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Nenhures

Nenhures

26
Nov24

Sobre a "Desconstruir o Colonialismo"... (2)

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Escrevi, com tamanho repúdio que até repulsa, sobre a exposição "Desconstruir o Colonialismo. Descontruir o Imaginário". É uma espécie de "pôr a cabeça no cepo" pois são cerca de 50 autores envolvidos, e todos tenderão a defender o seu objecto. Gente graduada e qualificada, desde a sua Comissão Executiva, encabeçada pela prestigiada historiadora Isabel Castro Henriques, a uma vasta Comissão Científica - da qual, como exemplo, saliento a investigadora da faculdade de Medicina Isabel do Carmo, que assim descubro especialista da história colonial portuguesa, presumo que nas suas áreas de referência Endocrinologia, Diabetes e Nutrição - ainda que estes assuntos não sejam abordados na exposição, nem nem tão pouco as questões da velha "Medicina Tropical". Juntos a um farto enquadramento institucional, o ISEG, o Ministério da Cultura através do Museu Nacional de Etnologia e a Comissão Comemorativa dos 50 Anos do 25 de Abril. Para além de um poderoso rol de patrocinadores: Gulbenkian, FCT, FLAD, Comissão Nacional da UNESCO, UCCLA, ISEG, Universidade de Lisboa...
 
"Zezé, queres pedir um financiamento para algum projecto?", logo disparou um amigo ao ler-me, provocando um unânime coro de sonoras gargalhadas entre os que nos rodeavam!
 
Tendo transcrito o postal no meu mural de Facebook aí recebi pedidos de melhores esclarecimentos, provenientes de duas investigadoras estrangeiras - uma norueguesa, outra brasileira - que fizeram longas pesquisas em Moçambique. Presumindo que elas não visitarão a exposição - apesar de estar programada a sua permanência no Museu de Etnologia durante um ano e de estar anunciada a sua itinerância -, respondi-lhes esmiuçando as causas do meu profundo desagrado com esta iniciativa estatal. Nisso alonguei-me nos argumentos e apresentei detalhes ilustrativos. Coloco-os aqui, retocados: 
 
1.  "Desconstruir (o jargão obrigatório) o Colonialismo"? "Descolonizar o Imaginário"? É normal, salutar, que durante as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e das independências das antigas colónias, se regresse a essa temática. Se celebre o fim do anacrónico império, se dissequem as suas características. Deixo ligação a um postal meu, "Passado Colonial", escrito há meses irritado com um conjunto de dislates que uma antropóloga vinda dos EUA disseminou na Gulbenkian entre os professores do ensino secundário. Ou seja, não trato de fazer a apologia do colonialismo, nem a sua higienização. Mas refuto o aldrabismo como ideologia do agit-prop académico.
 

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 (Painel com o rol de patrocinadores da exposição)
 
2. Como logo referi o problema não é o catálogo. Este contém 30 textos, decerto que desiguais, que apenas acompanham. Autores haverá que se defenderão dizendo que os conteúdos dos seus breves textos (cerca de 5 páginas cada) serão mais equilibrados do que os resumos expostos, e que também sofrerão a exiguidade de espaço textual disponível para resumirem as suas longas e complexas reflexões sobre matérias dos quais são especialistas. Poderão até - admito como hipótese - afirmar que as resenhas afixadas algo deturpam os seus textos. Serão "explicações" impertinentes. Pois o que conta é o conteúdo da exposição, o que é divulgado e "patente ao público" (e estará durante um ano). E que eles subscrevem, na sua totalidade.
 
Mas mais ainda, e também o referi, o problema fundamental não é a pobre execução do objecto-exposição físico. Ainda que seja pertinente questionar as razões daquilo. O Museu tem orçamento para actividades. E o rol de patrocinadores é enorme. O que aconteceu para os painéis (ou estandartes, se se quiser) serem tão descuidados? Não falo do catálogo, pois esse apenas acompanha (não tem grande impressão mas escapa). O que aconteceu na produção? Quais os critérios para a sua adjudicação?
 

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Pois a impressão dos painéis é descuidada, deixando-os de imagens pouco perceptíveis ou mesmo imperceptíveis. E a revisão, por superficial que fosse, aparenta ter inexistido. Por exemplo, esta fotografia de um grupo de mulheres em São Tomé no início de XX aparece em três diferentes painéis com erros crassos de atribuição (neste como "grupo de funcionários superiores da companhia de Moçambique, na Beira", noutro como "residência do administrador de Ribaué"). E, em termos textuais, é notável que o ror de académicos prestigiados subscreva uma exposição desta temática que informa, e o repete, que a independência da Guiné-Bissau foi unilateralmente proclamada em ... 1974. 
 
3. A esta pobreza "física" já associei a pobreza conceptual da exposição, apenas aqui recordo o anacronismo de consociar uma vasta dissertação textual sobre o colonialismo português a um conjunto de peças, como se de bric-a-brac, uma deriva oitocentista para ser simpático. Pensando que assim aos "africanos", "colonizados", se faz "falar" através dos seus artefactos. Como se o "imaginário" lisboeta, e dos seus arredores, se desconstrua com aquele "artesanato",  como se os colonizados sejam a máscara mapiko, a peça de Reinata - para quem não conheça deixo um texto meu sobre ela. E aquelas restantes peças avulsas..., num efectivo potlatch de primitivismo serôdio.
 
 

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4. O relevante nem sequer é o tema do enquadramento e funções requeridas ao Museu Nacional de Etnologia. Mas sim como esta exposição demonstra ser o contexto político nacional determinante intelectualmente na actividade de núcleos da academia portuguesa, em especial nestas áreas da história colonial. Convocando os profissionais para produzirem - ou se associarem, placidamente - discursos tão politicamente empenhados que panfletários, tudo a coberto do "simbólico" científico e institucional. Isto exemplifica-se com um dos últimos painéis que sumariza o fundo ideológico e o objectivo político desta tarefa. Enceta por um indiscutido "Na sociedade portuguesa, que se caracteriza por um racismo sistémico..." e segue num pedagogismo empenhado "Torna-se necessário proceder à alteração da forma de pensar o passado colonial para que, através da descolonização das mentes, se possa combater o racismo de forma mais eficaz.". Será que as pessoas não percebem o atrevimento - a "lata", em calão - na produção estatal de textos destes?
 

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É evidente que estes panfletos académicos, sob blindagem "académica", têm repercussão em alguma imprensa "gauchiste" de implantação nacional, e também para isso são produzidos. Em última análise, servem para os minoritários partidos de extracção comunista conduzirem a forma actual ("decolonial", peroram) de "luta de classes", a "luta de "etnias" e "raças", como agora se estipula. É a actividade dos "intelectuais orgânicos" e dos "publicistas" para transformarem a "etnia"/"raça"-em si em "etnia"/"raça"-para si. De facto, é isto este projecto de "Descolonização do Imaginário"... Com a história colonial portuguesa tendo como corolário a manifestação a propósito da morte de um cidadão norte-americano, convocada por grupos de extrema-esquerda, então mais ou menos na órbita do partido LIVRE.
 
