O mundo está como está. Ou seja, continua como continua... Quino, em especial a sua Mafalda, é uma necessária inspiração. Para uma inquietude sem candura, algo que nada se conjuga com "causas" ariscas e convicções de mão na cintura, nas certezas de bolso tão do apreço de tantos. Enfim, para que possamos interrogar o 24 que chega.
Por isso deixo três filmes com o grande autor: um excerto onde narra o nascimento da imortal Mafalda (minha grande amiga, Filipe que sou...). E duas entrevistas longas em momentos diferentes da sua vida. Forma de fazer regressar aos seus livros. Maiêuticos.
El nacimiento de Mafalda
Entrevista a Joaquín Salvador Lavado «QUINO» creador de MAFALDA 1977 completa
Há polémica sobre um cartaz usado pelos professores, caricaturando António Costa. Não discuto a justeza das reclamações da mole docente nem a tipologia das suas acções reivindicativas nem a política do governo na área correspondente - nem sequer isso de Costa ter mentido quando se deparou com manifestantes nas comemorações do 10 de Junho.
O assunto é a caricatura de Costa que foi usada. Não gosto dela. Mais pelo detalhe dos lápis espetados nos olhos - que poderá ter um qualquer significado que se me escapa mas ainda que assim seja é vudu em demasia para este ateu.
O relevante é que até Costa se vitimizou, jogando a "carta racial", invectivando de "racistas" os portadores da imagem. Sendo logo seguido pelos seus acólitos: clamam que o uso de lábios desmesurados é um "estereótipo racista" e implicitam que a cobertura porcina aposta à cabeça de Costa também o é. E exemplo mediático dessa filiação é Carmo Afonso - a colunista que há um ano se dizia perseguida, censurada e criminalizada devido à sua russofilia mas à qual o jornal da SONAE continua a atribuir página inteira. Misturando a sua reclamação de "racismo" pictórico com a convocação de um assassinato cometido há três anos por um geronte veterano de guerra, Afonso aponta que é racista quem não vê "racismo" nesta agressão pictórica ao PM, pois "os racistas não reconhecem o racismo". Ora, e por outros não falo, isso irrita-me: pois não é a burguesota lisboeta que um Zé Sá Fernandes chama para falar da história do "Frágil", russófila ainda por cima, que me vem chamar racista...
É a caricatura desagradável? É. Mas é feita para isso. Incomoda alguns (a mim o tal aparente vudu...)? É feita para isso. É deselegante? Depende de quem vê, mas sê-lo-á para muitos, pois procura-o ser. Têm os tipos que a usam razão ou razões? É outro assunto.
É racista? Não posso afiançar das intenções do autor - pois não sendo ele caricaturista publicado não posso associar esta obra ao seu historial, nisso tentando perceber o seu fundo ideológico. Mas olhando apenas para este desenho - que é o que é possível - é evidente que ele entronca, até filialmente, na tradição da caricatura política portuguesa. Por um lado, a extrema desvalorização dos agentes políticos, como exemplifico abaixo: Bordalo Pinheiro retratando-os como suínos, em célebre desenho que viria a ser retomado por Vilhena, Alonso mostrando-os como fezes, ou Leal da Câmara retratando o rei D. Carlos como porco (!). Por outro lado, a utilização de um ferrete ferino, como Cid na sua "africanização" de Eanes, sua "bête noire", mas que não tinha um teor racista. Ou desbragado, como Vilhena na sua travestização e mesmo transvestização de Soares (o que diriam hoje estes "justiceiros" wokes, os espertalhoucos, se caricaturas similares surgissem).
E acima de tudo na utilização de traços físicos dos retratados/invectivados, exagerados até de modo histriónico, procurando o grotesco, por vezes agressivo, outros vezes até carinhoso. A penca adunca de Sá Carneiro (anti-semitismo, poderia dizer um seu fanático defensor), as lendárias sobrancelhas de Cunhal - aqui exemplificados com Vilhena - os rotundos lábios de Freitas do Amaral, como os viu António. Ou os lábios de António Guterres, em recente caricatura de Santiagu, premiada pelo estatal Museu Nacional da Imprensa e elogiada pelo seu director Luís Humberto Marcos.
