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A morte de Fausto (Fausto Bordalo Dias, como depois veio a ser conhecido) faz-me recuar até aos anos 80 mas também me ancora no presente. Logo me lembro, como a tantos acontecerá, deste "Por Este Rio Acima", um disco magnífico. E uma surpresa na época - pois para além do íntrinseco autoral era muito bem produzido, muitíssimo melhor produto do que era a norma de então, e em especial nos muito básicos oriundos da chamada "canção de intervenção", "cantautores" vieram depois a ser ditos. A indústria musical portuguesa não era tão má, tecnologicamente, como a cinematográfica (esta era verdadeiramente uma desgraça), mas era deficitária. "Por Este Rio Acima" mudou isso. O sucesso, comercial e de reconhecimento, foi enorme. Lembro-me - mas lamentavelmente não encontro via motores de busca - de uma deliciosa primeira página de jornal que dizia "Fausto, o Chalana da Música", noticiando um novo - e bem abonado - contrato com empresa discográfica do músico (que me diziam ser um tipo profissionalmente muito difícil, exigentíssimo, até em demasia), fazendo-o equivaler ao grande ídolo da bola de então...
Mas a memória deste disco também me traz para o presente. Pois em alguma imprensa e na academia de algumas ciências sociais (nisso também na antropologia) vem vigorando um discurso - dito "pócolonial" ou "decolonial" -, militante de uma simplificação demagógica do passado recente e da actualidade. O seu cerne é a afirmação da inexistência de uma "descolonização" intelectual no país, da total perenidade da mundividência colonial, imperial, saudosista, após-1974. Há até textos (o jargão chama-lhes "papers") publicados nos locais "da especialidade", botados por estrangeiros (brasileiros de preferência) ou lusos empenhados, que consagram essa perenidade. Sobrevoam, apressados, o "campo literário", desatentam a (sofrível, repito-me) cinematografia. E aguçam-se, vampirescos, sobre o mundo da música popular, neste último clamando a representatividade, como se universal, daqueles obscuros festivaleiros Da Vinci. E, mais ainda, reproduzindo uma interpretação abjecta de básica desse fenómeno pop que foram os Heróis do Mar. Esses mariolas, sempre avessos à rugosidade do real, sua complexidade e multiplicidade, a tudo o que não lhes convém às "causas" (e aos subsídios) esquecem, não só a existência como a real influência de objectos que marcaram o país, suas gentes, as mundividências. Lembro a magistral peça "Fernão, Mentes?" da Barraca, logo no início da década de 1980. E nesse já tão recuado 1984 o monumento - tão influente - que foi este "Por Este Rio Acima". Nem tantas outras coisas, as produzidas e as formas da sua recepção pública.
E continuam "por esses rios abaixo" os tais intelectuais. E nós-outros, os avessos à aldrabice "póscolonial", deveras embrenhados no encapelado da realidade, continuaremos a entoar - e mais agora na morte de Fausto -, "Quem conquista sempre rouba / quem cobiça nunca dá / quem oprime tiraniza / naufraga mil vezes ... Já vou de grilhões nos pés / já vou de algemas nas mãos / de colares ao pescoço / perdido e achado / vendido em leilão / eu já fui mercadoria / lá na praia do Mocá...". Tudo isto, complexo, que não lhes cabe na ladainha, com a qual vão ganhando a vidinha, videirinhos que seguem.
Desta vez não venho vender livros, como quando há meses - e para notório fastio de alguns - fiz, ao tentar impingir o meu "Torna-Viagem". Pois agora apenas dou: um texto longo – seria maior do que um opúsculo, se eu o fizesse como tal. Há anos participei numa homenagem ao historiador José Capela - a que teve este cartaz, que encima o postal -, grande figura da história de Moçambique e de Portugal em Moçambique. E do escravismo. Depois reescrevi o texto. Agora, como o nosso presidente vem recomendando que atentemos nesses assuntos, decidi divulgá-lo - é longo, repito, e não o escrevi para ser fácil, “amigável ao utilizador” mas apenas como dele gosto. E não é, decerto, ajeitável ao uso dos “activistas” de agora. E divulgo-o também para reavivar a homenagem a Capela, homem que esteve bem à frente do seu tempo e da maioria dos (pobres) pares.
Aqui fica a ligação ao meu: "José Capela: o escravismo em Moçambique como violência estruturante".
Sobre Capela antes deixara também:
- "José Soares Martins, de pseudónimo historiador José Capela", quando morreu;
- recensão a "José Capela, "Caldas Xavier. Relatório dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1884";
Rotineiras razões médicas levaram-me a Moscavide, tétrica localidade vizinha pois nas cercanias do Trancão. Na qual encontrei este estabelecimento, presumo que sede da consagrada sucursal olivalense "Casa de Frangos de Moscavide", esta sita no Largo do (saudoso) "Ferrador", relevante estabelecimento comercial que durante décadas nos convocou a "percorra Portugal de lés a lés, com meias Ferrador nos pés".