5. Mais do que tudo, "Descolonizar o Imaginário" pode e deve começar por perceber que é uma falsidade o que estes intelectuais apregoam, que a sociedade portuguesa vive como um reflexo deste império, que estes cinquenta anos de democracia (grosso modo o equivalente ao tempo de efectivo colonialismo em África) mantiveram intactas as representações sociais, as mundividências portuguesas (ou, mais ainda, as existentes em Portugal). Ou seja, que o "imaginário" actual é similar, reflexo simples, do pretérito. Refracta o passado, claro. Mas não da forma mecanicista que esta exposição - e tanta propaganda política - o diz. (Por outras palavras, se há décadas vigorava o "marxismo" vulgar, mecanicista, agora vigora o "identitarismo" mecanicista, simplório).
 
E ainda mais, se é para "Descolonizar o Imaginário" então também será o âmbito de o fazer em relação aos imaginários africanos, sair do facilitismo dos registos que vigoram sobre a época, convocando as múltiplas leituras do colonialismo que então existiam. Implica isso menosprezar as palavras de Amílcar Cabral (evocado na exposição) ou de Mário Pinto de Andrade (que é ouvido na exposição)? Não. Mas qual a razão de não se ouvir/ler, por exemplo, Domingos Arouca? Ou ouvir, analisar, as múltiplas considerações de então e posteriores sobre o regime colonial? Estou a fazer a apologia do colonialismo? Ou estou a dizer que se trata de uma exposição no Museu Nacional de Etnologia, um trabalho congregando dezenas de académicos, no 50º aniversário do fim do regime colonial? Isso sim, seria dissecar as representações que temos sobre as múltiplas realidades coloniais, fazendo-as dialogar com discursos variados (e não com o panegírico de algumas, orlado com "arte" bonita).
 
6. Para além de outras dimensões criticáveis a exposição tem, na sua parte textual, dois grandes problemas. Que passarão despercebidos - e isso é o pior - ao "grande público", àqueles que desconhecem as temáticas. Mas reconhecer esses problemas reclama a vontade do espectador. Ou seja, são subjectivos. Um é a incompetência intelectual - que para ser reconhecida exige uma "dessacralização" textual, um afastamento de um texto afixado numa instituição museológica que vem com autoria de dezenas de "Senhores Professores". Quantos de nós, vulgares de Lineu, interrogaremos aquilo? 
 
Começo por aquilo que digo incompetência. Vários painéis atacam o "luso-tropicalismo", fazendo-o de modo básico e esquecendo as constituintes históricas da composição desse ideário, bem como sobrevalorizando-o, até contraditoriamente. Numa dessas investidas escreve-se "Em Lourenço Marques ... os jovens sentiam-se parte dessa "terra nova", apesar de serem brancos, negros, indianos ou mestiços - ou tudo ao mesmo tempo, como a mais brilhante poetisa do tempo, Noémia de Sousa. Como resposta, em Lisboa, a assustada elite colonial inventou o "luso-tropicalismo"...".
 
Sobre isto eu vou ser um pouco egocêntrico, até porque sei que os autores desta parcela cresceram em Moçambique e poderiam escudar a resenha que lhes foi feita do texto nessa empiria própria. Ora deste grupo de jovens, entre os que mais se vieram a celebrizar, eu conheci - superficialmente - Virgílio de Lemos, e tive o privilégio de induzir a publicação de dois dos seus livros. Conheci bem mais, com verdadeira amizade de visitas mútuas, o José Craveirinha - e também induzi a publicação de um dos seus livros. E ainda mais o Ricardo Rangel. Ora presumo (pois conheci-o menos) que o Virgílio e tenho a absoluta certeza que do Zé Craveirinha e o Ricardo - eles tão dados à impiedosa ironia - se ririam, mesmo, se fossemos ver esta exposição e lessem esta formulação.
 
Outro detalhe, que é hiper-significante mesmo que as pessoas nem atentem (o que demonstra o estado de sonambulismo ainda que activista). O repetitivo e frágil ataque ao "luso-tropicalismo" culmina na crítica da "lusofonia". O painel é pobre, o texto é naturalmente curto e, em meu entender, esquece outras componentes da sua formação. Mas tem o mérito de recordar, e bem, Alfredo Margarido que num opúsculo disse de modo suficiente o que era necessário dizer sobre a tralha. Eu nada sou paladino da "lusofonia", um ideário incompetente e frágil. Ainda por cima sofri-o, quando era a ideologia do lumpen do funcionalismo público socialista. Um dia até escrevi um enorme ditirambo contra aquilo.
 
Mas há dois pontos esquecidos nesta exposição:
 
1) a lusofonia já não é, trinta anos depois do seu vozear, uma ideologia dominante nos aparelhos de Estado. Pois é um discurso político tão incompetente que foi sendo engavetado, e isso não transparece na exposição, desesperadamente à procura da perenidade das representações - ou seja, agarrando-se à ideia, "denunciando-a", de que se antes dominava o "luso-tropicalismo" hoje domina a "lusofonia";
 
e pior ainda, 2) esse ideário da "lusofonia" teve em Portugal uma consagração estatal: o Acordo Ortográfico de 1990, o qual tendo sido ratificado por um governo do PSD teve origem num agrupamento luso-brasileiro de intelectuais maçónico-socialistas da velha guarda ("republicanos", passe o grande anacronismo). O AO90 é a grafia da "lusofonia" desejada por esses sectores da velha "nostalgia colonial", no fundo actualizando o projecto salazarista dos 1960s de uma futura "comunidade de Estados de língua portuguesa", unidos pela língua e... sentimentos.
 
Eu não escrevo com o AO90 não por preguiça em actualizar-me. Mas porque sempre o repudiei dado ser símbolo e patético instrumento desse projecto político estuporado que é a "lusofonia". Justiça seja feita, o autor que aborda esta temática da "lusofonia" é Diogo Ramada Curto. Um intelectual robusto - e muito temido, pois é muito truculento na imprensa, distribui bordoadas a eito. E o qual, ainda que sendo o actual director da Biblioteca Nacional, não escreve sob essa tal grafia lusófona. Mas muitos dos outros autores lá vão grafo-lusofonamente ordeiros.
 
Dir-me-ão que isto é um pormenor. Não é! Neste contexto de intelectuais especialistas, embrenhadíssimos no "denuncionismo" "activista" isto é um pormaior, denotativo da ligeireza agit-prop.
 