Para estes lábios não há racismo?, dir-se-ia diante do atrevido e demagógico coro dos ofendidos de agora. Deixemo-nos de confusões. Este caso não se trata de um grupo de coirões a gozar com o feitio físico de um qualquer desvalido solitário - apoucando-o por isso, nisso insecurizando-o -, oriundo de Nepal, Senegal ou alhures, isso sim racismo. Trata-se de uns contestatários, talvez irritantes, agredindo simbolicamente um primeiro-ministro - cuja ascendência patrilinear é de portugueses asiáticos (goeses católicos), mas aqui invectivado tal e qual como se político unicamente descendente daqueles bárbaros que vinham com Pelágios e Urracas.
Tudo o resto é a mistura da falta de encaixe de António Costa, denotativo do autoritarismo sobranceiro com que vem olhando o país, e do afã dos acólitos, avençados ou assalariados, a aproveitaram-se destes estuporados "ares dos tempos"...
#JeSuisCharlie Entre este caso da grega "socialista mediterrânica" corrupta - essa que "enoja" Pedro Marques, o eurodeputado português ido dos governos de José Sócrates (e de Costa, e de Costa...) e candidato ao PE com Silva Pereira, braço direito do dito Sócrates, e com Leitão Marques, também governante do "engenheiro" e mulher de Vital Moreira, cabeça de lista do mesmo Sócrates (esta malta do do PS não tem qualquer vergonha na cara, e nunca mudará na sua cupidez abjecta) - e a pobre ainda que voluptosa Miss Croácia, expulsa dos estádios catarianos diante do silêncio d@s militant@s d@s "géner@s", a "Charlie Hebdo" no seu melhor...
Tão falado tem sido o caso, verdadeiro drama nacional, que nem é necessário resumir os episódios que o vêm alimentando: é chegado o ocaso de Ronaldo, fenece irremediavelmente o maior atleta português, o mais célebre desportista mundial? Ou, de maneira mais chã e imediata, deve ele ser ainda titular nesta campanha do mundial de futebol? E, ainda mais, é ele ainda credor de algum apreço dos patrícios?
Grassa o azedume avesso ao CR7. O qual não nasceu agora - convém lembrar que ainda em 2013, já ia o homem basto titulado e na ombreira dos 30 anos, ainda era recebido por adeptos portugueses com provocações elogiando Messi. E quem ao longo aos tempos tenha lido jornais digitais bem terá visto constantes coros de invectivas patrícias contra ele (tal como contra Mourinho, um fenómeno similar). Saudando insucessos, anunciando-lhe a degenerescência, a queda iminente, apupando-lhe feitio pessoal e a família, jurando-lhe malfeitorias sexuais ou aventando práticas consideradas "desviantes". Muito disso terá tido uma origem linear, o clubismo: formado no Sporting ele foi mal-amado e, depois - principalmente após um grandioso hat-trick na Suécia -, apenas pouco-amado por adeptos benfiquistas, monoteístas fanáticos sempre ciosos de garantirem o lugar supremo no panteão do King Eusébio, um pouco à imagem dos velhos (e já quase todos falecidos) sportinguistas irredentistas no clamor de que Peyroteo marcava mais golos do que Eusébio... Só que estes não tinham redes sociais nem jornais digitais para verter o fel.
Mas há uma outra razão, muito mais estrutural - cultural, se se quiser - para este azedume para com Cristiano Ronaldo, o qual agora irrompe de modo desbragado. É a sua personalidade, apupada como "egocêntrica". Nisso sendo considerada como desrespeitadora dos seus colegas de equipa e, por extensão, de todos nós, pois constitutivos da "equipa de todos nós", a sacralizada selecção nacional. E tantos reclamam face à inexistência de "humildade" no atleta.
Isto é interessante, pois qualquer "campeão" tem de ser egocêntrico. Só se é campeão, mestre e sábio numa actividade, através de uma dedicação afectiva e intelectual extrema: o "nerd" da informática, o "grande-mestre" de xadrez, o enorme maestro clássico, o prolífico romancista, o pintor abrasivo, etc., são indivíduos que podem ser mais ou menos simpáticos mas são aquilo a que chamamos "aéreos", "distraídos", vão "na sua"... Seguem ensimesmados - o que não sinónimo de enclausurados -, egocentrados. Por maioria de razão segue isso num atleta de alta (altíssima) competição, não só uma vida dedicada a uma disciplina férrea como a uma rotina total. E em que o egocentramento não é apenas uma predisposição para o devaneio imaginativo (do excelso programador informático ou do poeta esconso) mas muito mais o desvelo pelo próprio corpo - nisso assim um Ego hipercorporizado, em que uma leve cárie, o simples quisto, o comichoso calo são prementes questões sobre si-mesmo e não ligeiros incómodos dos quais tantas vezes nós, vulgo, nos abstraímos imersos nos nossos afazeres e mundanidades, dadivosos até.
