo interessante, o rapaz, enfim … O mesmo bon chic bon genre dos intelectuais lisboetas, agora em reboliço entusiástico com estes “tiagos”, 1000 aqui, 8000 ali em Paris, ouvirei, por causa deles a clamarem o fim da República, da Europa, etc. Em elogios de “pastoral” à justeza do “povo” “rural”, como há anos elogiaram os “tiagos berberes” e “árabes” que pilhavam. Pois estes finos adoram o “povo” – desde que não seja o que aparece no “Preço Certo” da RTP ou nas tralhas das outras estações. E que não lhes perturbe o sábado bruxelense. Como dirá o lojista vizinho “vê-se logo que são portugueses”.

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O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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