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7. O outro problema, que é o fundamental, é o viés. Alguns nunca o reconhecerão, aceitarão as palavras doutas. E outros apreciarão, considerarão uma boa acção, um bom "activismo", para a "causa". 
 
A este viés panfletário, recordo, é preciso querer reconhecer. E sublinho que está no "pacote" inteiro, gritado. Escolho alguns exemplos, apenas avulsas ilustrações.
 
7.1. Escolhi como primeiro a fotografia que encima o postal, tão explícita que nem é necessário comentá-la: o então famoso - e típico - Movimento Nacional Feminino é representado daquela forma, a querer-se chocarreira. "Palavras para quê?"...
 
7.2. Outro exemplo é uma ausência. Eu acompanhei a génese de um trabalho (livro e exposição) feito por Isabel Castro Henriques (coordenadora desta exposição), "Espaços e Cidades em Moçambique". Uma exposição cuja apresentação em Moçambique foi muito problemática - um dia terei de escrever essa memória. E que conduziu a uma digressão em Moçambique da sua autora - então acompanhada do seu marido, o grande intelectual Alfredo Margarido -, a qual tive o privilégio de acompanhar.
 
Ora nesse trabalho foi abordado a temática do desenvolvimento urbano - induzido pela presença portuguesa em períodos pré-colonial e colonial, e sobre a qual julgo que fez pelo menos outro livro-exposição relativo a Cabo Verde. Essa temática é completamente apagada desta exposição, por razões que são obviamente ideológicas. Entenda-se, há espaço para mostrar uma gravura da pré-colonial Tombuctu. Mas não para o rol de pequenas unidades urbanas até finais de XIX ou abordar o seu crescimento futuro. Porquê? É evidente por não ser uma temática imediatamente apreensível pelo público como "denunciável" (até poderia ser analisável desse ponto de vista, mas arrisca sempre que alguém passe por lá e deixe um "pelo menos construímos cidades", a prejudicar o efeito da cartilha).
 

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7.3. Há um painel dedicado aos "Saberes Coloniais". É aborrecido resmungar com isto, pois tenho o maior apreço pela autora do texto, e lamentarei se ficar magoada, Mas sigo. O painel apresenta desenhos sobre as "viagens filosóficas" no Amazonas de finais de XVIII. E depois restringe-se a imagens e texto sobre antropologia, enfatizando a antropologia física - predominante em Portugal até a II GM, nas suas crenças da relevância de medições populacionais, e que tinha ênfase racialista e, muitas vezes, racista - e também o trabalho de Jorge Dias, eivado de preocupações de antropologia política aplicada. Ou seja, o que resta é que os "saberes coloniais" portugueses eram racistas e controleiros.
 
É certo que a propaganda oitocentista de um grande saber acumulado em Portugal sobre África servia interesses políticos - "direitos históricos" na "partilha de África" - e era irreal. E durante XX o conhecimento sobre as colónias africanas sofreu os contrangimentos devidos às limitações do campo científico português. Mas ainda assim foi produzido um vasto saber em ciências naturais (zoologia, botânica, medicina, veterinária, etc.) e matérias técnicas. E também fazia parte do discurso colonial o enfatizar da grandeza desse saber. Mas ele existiu, foi abundante e competente. Muito tinha dinâmicas utilitaristas, muito era utilitário. Mas não era só isso - e nessa sua redução ao "utilitarismo" (colonialista) vem também outro mecanicismo, a da redução da curiosidade científica dos técnicos e investigadores portugueses aos interesses económicos e políticos. Ora nada disso é aludido. Dirão alguns "ah, mas isto é sobre o racismo!! E o colonialismo repressor!". E eu responderei que não, é - e assim está anunciado - sobre o "colonialismo". E, neste "capítulo", sobre os saberes que nele foram produzidos. Mas, claro, se se afixar em exposição alguns progressos na área da hidrologia, ou dos saberes agrários, ou seja lá o que for, isso não é imediatamente apreendido pelo visitante comum como uma malevolência portuguesa.
 
Mais, o cartaz sobre "Saberes Coloniais" começa com uma frase rutilante: "Desde o século XV houve recolha e expropriação de elementos de territórios distantes". E depois avança que só em finais de XVIII é que começa a haver verdadeira produção de saber científico (as tais "viagens filosóficas"). Fui ver o texto. A primeira fase, bombástica, não está lá assim. O chavão denunciador é o do cartaz. Eu posso perguntar-me de que serve, neste âmbito, afirmar as "expropriações" de XV. Mas mais me pergunto a que propósito é que surge no início do cartaz... É apenas (mais) um detalhe de viés.
 
7.4. No catálogo - e isto foi-me lido por uma amiga, e eu esqueci a página (não a marquei pois o livro foi-me emprestado), afirma-se que (cito de cor) os nossos países congéneres antigos colonizadores têm feita a crítica aos seus regimes coloniais (entenda-se, a "desconstrução", no jargão) e que Portugal é uma excepção. Isto é uma especulação falsária. Pois é muito duvidoso afiançar um qualquer défice nosso nessa questão face às sociedades da Bélgica ou da Holanda, para exemplos-mores de países "congéneres". Ou, para forçar a nota, que a sociedade brasileira se assume como país colonial e deixe, definitivamente, de invectivar os portugueses que partiram há dois séculos. Ou que a Espanha, congénere hermana, se tenha expurgado das suas malevolências ultramarinas... Sim, os wokes britânicos abateram uma ou outra estátua, tiraram o Hume do nome de uma praça e quejandas ilusionices. Mas, francamente, é um desplante uma afirmação daquelas.
 

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7.5. Para último exemplo de viés - e tantos outros tão explícitos há. Este está logo à entrada, num dos primeiros painéis, e é bom pois assim ninguém poderá dizer que "foi ao engano". A intenção de induzir uma associação de ideias, uma homologia, é evidente. Em cima está uma estação de viagem científica (eu não uso o termo "exploratória" para evitar a sua ambivalência semântica, que seria logo apropriada por quem leia de modo enviesado), a estação "Luciano Cordeiro" estabelecida por Henrique Dias de Carvalho, provavelmente em finais da década de 1880s ou no início de 1890s. Em baixo está uma gravura, ilustrando o transporte de escravos, agregados por um instrumento que desconheço o nome (golilha?) - "algemados" pelo pescoço.
 
É evidente que se está ali a proclamar a homologia entre as expedições científicas coloniais e o trânsito escravista, apagando duas dimensões: o progressivo abolicionismo internacional e português, e a integração da cientificidade nesse rumo. E afirmar isto não é esquecer a continuidade ilegal (e disfarçada) de tráfico escravista durante o último quartel de XIX e mesmo XX adentro, neste caso em particular para São Tomé e Príncipe.
 