Ou seja, a "humildade" do (grande) atleta (e do grande artista, do grande criador) é para consigo mesmo, existe na fidelidade às rotinas que o potenciam e possibilitam, e a sua altivez é a descrença na necessidade dessa auto-disciplina. E o "egocentrismo" é a sua condição, sine qua non, de existência - essa existência que nós tanto ansiamos, louvamos e até cantamos, berramos e abraçamos nos momentos de gáudio.
Vejo agora constantes queixas sobre a tal arrogância desmedida do CR7, sempre comparada com a humildade (generosa) dos campeões anteriores, nossos ídolos. Mas isso é tudo falso, pois os anteriores grandes campeões tiveram processos similares, principalmente os surgidos no sempre difícil ocaso das carreiras: Luís Figo, também ele um dia eleito Melhor Futebolista do Mundo, também ele já super-estrela neste mundo globalizado, em pleno estádio português durante a orgia nacionalista do Euro-2004 zangou-se por ser substituído e fugiu para os balneários ("foi rezar à Virgem Maria", veio depois dizer o sabido Scolari, pondo àgua na fervura naquele ambiente...); Futre (eleito apenas o 2º melhor do Mundo) fez birras clamorosas no Atlético de Madrid; o agora falecido bi-bota, Fernando Gomes, protestava durante o Euro-84 estar a viver "o pior momento da carreira" por não ser titular e depois veio a entrar em conflito com o seu tão querido clube devido a ser considerado algo vetusto; António Oliveira (um génio do futebol) e Rui Jordão (outro) nem se falavam na mesma equipa, tamanho o choque de egos, para sofrimento dos sportinguistas. O Enorme Carlos Lopes, ainda que tendo sido uma criatura de Mário Moniz Pereira, teve com este profundos desaguisados após a vitória olímpica. Joaquim Agostinho, tão simbólico do povo, era uma personagem irada, e ficou célebre a birra que fez durante o Tour de France, parando durante uma etapa (dez minutos ou mais) deixando o pelotão ir embora, apenas porque não lhe deram uma Coca-Cola (o falecido Carlos Miranda contava essa e tantas outras histórias em magníficas crónicas no "A Bola"). Etc.
Enfim, os grandes campeões não podem ser "humildes" (no sentido vulgar do termo). Podem ser dadivosos, até filantropos (CR7 é-o), mas têm de ser egocentrados, extremamente ciosos de si mesmos e nisso absolutamente convictos. "Férreos" "como o aço"! E a todos custa envelhecer, pois acham que ainda têm dentro de si algo que os outros não vêem - como não viram ao longo de todos os seus trajectos. Caso contrário não são grandes campeões, serão atletas talentosos, até bem sucedidos. Mas não extra-ordinários (assim mesmo, com hífen, para sublinhar que não são pessoas normais).
Qual a razão de a tantos custar a aceitar estas características dos seus campeões - mesmo que tanto fruam dos seus sucessos, em particular os no "desporto-rei", actual paixão nacional? Porque esta gente, estes atletas, quase sempre "vem de baixo". Ou, alguns, agora, da "classe média remediada". E ascendem ao topo, o das disponibilidades económicas e ao topo das propriedades simbólicas (a visibilidade é a moeda desta vertente). Transcendem as "ordens" pré-estabelecidas, as da velha sociedade tradicional. Fazem-no com estrondo. E nisso descuram demonstrar o "respeitinho", aquele que "é muito bonito", face ao "que deve de ser", nesse entretanto retorcendo o chapéu entre mãos, servis diante do destino que os fez subir. Enquanto nós outros para aqui andamos, raisparta, nesta merda de vida...
Enfim, deve Cristiano Ronaldo jogar hoje? É evidente que a decisão compete ao seleccionador Fernando Santos. Sobre cujo trabalho já aqui opinei, sabiamente.
Um velho e grande amigo, que tem a paciência de me ler nos blogs, acaba de me enviar esta mensagem acompanhada de uma legenda, na qual lhe detecto algum alívio: "Já foste!"