Tendo sido surpreendido, nisso impressionado, por esta "instalação", verdadeiro item de arqueologia urbana, fui assomado pelas recentes memórias, essas que inundam a imprensa, o do ressurgimento do "affaire Coimbra". Pois agora - na sequência de uma suicidária tentativa de censura de um artigo já publicado, como noticia o "Diário de Notícias" (e, já agora, como é grotesco ver a abjecta Fernanda Câncio no encalce de uma mulher que defende um homem acusado de más-práticas) - surgem dezenas de urubus "decoloniais" esvoaçando sobre a fétida carcaça do "abissal" ex-quarentão amante de Enver Hoxha, o tal Boaventura que consta meter a mão na pernoca das alunas, e grasnando histéricos contra o "extractivismo intelectual" que sobre essas coxas larocas ele - pelos vistos - exerceria. Sendo que alguns desses desses gramscianos orgânicos, 40 até, e vários deles até putativos africanistas, emanam da sede boaventuriana, após anos e décadas de silencioso conúbio com os atrevimentos do "Mestre" e a sua constante defesa das ditaduras mais abjectas, nesse aldrabão e desvairado (pós)comunismo anti-ocidental. Mas que agora, com escandalosa impudicícia, surgem mui corajosos na "denúncia" do tal "extractivismo" e quejandos pecados, pecadilhos e, acima de tudo, imensos dislates, do anti-democrático chefe, sábio de retórica sedutora na agregação de financiamentos. Para gente que desde há anos medra sob o arguto moleiro Sousa Santos é caso para lhes atirar o evidente "tarde piastes...". Ou, de outro modo, comeram-lhe da carne mas não lhe roem os ossos, os mariolas.
Mas enfim, o que venho aqui dizer - após ter chegado aos Olivais, fugido das redondezas da sede da "Casa de Frangos de Moscavide" - é sobre esse "extractivismo intelectual". Digo-o com o saber de experiência feita, "muitos anos a virar frangos": nas disciplinas retóricas, aliás ciências sociais, só os franganotes podem ser alvo de "extracção intelectual". E há muitos franganotes que se acoitam nas capoeiras dos galarós. Depois queixam-se? Churrasco com el@s, como agora tanto eles gostam de escrever, na sua patética empáfia libertária. Para mim que venha o churrasco com bastante piripiri, por favor. Para disfarçar o agreste sabor do desprezo.
No dia 22 de Junho, na próxima quinta-feira, no Porto (Casa Comum, sita na reitoria da Universidade). Um filme realizado por Isabel Galhano Rodrigues, documentando várias cerimónias oficiais decorridas no Gurué. E depois uma conversa dela comigo e com o Nazir Can. Quem quiser (e puder) aparecer será muito bem-vindo.
Sei que os meus amigos têm acompanhado com interesse os meus postais sobre temas gastronómicos. Assim sendo aqui regresso a essa matéria. Hoje com uma receita de maionese retórica, bem do agrado dos comensais... "alternativos".
"Os Princípios e as Práticas"
... comecei a analisar a crescente prevalência e maior visibilidade do poder cru em relação ao poder cozido [eu, jpt, detesto esses ditos "emoji" e por isso prefiro assinalar esta grosseira "apropriação cultural" da dicotomia do grande Lévi-Strauss com uns valentes !!!] tendo-me centrado numa das manifestações deste fenómeno, da vitória sobre o adversário ao extermínio do inimigo. Continuo agora a análise, centrando-me na segunda manifestação, a híper-discrepância (sic) entre princípios e práticas.
Uma Híper-Discrepância (sic)
A discrepância entre princípios e práticas é talvez a maior especificidade da modernidade ocidental. Qualquer que seja o tipo de relações de poder (capitalismo, colonialismo e patriarcado) e os campos do seu exercício (político, jurídico, económico, social, religioso, cultural, interpessoal), a proclamação dos princípios e dos valores universais tende a estar em contradição com as práticas concretas do exercício do poder por parte de quem o detém. O que neste domínio é ainda mais específico da modernidade ocidental é o facto de essa contradição passar despercebida na opinião pública e ser mesmo considerada como não existente. (...)
Este mecanismo de supressão das contradições reside no que designo por linha abissal, uma linha radical que desde o século XVI divide a humanidade em dois grupos: os plenamente humanos e os sub-humanos, sendo estes últimos o conjunto dos corpos colonizados, racializados e sexualizados.
Se é verdade que a contradição entre princípios e práticas sempre existiu, ela é hoje mais evidente do que nunca. (...)"
Boaventura Sousa Santos, "Os princípios e as práticas", Jornal de Letras, 17 de Novembro de 2021, p. 30.
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