Mas nesta construção painelística, como se com souplesse, está condensado o programa ideológico desta exposição: o regime colonial é a perenidade linear do escravismo, sem tirar nem pôr. E ali consagrado pelo afixar de Silva Porto, o pombeiro oitocentista que cruzou Angola - sem uma palavra sobre o facto de ter sido ele uma enorme excepção.
 
Tudo isto, condensado num mero painel, demonstra, com evidência para quem queira perceber, outro vector estruturante da exposição: a inexistência de uma abordagem às dinâmicas africanas. Sim, surgem os manipanços, as cadeiras de chefe, os "artefactos"... Sim há um ou outro painel aludindo às "resistências". Mas nada mais. Pois em havendo-as se poderia reduzir o impacto do panfleto "denunciatório", pensam - decerto - estes autores.
 
Exemplifico: num dos livros de José Capela (José Soares Martins) li há muitos anos um trecho impressionante. Uma página de diário de um austríaco (?), escrita em 1850. Estava em Quelimane e assistiu à chegada de uma pequena caravana de escravos, agregados deste modo (a tal golilha?). Acontecera que o navio negreiro já havia zarpado. Então os comerciantes abandonaram os escravos à sua sorte, e partiram. Mas não os libertaram, deixaram-nos agregados pelo pescoço. Ninguém os socorreu, e escrevia o estupefacto austríaco que eles cirandavam pela cidadezita, exauridos, esfomeados, sedentos, alguns deles já cadáveres, assim arrastados pelos outros. É uma imagem tétrica, uma ilustração extraordinária, crudelíssima, do que foi a realidade do comércio escravista.
 
Mas mais, na Quelimane de então existiriam - especulo - cinquenta portugueses, talvez alguns mais. Para além de alguns goeses (entenda-se, católicos, com cidadania... no conceito de aquele tempo). Indivíduos decerto que na sua maioria ou mesmo totalidade envolvidos no comércio de escravaturas. Esses portugueses ali residentes eram contemporâneos de Almeida Garrett, de Alexandre Herculano, Camilo já escrevia e estrear-se-ia em livro no ano seguinte. E nenhum foi partir as algemas daqueles desgraçados. Isto é terrível.
 
Acontece também que quem tinha produzido aqueles escravos - os tinha capturado e transportado, pago as portagens do caminho -, e sofrera a desilusão de não os ter vendido, e os deixara naquele estado desgraçado, eram ... africanos. E durante séculos assim foi. E como isso demonstra todo um mundo de dinâmicas africanas que é completamente apagado neste exposição - "artefactos" bonitos à parte.
 
Outro exemplo disso? Lá está Mouzinho grande, quase solitário, prendendo Ngungunyane, glorificado em figura portuguesa de então. Mas nem uma palavra (ou imagem) sobre as teias de alianças (naquele caso de última hora, mas em tantas outros sítios mais trabalhadas) ou de interacções construídas. Ao longo de séculos.
 
8. Nos nossos países "congéneres" (França, por exemplo) há literatura actual que aborda, sem complexos e sem higienizações, estas enormes teias de dinâmicas, africanas, nas suas consociações e oposições com as europeias, asiáticas, americanas. Antes do colonialismo. Durante o colonialismo. Nesse labor se "desconstroem os imaginários". Não com este panfletarismo. Serôdio. Medíocre. Inaceitável no Museu Nacional de Etnologia. No Estado.

24
Nov24

O Affaire Coimbra (5): o processo colocado por Boaventura Sousa Santos

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Ao longo dos anos em blog de vez em quando abordei Boaventura Sousa Santos (em particular no velho ma-schamba). E quando, recentemente, surgiram as denúncias do seu continuado assédio sexual e moral escrevi alguns postais sobre isso - intitulei-os "Affaire Coimbra" (1, 2, 4) mas não os resumirei agora. 
 
Conheci-o em Maputo em 1997. Logo o percebi como um tipo indecente. Também com as mulheres, mas sem poder afirmar ou mesmo imaginar coisas desta gravidade. Mas era-me evidente, então nos meus 30 anos, a cagança fálica do sexagenário diante das mulheres que o seguiam.
 
Lembro-me de ter sido convidado (devido às funções laborais que tinha), um ano depois, para jantar em casa de um casal amigo, por ocasião de uma sua visita. Estavam 4 casais à mesa, junto a ele e à sua (implícita evidência) namorada. E a forma boçal como ele se lhe dirigia. Pouco me interessa como os casais se tratam entre si - quantas vezes isso é refracção, até inconsciente, da sua intimidade sexual - mas aquele autoritarismo era ofensivo para os convivas. "Caramba, à mesa está a minha mulher, que é uma Senhora, e tem de assistir a esta cena?!", pensei. E entre nós, logo no carro de regresso a casa, comentámos a miserável situação.
 
Sousa Santos coordenou um projecto de investigação em Moçambique, para isso congregando o escol nacional das ciências sociais. Ao longo de anos visitou o país, e as histórias da sua irascibilidade eram recorrentes. Eu sofrera-a, com completo despropósito, "ossos do ofício" sossegou-me o embaixador meu chefe, que era um verdadeiro Senhor.
 
O velho coimbrão disparatava com tudo e (quase) todos - talvez não fiasse fino, sempre o pensei, com uma sua colaboradora que me pareceu muito estruturada, rija, tanto que décadas depois veio a ascender a biombo do famigerado Silva Pereira. Mas o resto da corte ida de Coimbra tremia, como capim.
 
O pessoal local também sofria as iras do lente coimbrão. Um dia, tive de chamar à razão um amigo, que estava imensamente indisposto devido a (mais) uma birra boaventuriana: "ouve lá", disse-lhe, "tu não estás a ver bem! Ele lá na terra dele é apenas um professor, a merda de um mero professor. Tu aqui, na tua terra, és um órgão de soberania. Põe-no em sentido! Ou julga ele que veio à "colónia"?". E o meu amigo assim o fez!!!
 
Enfim, as histórias sobre o "Boaventura" são imensas. Muito para além da vacuidade demagógica daquela tralha toda - já o escrevi em tempos: deram-me o calhamaço "Crítica da Razão Indolente", li a introdução. Aquilo é uma patacoada, de ágil retórica mas apenas isso. Escrevi emails a um punhado de colegas em Portugal, num "já leram isto? não há um antropólogo que desmonte isto?", recebendo um timorato "não te metas com o Boaventura" vindo de um sénior da disciplina.
 
A pompa "teórica" e demagogia "libertária" dos "movimentos sociais" não é agora o fundamental. Mas é evidente que essa propaganda de um "messias teórico" de movimentos políticos lhe alimentou a ideia de "império" pessoal. Pois quantas vezes me contaram a história, que talvez seja apócrifa - mas se non è vero, è ben trovato - de ser ele recebido num qualquer encontro no pobre Brasil com "investigadoras" "activistas" em êxtase, cada uma com uma letra na t-shirt, alinhando-se depois para formarem o "Boaventura". Pois o poder é erótico e a revolução libidinosa. E BSS talvez tenha aprendido isso, já quarentão, nas suas visitas solidárias à democrática e revolucionária Albânia do Enver Hoxha.
 