Este cartoon - identificado como "Volta ao Normal" de Gerhard Haderer - é o que mais relevante vi/li nos últimos longos tempos. Bateu-me, bem! Encontrei-o no mural de Alberto Ribeiro Lyra, um brasileiro com o qual tenho ligação desde os primórdios do FB por razões que já não lembro (conexão moçambicana?, bloguismo?), e que tem um mural magnífico, com constantes pérolas iconográficas, uma inteligência visual rejubilante. (Daqueles casos que me levam a praguejar quando ouço os patetas encartados a resmungarem contra as "redes sociais". Pois nestas, e assumo a arrogância, cada um vê/lê/encontra o que é. E quem só encontra mediocridades é porque é um medíocre, passivo).
Avante, este cartoon bateu-me bem! Porque diz o necessário nesta fase da maldita era covidocena. E, muito mais, nesta minha fase pessoal, aguentem lá este meu quase-porno intimista. O almoço foi singelo e saboroso, endógenos alguns dos comestíveis, verde o vinho, à mesa queridos familiares consanguíneos e espirituais, o dia está soalheiro. Agora vou dar um mergulho. Depois, secar-me-ei e afixarei este arame. A enfrentar o que aí vem. Tenham cuidado comigo! (cuspo, a la Clint).
Na sequência do assassinato do professor francês Samuel Paty, devido a ter mostrado caricaturas aos seus alunos, a pastora da Igreja Protestante de Roubaix, Sandrine Maurot, convidou os crentes de todas as religiões a "publicarem uma caricatura na sua própria religião, defendendo a liberdade de expressão".
(O meu muito laico sportinguismo é o meu sentimento mais próximo, ainda que imensamente distante, da religiosidade. Ou seja, resta-me isto ...)
Dificilmente se poderá falar melhor do que este cartoon. As comemorações públicas do 25 de Abril em pleno período de confinamento não são apenas um empurrão para que comecemos a sair de casa, violentando o gigantesco esforço que temos feito e que tem valido a pena. São, acima de tudo, um desrespeito por nós todos, os que realmente "ficámos em casa". É um sinal de inconsciência total do regime, do seu apartar-se do povo. Da superficialidade de quem ocupa os postos. É muito fácil dizer que quem se opõe às comemorações é contra a democracia e os seus (necessários) rituais. E é muito mais difícil pensar. Algo que é, já agora, um exercício democrático por excelência.
Eu sou ateu. Mas ocorre-me pensar que se o Papa reza (quase) só na celebração da Páscoa, se o clero em Portugal também o faz - e em articulação com o Estado, como é sabido -, a que propósito é que Sousa e Rodrigues precisam de centenas de pessoas em seu torno para um cerimonial?
São cidadãos eleitos? Falem sozinhos. Um de cada partido no friso, o PM idem. E, vá lá, um magistrado. E mostrem que são, realmente, apenas cidadãos eleitos. O resto? "Fica em casa". Isso é a democracia.
(Texto meio-desconexo em registo diarístico. Ou seja, blog:)
1. Saio na alvorada, após as 3 ou 4 horas de sono que vou tendo. Aqui na quinta aquém-Tejo as nêsperas estão a despontar, colho laranjas, uma ou outra tangerina, limões para a limonada. Passeio sobre o orvalho. Fumo em jejum e fujo à introspecção. Depois tento escrever um trabalho que me é infinito e será infindo, leve-me ou não a gripe. Ensaio projectos que nunca farei - nem nunca teriam os parcos financiamentos que exigiriam, pois quem quererá antropologias agora, no futuro que aí vem? Procuro ler, o de tudo um pouco que trouxe. Mas a mente salta, leva horas a estacionar, nada avança. E resmungo o mundo, resmungo-o no tom superficial, esse que é o adequado ao (meu) bloguismo, procurando espantar os temores. Resmungo as delongas havidas nas medidas sanitárias no meu país, esperando estar a exagerar seus efeitos. Resmungo os delírios da "nova direita" internacional, mergulhada num ideário que irá custar imensas vidas e - também - mais desastres económicos. Resmungos apenas blogais pois não sou intelectual comentador - e agora tanto me dariam jeito uns trocos avulsos para as contas domésticas, e assim desnudo-me na inveja que tenho desse dinheiro fácil da opinação.