Enfim, tudo isto, o "Boaventura" e o seu séquito de "activistas", seria ridículo se não fosse tétrico. Há agora um punhado de mulheres que fizeram queixa dele, do seu assédio sexual e do seu assédio moral. Serão um pequeno núcleo daqueles que ele martirizou durante anos. E daqueles que ele recompensou, já agora - entenda-se, nenhum de tantos aparecerá a dizer "pois eu ganhei este emprego/trabalho porque lhe fiz isto e aquilo".
 
Às queixas o velho coimbrão resmungou umas inanidades, dizendo-se ofendido. E agora colocou um processo a 4 das queixosas: pois às residentes em Portugal exige-lhes o silêncio e a "desculpabilização", o desdizerem-se. De uma delas, a Sara Araújo, sou amigo, distante. A última vez que a vi foi há já um bom par de anos. E conto como, pois tão denotativa foi a cena... Fui a Coimbra para o seu doutoramento, em cujo júri pontificava BSS. A sessão foi na patética de anacrónica Sala dos Capelos - a qual tanto diz sobre aquela universidade, e concomitantes práticas, de docentes e... de discentes. Depois ela ofereceu um lanche num bar óptimo na cidade que estava em voga (não recordo o nome, que era qualquer coisa industrial). Estávamos ali, em alegre convívio, família, amigos e colegas quando apareceu ele, impante de chapéu. Lembro-me de ter pensado "que pavão, não sabe que numa sala se descobre a cabeça?". Tudo demonstrando a arrogância malcriada e egocêntrica do lente.
 
À Sara Araújo conheci-a para aí há vinte anos, quando jovem investigadora chegou a Maputo, na companhia de uma outra colega e amiga. Logo a percebi imensamente empenhada, inteligente, jovial. Uma miúda giríssima (vá lá, não me acusem de mansplaining...). E completamente embrenhada nas teorias boaventurianas. Sobre as quais se veio a doutorar. Com competência e brilho - o seu "oponente" foi o António Manuel Hespanha, grande intelectual, grande académico e homem decente.
 
Há poucos meses li o seu nome no rol de queixosas. Fiquei estupefacto. "Até com esta menina ele se meteu?" ("menina", sim, eu ainda tenho a imagem dela quando recém-chegada a Maputo). Destratou uma mulher que o reverenciava? Claro que exclamei o óbvio: "filhodamãe".
 
Nesta reportagem com dois episódios do canal Now (sábado 16.11. 22.30 h.) (sábado, 23.11., 22.30 h.), a Sara dá a cara, tal como outras queixosas. Conta o acontecido, o sofrido. Com coragem! "É de Homem!" dizia-se antes. "É de Mulher!!!". O que estas mulheres contam é verdadeiro. O pior nem será, digo eu, o afago mariola. Será mesmo a devastação das expectativas pessoais e profissionais, o amesquinhar do quotidiano, a angústia sobre o futuro. E, até mais, o rombo na personalidade.
 
Boaventura Sousa Santos não é o único, nem de perto nem de longe, a usar posições de poder, económico, estatutário ou intelectual, para cometer assédio sexual ou, talvez ainda mais comum, assédio moral/laboral. Mas será o mais escandaloso, pois isto é completamente ao invés de tudo o que andou a perorar durantes décadas, diante de tanto silêncio e de tamanha anuência encomiástica.
 
E o velho, nos seus 84 anos, não tem ninguém à sua volta - família, fiéis - que lhe diga "Acabou! Vai para casa, deixa de importunar os outros. As outras!". Provavelmente porque está como merece. Só! Espero que o juiz lhe diga isso.
 
(Publicado originalmente em 18.11.2024. Actualizado hoje, para incluir ligação ao segundo episódio da reportagem).

22
Nov24

"Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário", no Museu de Etnologia

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Visitei ontem, detalhadamente, esta exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário", apresentada no Museu de Etnologia (ao estádio do Restelo). A exposição é constituída por painéis de textos e iconografia, que condensam 30 artigos, cada um de diferente autoria. São apresentados num catálogo, com 342 páginas, vendido a 40 euros. Foi-me emprestado. Entre os seus autores, na maioria historiadores, há muitos que li ao longo de anos, vários conheço pessoalmente, e de alguns sou amigo (pelo menos até lerem este postal...).
 
Deixo já a minha impressão (sabendo que diante dela muitos apenas confirmarão que eu sou um reaccionário do piorio, neocolono até e, pior do que tudo, um verme neoliberal). Como catarse da ira que (ainda) sinto.
 
Os textos invectivam, grosseiramente - de modo básico de tão simplista que é, e sob desonesto viés, tamanho que censório -, a presença e posterior ocupação portuguesa. Num patético discurso anticolonial, que nem anacrónico é pois tão medíocre resta. Ou melhor, rasteja, num lamaçal ideológico "bon chic bon genre". E que evidencia uma estuporada vontade "pedagógica" - distraída do facto de não estarmos já em Paris 1964 ou Lisboa 1974... Constituem 7 "fascículos", partes se se quiser ter boa vontade, com temas repetidos, de estrutura descuidada.
 
Os painéis estão pessimamente impressos - apesar da longa lista de patrocinadores... A disposição é pobre (a exposição quer-se concêntrica mas isso é inicialmente imperceptível, é preciso chegar alguém para nos informar, nem sinalética souberam colocar para obstar à amontoada montagem). Na iconografia associada abundam os erros de legendagem (por exemplo, uma fotografia está presente em três painéis com legendas diferentes, uma outra duas, etc.) - mas isso até é o menos diante dos constantes disparates apostos nos textos. Quase culmina com a transmissão de vídeos musicais do actual afro-pimba, com os habituais traseiros femininos em destaque, uma coisa ridícula.
 
É também acompanhada de um conjunto de artefactos africanos, mobiliário nobiliárquico, alfaias agrícolas e, claro, os lendários "manipanços" - grosso modo desde uma (boa) peça da Reinata, as obrigatórias caraças de mapiko, passando por outras esculturas do Mali (??!!, o que estarão a fazer ali?) até à penúltima da exposição, uma porta Dogon (!!??, o que estará ali a fazer?) . O motivo desta associação escapou-se-me, mas presumo que para além do "ai, é tão gira esta peça, temos de a mostrar!", queiram no seu conjunto mostrar aos visitantes que os "pretinhos", perdão, os "afroascendentes" também tinham agricultura, chefes e, imagine-se, religião. E que, claro, sabiam trabalhar a madeira... E até tinham talento para isso. ("Atenção, também eram capazes de fazer olaria....").
 
Quanto ao livro, como é óbvio não pude ainda ler o calhamaço (342 páginas, repito). Mas no metro corri a ler o artigo de João Pina-Cabral e Joana Pereira Leite sobre o ocaso colonial em Moçambique. Apenas para ver se lá estava o disparate, demagógico de ignorante, espetado no resumo posto no painel respectivo (da autoria deles?). Não está, pelo menos de forma explícita. Mas, de qualquer forma, o que ali está pendurado envergonhará qualquer autor.
 
E estamos nós em 2024. Isto seria desesperante se não fosse ridículo. O ridículo da academia portuguesa.
 
Como qualquer antropólogo português sabe - ainda que nem todos o digam em público, mas todos o dizem em privado - o Museu de Etnologia (ao estádio do Restelo) foi há décadas entregue a uma Comissão Liquidatária, gerida por Joaquim Pais de Brito, a qual cumpriu o seu trabalho com denodo e eficiência. O mausoléu posterior tem sido gerido com a competência adequada.
 
Agora, em más horas, foram as cinzas remexidas. Ao que parece esta tralha estará "patente ao público" durante um ano. Como saberão os meus "amigos-FB" e leitores de blog - pelo menos os que (me) visitam de vez em quando - a minha filha e a minha irmã proíbem-me de usar o calão. Por isso escrevi este texto longo. A substituir o rol de palavrões peludos que fui dizendo ao longo das horas que ali desperdicei.

15
Out24

Apresentação de livro de antropologia sobre o Niassa

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Na próxima segunda-feira, 21 de Outubro, será apresentado este "Nas Terras do Lago Niassa: Historicidades do Território, Usos e Pertença da Terra", o livro resultante do trabalho de terreno para doutoramento de Elísio Jossias, antropólogo professor na Eduardo Mondlane. Na sessão falará ele e também Ramon Sarró, professor em Oxford.

(Tudo decorrerá no ICS. Para quem não saiba a casa fica mesmo ao lado da Biblioteca Nacional, Lisboa, paralela à Av. das Forças Armadas.)

E muito relevante é saber-se que o livro foi publicado pela Editora AfricaE em modelo de acesso livre. Ou seja, basta aceder a esta ligação para o gravar, em formato ebook ou pdf, como se preferir.

Até segunda-feira, aos que puderem aparecer.

03
Out24

Um colóquio académico

jpt

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Quando voltei a Portugal fui muito bem acolhido pelos meus colegas, logo inserido num centro de investigação e ali mesmo acarinhado, notório o desatinado estado em que aportava. "Em Roma sê romano" é um mandamento, de cidadania e, acima de tudo, de antropologia. Em especial quando se é mesmo cidadão "romano"... ("originário", diz-se alhures). Mas é mandamento muito mais fácil de seguir quando se é... meteco, ("viente", diz-se nessoutro alhures), como eu bem sei, que meteco quase vinte anos fui. Pois sendo cidadão logo um tipo se interroga, até insurge, com as ideologias subjacentes aos pequenos actos, às minudências que são, de facto, pormaiores. Um dia irritei-me com o que considerava (e acertadamente) o funcionalismo estatista, obstáculo ao desenvolvimento nacional, que grassava e anunciei a minha saída. A minha namorada de então foi sarcástica para comigo, e nisso certeira: "estás a ser quixotesco, eles não precisam de ti para nada, nem vão notar"...
 
Os anos passaram, fui para a Bélgica, voltei, chegou o Covid, passou. Nesse entretanto nunca mais tive qualquer ligação institucional com as ciências sociais (leio, mas isso é outra coisa). De facto, o meu tempo passou (sou um "has been", diz-se num outro e mais global alhures).
 
Ainda assim há dias um velho amigo convocou-me para um encontro académico. A ideia era simpática, e não só por ser motivo para o reencontrar, com ele ombrear, pois não o vejo há uma década: constituir um painel para falar sobre fotografia em Moçambique, gente de quatro países e três continentes. Unidos via "zoom" para participar num colóquio organizado por um esconso departamento de uma faculdade pública portuguesa (sem grande relevo internacional, já agora). Até me entusiasmei, pois pretexto para ler de modo sistematizado e, acima de tudo, voltar a escrever... Tratámos de esboçar o texto de apresentação do painel, eu escrevinhei (à mão!, numa camioneta rumo ao Alto Alentejo) a sinopse ("abstract" em academês) da minha apresentação ("paper" nesse linguajar).
 
Depois, já em casa, fui tratar de me inscrever no tal encontro, esse, repito-me, organizado pelo tal departamento de faculdade de universidade pública portuguesa. Já sabia, consabido que é, que vigora a tal ideologia de funcionários ("funcionalista", diria, se o termo não tivesse outro sentido), a qual se traduz na imposição de se pagar para trabalhar, pois é necessário fazê-lo para apresentar o fruto do trabalho intelectual - quase sempre pagam as instituições (públicas, na sua maioria) umas às outras, reproduzindo o mito do "zero-sum game" (como se diz no português correcto), sem o questionar.
 
O custo da minha inscrição? 150 euros! Para falar 15 minutos, via zoom, sem lhes gastar nem café, nem biscoitos baratuchos, nem mesmo o ar condicionado (se o têm). Telefono lá para as cercanias do Cabo Agulhas num "porra, é mais do que eu gasto por mês em água, electricidade, gás e telecomunicações..." e faço cerimónia, não adianto que é mais do que gasto no rancho mensal (uma ou outra "Queen Margot" à parte, quando posso...).
 
Quixotesco sigo, agora sozinho, sem Sancha que me ature. Mas, raisparta, se isto não é o funcionalismo estatista desbragado...! Escrevia há muitos anos o já morto Bourdieu que os sociólogos (e alarga-se aos antropólogos e aos outros todos, os dos estudos culturais e linguístico-literários ainda mais, porque sempre teoricamente enfezados) têm o costume de serem sociólogos dos outros e ideólogos dele próprios. Dizia e acertava na "mouche" (como se diz na bela língua que era a sua).
 
Em suma, 150 euros? Ide roubar para a... escola.