Mas, de súbito, choco com versões, discursos, que me são ponto de ruptura. Pois iro-me, na vontade do abismo abaixo dessa perfídia alheia. Diante desse desrespeito, malévolo. Se desonesto se irracional nem julgo. Nem apupo. Apenas desembesto. Aqui. Minha forma de sobreviver.
2. Desde meados de 1918 a "gripe espanhola" devastou mais do que a hecatombe da Grande Guerra, entre 20 a 30 milhões de mortos. Também em Portugal - uma das minhas bisavós foi vítima. Durante as comemorações do centenário do armistício apanhei este cartoon numa bela exposição sobre a I GM na Bélgica. É notável a sua legenda: "Podendo viajar porque espanhola, ela não se poupa: é a gripe "globe-trotter!...", caricaturando a sua chegada à fronteira belga neste formato torero. A mensagem era explícita, anunciando o que agora se diz pandemia, a sua origem e o seu modo de disseminação. E denotava o contexto político de então: a "espanhola", e este toureiro que a ilustra, podia viajar pois a Espanha mantivera-se neutral na I GM.
Sabemos hoje que a gripe de 1918-1919 não teve origem em Espanha. Porventura brotou nos Estados Unidos. E ter-se-á disseminado na Europa através dos contingentes militares americanos, devastando uma população exaurida por quatro anos de guerra. Ora na Espanha neutral, sob regime democrático e imprensa livre, as notícias da epidemia espalharam-se, em contraste com o silêncio imposto pela censura militar vigente nos países beligerantes. Daí o epíteto "gripe espanhola", uma "má fama" assim devida à liberdade de informação. E à paz. À democracia, sempre frágil, sempre manipulável, sempre corrompível. Mas democracia.
3. Um século depois enfrentamos ameaça homóloga mas os seus efeitos serão menores pois amenizados pela parafernália industrial e o conhecimento médico - a "biomedicina", como a apoucam os (pós-)marxistas multiculturalistas identitaristas de retórica new age. Mas mesmo assim este é o pior momento das nossas gerações. Um confinamento generalizado que convoca cenários quase-apocalípticos, tantas vezes cine-ficcionados que assim julgados irrealizáveis.
Em cada um vinga a angústia pela saúde da familia e parentela espiritual. E até pela própria. E com a sua comunidade particular, com o que se passa(rá) no nosso Portugal e nos países outros, mais naqueles que nos são próximos em geografia ou sentimento. E, vá lá, em alguns, mesmo com o mundo. Mas também uma outra angústia, sobre o futuro: pois a crise económica que aí vem amarfanha as esperanças para os próximos anos.
Nisto vou algo egocêntrico, alvitro sobre o que acontecerá connosco, comigo e com o meu grupo alargado, etário, social. Trememos agora, terrores com a sorte dos nossos filhos, angústia com a dos nossos pais, já avoengos. Suspendemo-nos à espera de "alisar curvas", como se um gráfico fosse totem e nos proteja. Talvez, talvez ... Mas depois dessa "curva achatada", daqui a um mês, dois meses, que nos sobrará para os próximos cada-vez-menos anos que nos restam, àqueles de nós que sobreviverem ao vírus? Que nos restará a nós, os pequeno-burgueses ditos "classe média", os que toda a vida viemos remediados, agora desempregados, profissionais liberais desvalidos, ou meros eventuais, já cinquentões ou sexagenários, aqui chegados em casais naufragados, endividados e tão taxados? A nós, que conseguimos boiar no rescaldo da crise financeira da década passada, pois então ainda algo mais jovens, mas nisso também feitos tão trôpegos? Que ocaso teremos?
Pesadelo comigo e com os outros que me ombreiam. Só imagino uma hipótese. Esperaremos neste "confinamento", e na "mitigação", algumas semanas enquanto for isso lei. E logo que esta aligeirar, e será em breve, pois "as coisas" precisam de voltar a funcionar, o show must go on, teremos de ser os primeiros a sair, antes da madrugada, a calcorrear a praça de Grève - que o agora propagandeado "teletrabalho" será para os outros, para os já empregados, a "aristocracia da classe média" como se disse naqueles séculos anteriores. Seremos assim a segunda vaga de convívio consciente e voluntário com o vírus. Agora os profissionais de saúde, da ordem, dos transportes, cidadãos até heróicos. E depois seremos nós, mas surgindo como lumpen, mão-de-obra não-institucional, apenas disponível, alguns ainda podendo arriscar negócios de parcas esperanças, a maioria procurando trabalhos para os quais não estávamos preparados, desqualificados assim. E teremos ainda outros problema: se então andarilhos poderemos voltar a casa, conviver com os filhos e pais, arriscar contaminá-los? Ou precisaremos, burguesotes habituados a sanitário próprio e banho diário, de nos recolher a compounds por razões sanitárias? E estes existem? Talvez, se o Estado (e as câmaras) convocarem esse demencial manancial de "hostais" e "hoteis" que brotaram no portugal disneylandico, na patética west coast que o país quis ser.