01
Jul24

Fausto

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A morte de Fausto (Fausto Bordalo Dias, como depois veio a ser conhecido) faz-me recuar até aos anos 80 mas também me ancora no presente. Logo me lembro, como a tantos acontecerá, deste "Por Este Rio Acima", um disco magnífico. E uma surpresa na época - pois para além do íntrinseco autoral era muito bem produzido, muitíssimo melhor produto do que era a norma de então, e em especial nos muito básicos oriundos da chamada "canção de intervenção", "cantautores" vieram depois a ser ditos. A indústria musical portuguesa não era tão má, tecnologicamente, como a cinematográfica (esta era verdadeiramente uma desgraça), mas era deficitária. "Por Este Rio Acima" mudou isso. O sucesso, comercial e de reconhecimento, foi enorme. Lembro-me - mas lamentavelmente não encontro via motores de busca - de uma deliciosa primeira página de jornal que dizia "Fausto, o Chalana da Música", noticiando um novo - e bem abonado - contrato com empresa discográfica do músico (que me diziam ser um tipo profissionalmente muito difícil, exigentíssimo, até em demasia), fazendo-o equivaler ao grande ídolo da bola de então...

Mas a memória deste disco também me traz para o presente. Pois em alguma imprensa e na academia de algumas ciências sociais (nisso também na antropologia) vem vigorando um discurso - dito "pócolonial" ou "decolonial" -, militante de uma simplificação demagógica do passado recente e da actualidade. O seu cerne é a afirmação da inexistência de uma "descolonização" intelectual no país, da total perenidade da mundividência colonial, imperial, saudosista, após-1974. Há até textos (o jargão chama-lhes "papers") publicados nos locais "da especialidade", botados por estrangeiros (brasileiros de preferência) ou lusos empenhados, que consagram essa perenidade. Sobrevoam, apressados, o "campo literário", desatentam a (sofrível, repito-me) cinematografia. E aguçam-se, vampirescos, sobre o mundo da música popular, neste último clamando a representatividade, como se universal, daqueles obscuros festivaleiros Da Vinci. E, mais ainda, reproduzindo uma interpretação abjecta de básica desse fenómeno pop que foram os Heróis do Mar. Esses mariolas, sempre avessos à rugosidade do real, sua complexidade e  multiplicidade, a tudo o que não lhes convém às "causas" (e aos subsídios) esquecem, não só a existência como a real influência de objectos que marcaram o país, suas gentes, as mundividências. Lembro a magistral peça "Fernão, Mentes?" da Barraca, logo no início da década de 1980. E nesse já tão recuado 1984 o monumento - tão influente - que foi este "Por Este Rio Acima". Nem tantas outras coisas, as produzidas e as formas da sua recepção pública. 

E continuam "por esses rios abaixo" os tais intelectuais. E nós-outros, os avessos à aldrabice "póscolonial", deveras embrenhados no encapelado da realidade, continuaremos a entoar - e mais agora na morte de Fausto -, "Quem conquista sempre rouba / quem cobiça nunca dá / quem oprime tiraniza / naufraga mil vezes ... Já vou de grilhões nos pés / já vou de algemas nas mãos / de colares ao pescoço / perdido e achado / vendido em leilão / eu já fui mercadoria / lá na praia do Mocá...". Tudo isto, complexo, que não lhes cabe na ladainha, com a qual vão ganhando a vidinha, videirinhos que seguem.

 

28
Jun24

Texto sobre história de Moçambique

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Desta vez não venho vender livros, como quando há meses - e para notório fastio de alguns - fiz, ao tentar impingir o meu "Torna-Viagem". Pois agora apenas dou: um texto longo – seria maior do que um opúsculo, se eu o fizesse como tal. Há anos participei numa homenagem ao historiador José Capela - a que teve este cartaz, que encima o postal -, grande figura da história de Moçambique e de Portugal em Moçambique. E do escravismo. Depois reescrevi o texto. Agora, como o nosso presidente vem recomendando que atentemos nesses assuntos, decidi divulgá-lo - é longo, repito, e não o escrevi para ser fácil, “amigável ao utilizador” mas apenas como dele gosto. E não é, decerto, ajeitável ao uso dos “activistas” de agora. E divulgo-o também para reavivar a homenagem a Capela, homem que esteve bem à frente do seu tempo e da maioria dos (pobres) pares.

Aqui fica a ligação ao meu: "José Capela: o escravismo em Moçambique como violência estruturante".

 

Sobre Capela antes deixara também:

- recensão a "Conde de Ferreira e Cª. Traficantes de Escravos" e "Delfim José de Oliveira, Diário de uma Viagem da Colónia Militar de Lisboa a Tete, 1859-1860", de José Capela;

- "José Soares Martins, de pseudónimo historiador José Capela", quando morreu; 

- recensão a "José Capela, "Caldas Xavier. Relatório dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1884";

 

24
Mar24

O Affaire Coimbra (4)

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Há algum tempo rebentou a escandaleira do CES da lusa Atenas. Deixei aqui eco desse "Affaire Coimbra" (1, 2, 3  e este extra), que apontava dois tipos consabidamente imprestáveis - só não vira antes quem não quisera ver -, e uma rede eunuca de conúbio. O assunto foi muito falado e depois sendo esquecido. Agora, saiu o resultado do inquérito, nem sequer fui ler as notícias, apenas me sobressaiu um cabeçalho que indicava não terem sido nomeados os mariolas, e que o sénior se declarava "muito sossegado" com os resultados. Sorri, num muito esperado "Safaram-se!!".
 
Dias depois recebo um email circular - decerto que por ter blogado sobre o assunto, pois foi entregue no email do blog - contendo a reacção das queixosas. As quais, afinal, louvam a investigação... Leio com atenção o texto, e constato que os resultados são verdadeiramente letais. Para os malandretes, e para a tal rede conivente. E só percebo que o sénior esteja "muito mais sossegado", tal como os seus sequazes, se presume a continuidade da inércia institucional, a do CES e a das suas tutelas.
 
E é contra isso que - muito avisadamente - as queixosas exigem a acção correctiva e preventiva, no CES, na vetusta universidade dos lentes coimbrões, e nos poderes políticos que a tutelam. A ver vamos, menos distraidamente.
 
Há uma coisa importante no acompanhamento geral deste tipo de casos: não devem ser resumidos à questão sexual, sempre passível de compreensão, mesmo que sarcástica, nisso do ser "normal", "humano", o prof. mais velhote querer "comer a pitazita jeitosa", nisso do marialva "quem nunca pecou que atire a primeira pedra", etc.
 
De facto o que acontece é muito pior e mais alargado, é o culto do revanchismo. Pois se a "miúda" (quantas vezes senhora bem crescida) - ou o efebo - se recusa, e até mesmo quando anui, o que se segue é o longo acabrunhar, menorizar, da sua capacidade, o espezinhar perpétuo. E o minar, torpedear dos percursos, o obstar às carreiras profissionais. Impondo o exílio intelectual, quantas vezes mesmo pretendendo o assassinato moral. E isto não se passa só quando existe a tensão sexual - e até acontece mais vezes sem ela.
 
É uma coisa tétrica, esta autocracia do homo academicus luso. Dela ouvi falar nas gerações anteriores, conheci vários desses monstros - sempre saudados por inúmeras mesuras encomiásticas -, soube de várias situações dessas, mais suaves ou agrestes, na minha geração, algumas sofridas por gente que me é ou era bem próxima. E nem era de sexo que se falava, mas sim do cruel espezinhar, de verdadeira psicose laboral.
 
Também a mim me aconteceu. Não que algum professor me tivesse querido sodomizar - também deveria ser óbvio que arrancaria o falo ao pontapé ao primeiro dengoso que se me chegasse... Mas lembro que eu, e alguns outros colegas, fomos sonegados de bolsas de investigação de dois anos apenas por termos contestado a superficialidade das aulas de mestrado de um professor. E que década depois ainda estive dois anos à espera de um contrato (e cinco meses a trabalhar sem receber) devido aos obstáculos que ele me colocava na administração pública. Como podia tal? Devido à intocabilidade do estatuto de funcionário público, somado à mescla da influência das redes maçónicas e dessa difusa "esquerda católica", esta alimentada da mitografia do "reviralho". Por vezes gente que me conhece diz que eu tenho mau feitio, que me "sobe a mostarda ao nariz". Pois contesto, e recordo que um dia, depois disto tudo, lá no campus da UEM em Maputo, me entrou gabinete adentro o tal ex-padreca antropólogo, a querer falar comigo. E eu falei, aturei. Não o insultei. Nem lhe bati. Sou um santo, estóico.
 
Mas isso dá-me a empiria própria, "o saber de experiência feito", para olhar atento para estes casos, os dos porcos que querem levar as alunas e as assistentes para a cama a troco de (hipotéticos) favores, e os dos escroques que perseguem quem não lhes é fiel, e pisoteiam os que o são.
 
Têm razão as queixosas do "Affaire Coimbra", é necessário uma purga institucional, uma refundação dos procedimentos institucionais, um assumir da tal vetusta universidade que trata os seus mais jovens investigadores-docentes como futricas medievais. E é preciso, em todo o lado, lutar contra esta cultura da apropriação pessoal e do revanchismo. A qual se justifica, legitima como "natural", através de um mito: o da meritocracia.
 
Entretanto, peço a alguém que conheça o tardio enverhoxista e ladino retórico Sousa Santos, que o informe que este "diplomorto etnocêntrico" lhe está "a cuspir na campa". Apenas por desprezo.

19
Nov23

Na rede Academia.edu

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Há já um bom par de anos abri uma conta na academia.edu, uma rede social de cariz académico, algo mais soturno, menos dialogante, do que as outras "redes", mais festivas e/ou assertivas. Lá fui deixando textos meus que -. passe a cagança - julguei (e julgo) um pouco mais significantes. Ou seja, que possam sobreviver um poucochinho de tempo. Alguns de cariz profissional, outros nem tanto... E tenho no computador uma dezena de textos mais compostos, que me exigem ligeiros retoques para os colocar lá.
 
Ontem convoquei um texto de há quase uma década que lá guardara. E ao entrar na conta notei numa curiosidade - ainda mais o é para quem goste de números redondos. É mesmo uma curiosidade pois não ganho rigorosamente nada, material ou simbolicamente, com isso. Mas tem piada. Isso de a minha conta ter ali 5555 inscritos!
 
O que é, afianço para quem não conheça aquela rede, uma monstruosidade. Ainda para mais sendo eu um mero furriel passado à disponibilidade, que escreve em português e sobre coisas algo excêntricas para os interesses predominantes (laivos de antropologia, centrados em temas moçambicanos).
 
É certo que este número pouco diz sobre as leituras reais. E menos ainda sobre o apreço alheio pelos textos. Mas ainda assim?, 5555 inscritos!? Sorri, cagão (repito). E abri uma garrafa de tinto Cabriz (colheita seleccionada 2020), um vinho médio um pouco acima das minhas actuais posses. E com uma taça meio cheia agradeço, o tal cagão mas humilde, a quem tem a paciência de ir ler as minhas tralhas.

26
Set23

Ensaio Sobre Extractivismo Intelectual

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Rotineiras razões médicas levaram-me a Moscavide, tétrica localidade vizinha pois nas cercanias do Trancão. Na qual encontrei este estabelecimento, presumo que sede da consagrada sucursal olivalense "Casa de Frangos de Moscavide", esta sita no Largo do (saudoso) "Ferrador", relevante estabelecimento comercial que durante décadas nos convocou a "percorra Portugal de lés a lés, com meias Ferrador nos pés".

Tendo sido surpreendido, nisso impressionado, por esta "instalação", verdadeiro item de arqueologia urbana, fui assomado pelas recentes memórias, essas que inundam a imprensa, o do ressurgimento do "affaire Coimbra". Pois agora - na sequência de uma suicidária tentativa de censura de um artigo já publicado, como noticia o "Diário de Notícias" (e, já agora, como é grotesco ver a abjecta Fernanda Câncio no encalce de uma mulher que defende um homem acusado de más-práticas) - surgem dezenas de urubus "decoloniais" esvoaçando sobre a fétida carcaça do "abissal" ex-quarentão amante de Enver Hoxha, o tal Boaventura que consta meter a mão na pernoca das alunas, e grasnando histéricos contra o "extractivismo intelectual" que sobre essas coxas larocas ele - pelos vistos - exerceria. Sendo que alguns desses desses gramscianos orgânicos, 40 até, e vários deles até putativos africanistas, emanam da sede boaventuriana, após anos e décadas de silencioso conúbio com os atrevimentos do "Mestre" e a sua constante defesa das ditaduras mais abjectas, nesse aldrabão e desvairado (pós)comunismo anti-ocidental. Mas que agora, com escandalosa impudicícia, surgem mui corajosos na "denúncia" do tal "extractivismo" e quejandos pecados, pecadilhos e, acima de tudo, imensos dislates, do anti-democrático chefe, sábio de retórica sedutora na agregação de financiamentos. Para gente que desde há anos medra sob o arguto moleiro Sousa Santos é caso para lhes atirar o evidente "tarde piastes...". Ou, de outro modo, comeram-lhe da carne mas não lhe roem os ossos, os mariolas.

Mas enfim, o que venho aqui dizer - após ter chegado aos Olivais, fugido das redondezas da sede da "Casa de Frangos de Moscavide" - é sobre esse "extractivismo intelectual". Digo-o com o saber de experiência feita, "muitos anos a virar frangos": nas disciplinas retóricas, aliás ciências sociais, só os franganotes podem ser alvo de "extracção intelectual". E há muitos franganotes que se acoitam nas capoeiras dos galarós. Depois queixam-se? Churrasco com el@s, como agora tanto eles gostam de escrever, na sua patética empáfia libertária. Para mim que venha o churrasco com bastante piripiri, por favor. Para disfarçar o agreste sabor do desprezo.

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Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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