4. Neste meu remoer, nem duas semanas confinado, de súbito cheguei ao meu ponto de ruptura. Pensava um texto - de blog, claro - tipo "manifesto". Sobre a necessidade de articularmos com os países africanos (sim, a propósito de Moçambique, minha paixão) o combate a esta pandemia. Nos quais os défices hospitalares são enormes. Certo é que as suas composições demográficas são diferentes, e outros serão os impactos da gripe. Mas também letais. Pois será agora que instâncias como a CPLP ou, e ainda mais, o acordo de Cotonu deverão funcionar. Mesmo que estejamos agora com a "corda na garganta". Pois se nos escandalizamos com as reticências do ministro holandês, algo alheando-se da situação espanhola, se exigimos comunhão na UE para o enfrentar da gripe e o avivar das economias, como poderemos virar as costas às realidades pauperizadas com os quais temos compromissos políticos e de ombrear humano?
Todos estes processos, internos, europeus, globais, exigem congregação. Entender o que se passa, e algo concordar com o que fazer - agora mesmo, amanhã. E depois de amanhã. O socorro sem pressupostos é uma obrigação humanitária. Mas a reconstrução, a reabilitação pós-covídeo, exige acordos. Lisura, mesmo que discordante. Em suma, temos que perceber como isto nos aconteceu, como o combater, e como o ultrapassar.
5. A pandemia tem razões naturais. Mas também tem causas políticas, complexas. A gripe foi potenciada pelos mecanismos ditatoriais do comunismo chinês, que protelou a divulgação da informação e as estratégias de combate à então epidemia. E que permitiu a disseminação da população residente na zona da inicial infecção. Foi uma típica reacção de uma burocracia totalitária, como várias que a história de XX tanto comportou. E para isso contou também com a fragilidade das Nações Unidas, e da sua OMS, que foi cúmplice desse protelar, timorata face ao poderio chinês. Assim assassino e devastador.
Há alguma similitude com 1918: então os países sob censura militar calaram a situação, a democracia pacífica anunciou-a e ficou com o ónus da sua origem, cujos custos não terão sido apenas simbólicos. Agora as democracias, na pluralidade das suas reacções e nas delongas habituais nos seus processos de tomada de decisão, estão sob uma enorme pressão. Um desastre. Com temíveis repercussões futuras, económicas, políticas. E culturais. É tempo para nos congregarmos frente ao vírus mas também em defesa da democracia. Adiar um pouco as querelas entre os mais liberais e mais estatistas, mais "politicamente correctos" e mais conservadores, mais do género mais da nação, mais laicos ou mais soberanistas, etc. Conciliar diferentes perspectivas em defesa do que é fundamental. Ou seja, ceder excepto no que é fundamental. Como meter isto num postal de blog, como meter o Rossio na Betesga?
6. Estava nisto, neste blogar, quando fui abalroado, causando o tal meu ponto de ruptura. Ao deparar-me com um postal de Facebook de uma colega minha, moçambicana. Algo soez, vil, abjecto. E, para minha dor, logo subscrito por meus amigos e antigos alunos. A tese propalada, mas não original, pois já por aí grassa, é simples: fomos nós, europeus (entenda-se, a UE) que contaminámos África. Portanto teremos (com os EUA) de pagar aos países africanos por essa praga que lhes enviámos. Não os chineses, frisa ela (e tantos outros), pois esses "respeitaram a quarentena", ao contrário dos indisciplinados europeus, ao contrário dos americanos (e antes dos britânicos) com suas diferentes políticas de absorção viral.
Locutora e seus subscritores são pessoas com estatuto reconhecido, não meros "populares" prenhes de atoardas. Estou diante de "intelectuais orgânicos" a quem Estados e algumas fundações pagam para pensar e ensinar. Mas doutrinam estas falsidades. Ímpias. Por mais que sempre alardeando a sua refutação dos preconceitos, das discriminações, logo agora surgem reproduzindo, de facto ipsis verbis, o antigo cartoon que encima este postal. Para eles somos nós o torero de então, o agente disseminador, poluidor. Não porque somos um toureiro espanhol mas porque somos o branco "ocidental" - mesmo que tantos destes locutores sejam brancos, até "ocidentais".
Pois o que os move, o que os conduz na produção desta falsificação da história (hiper-contemporânea), é o ódio à democracia, aquela a que repudiam, com desprezo, como "democracia formal". O seu ódio ao mundo "pan-ocidental" (como disse Wallerstein, para o apartar do leste europeu e lhe agregar as antigas colónias de povoamento britânicas). Por isso, por esse efectivo amor ao comunismo e aversão aos países europeus, e ao mundo democrático, vêm agora - neste catastrófico momento - reclamar que paguemos a África uma infecção que consideram termos causado. Elidem, como agentes do conto do vigário, as práticas chinesas que nos conduziram a este estado das coisas. Louvam a sua "disciplina" - construída, sabe-se, por formas de controlo totalitário com tecnologia intrusiva das liberdades individuais que resistimos a aceitar como desejáveis na democracia liberal [veja-se o breve filme]. E toda e qualquer informação que lhes questione as malvadas teses, o entoar do seu odioso comunismo, consideram falsidades dos americanos, aquilo da invectiva à "voice of America" como nos tempos soviéticos tanto se ouvia ...
(This is How China Beat the Corona Virus - should we copy?, por George Thompson)
Mas não é só a apologia do capitalismo de Estado chinês, através da falsificação consciente da realidade (ou seja, da violação grosseira das regras deontológicas que presidem a expressão pública de funcionários públicos académicos). É a mistificação, doutrinária, de um "Sul" ("abissal" no jargão): por isso seríamos nós condenados a pagar pela pandemia que espalhámos em África. Não a China, que tem enormes contingentes de nacionais nos países africanos, que atrasou o reconhecimento e o combate à epidemia e que permitiu a fuga de milhões de pessoas da zona original do vírus. E não o Brasil, que segue uma política epidemológica ainda mais liberal - e desconexa - do que a dos EUA (ou da Suécia, ou as que a Grã-Bretanha e Holanda ensaiaram). Ou seja, essa apologia do "Sul" conduz a que nem "amarelos" chineses, nem "pardos" brasileiros sejam imputáveis. Apenas nós, "brancos" euro/norte-americanos. Ainda que tendo sido os nossos contextos abalroados e estejamos, repito, com "a corda na garganta". E para esta via intelectual nada importa o fenotipo do "intelectual", apenas o seu can-can de "orgânico" ...
E, para cúmulo da impudicícia destes locutores (e subscritores), tudo isto assenta na total desresponsabilização dos Estados africanos e das suas sociedades, de facto uma forma elíptica de (auto-)racismo. A epidemia é conhecida há já meses (ainda que tendo sido elidida pelo poder chinês, delenda est Carthago ...), e a sua travessia intercontinental acontece há algum tempo. Que fizeram os Estados africanos para se fecharem? Mesmo para barrarem estes horrorosos "diabos brancos", nós-mesmos, que transportamos malévola ou "indisciplinadamente" a temível maleita? Nem isso é questionado. E se nós o perguntarmos decerto que serão invocados, como explicação causal das ausências administrativas, o perene impacto estruturante, assim inibidor, do comércio de escravaturas, do colonialismo, do neocolonialismo, da discriminação dos afrodescendentes. E mais alguns detalhes, mais ou menos avulsos.
7. Meu ponto de ruptura? O vírus não é um inimigo, é agente de patologia. O inimigo é este tipo de gente. Falsária. Interlocutora. Interna. Melíflua quando precisa (de subsídios, de investimento, de emprego). Abjecta, como agora. Na crise que aí vem é preciso defender a democracia. Não apenas dos soberanistas xenófobos, a crescente extrema-direita. Mas também destes racistas comunistas. Um democrata não defende caças às bruxas ou saneamentos ou limites à liberdade de expressão. Mas temos a obrigação de os apontar, aos falsários, de os refutar. Desprezar. De os combater, sim. Mas também de escarrar para o chão à sua passagem.
O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem