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Nenhures

Nenhures

29
Ago24

Regresso aos DVDs

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É importante louvar "isto" enquanto por cá se anda. Mais que não seja para que não aparente eu ser um velho cansativamente negativo... Nisso não caindo na cantoria das utopias metafísicas, tais como aquela da insuportável, de insustentável, "felicidade". Mas sim saudando o fruir, esse que se vem com a aparência material é mesmo obrigação moral.
 
Há dias recebi uma encomenda postal, contendo este dvd do "Notting Hill", enviada por uma boa mas bem longínqua amiga, carinhosamente irónica no dito "directamente das ruas de Maputo" - dvd pirata, pois então, como lá abunda(va)m - "pois não quero que te falta nada", sabedora da minha militante (e eterna) afeição por aquele "indefinitely" da Julia Roberts...
 
Acontece que o meu leitor de dvds se estragara há muito tempo, e já o remetera para o apropriado lixo. Em roda de amigos narrei o caso - orlando-o, sou franco, com laivos de gabarolice, espúria como esta sempre o é, naquilo do "ainda há miúdas, e bonitas, que me mimam". Logo um velho amigo, rindo-se, me resolveu o caso "não seja por isso, tenho um leitor velho a mais, dou-to", e dias depois retornou à esplanada do bairro com a máquina.
 
Ontem fui a um aniversário, e contei a historieta, enquanto vasculhava as estantes do casal cinéfilo. "Então leva já este, que é o melhor filme do mundo", diz o aniversariante, dono do ali repetido "Leopardo" de Visconti. O qual já não revejo há uns bons anos.
 
Depois, em modo breve, aflorou-se Delon, e foi bom ver gente "de esquerda", e muito letrada, desprovida do cretinismo abespinhado com o actor agora morto devido às suas ideias políticas. Pois não são destes folclóricos de agora, incapazes de perceberem o mandamento "Para que tudo fique na mesma, é preciso que tudo mude", com que Lampedusa prenunciou (e denunciou) estes patetismos de agora, os "cancelamentos" com que se intumescem.
 
Enfim, sigo agora - hoje à noite -, bem para além dessas gentes minudências. Pois para rever o baile no Leopardo de Visconti. Nesse belo louvando as dádivas recebidas.

19
Ago24

O Barbeiro do Alain Delon

jpt

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In illo tempore fugi de Direito, primeiro, e de Sociologia, depois, e fui estudar Antropologia. Um erro, crasso (desaconselho-o às novas gerações - não por causa dos saberes disciplinares acumulados, esses louváveis...). Tal se deveu à complacência dos meus pais, crentes de que eu, de facto então petiz, mesmo se barbado, saberia do melhor para o meu destino.
 
No final da licenciatura (que cumpri de modo trôpego, arrastado e sofrido) tinha de concluir uma disciplina, mal leccionada - sei do que falo, pois vim a leccionar tal coisa, anos depois e alhures, fazendo-o de modo muito melhor e ainda assim mal. Para esse êxito era necessário escrever um trabalho e apresentá-lo oralmente. Era uma "história de vida", coisa então muito em voga, fruto do sucesso de "Os filhos de Sanchez" do célebre O. Lewis e, menos, do anterior "Juan Perez Jolote, biografia de um tzotzil", do mexicano Arciniega. A ideia, nada má de per se, era que da "história de vida" (que não da biografia) de alguém se induziam os feixes constitutivos / constrangedores de determinado contexto histórico.
 
A colegada, impregnada de "sensibilidade etnográfica" - ainda que à bolina naquele Portugal "europeu" que tornou a velha etnografia em meros "salvados", sem que nenhum dos funcionários públicos doutorais a avisasse disso - correu a buscar um qualquer vizinho vulto típico, pitoresco, que lhes contasse a sua "história". Já não me lembro, mas presumo que tenham saído do armazém a velha criada, o pescador curtido pelo Sol, um oleiro ou amolador, etc.. Eu, "do grupo dos Olivais" - como ainda hoje me apresentam - disse uns palavrões, peludos e líquidos, sobre isso de andar a estudar durante os melhores anos da vida para depois ir à procura do "típico". Em monólogo mudo insultei colegas e professores. E fui entrevistar o meu querido barbeiro.
 
Esse era um excepcional "cabeleireiro" (como exigia ser chamado, dado que tinha formação profissional, e disso era ufano) de homens. Aos seus clientes regulares oferecia dois cortes: o da tropa - e quando segui para Mafra fez-me um pente zero à mão (!!!!), tão rapado que o mancebo alferes me veio a dizer que não era preciso tanto... uma obra de ofício mesmo espantosa; e o de casamento, coisa que algo depois fui cobrar, chegado de Maputo na antevéspera do meu feliz enlace.
 
O seu salão olivalense, de labor imparável, era também um refúgio. Ali se acoitavam os jovens depressivos do bairro, "drunfados" claro, os outros "drunfados" oficiosos, pois voluntários, alguns ex-junkies mais mansos, enfim, o colectivo dos desamparados sem mais. E mesmo amigos e vizinhos que ainda seguiam inteiros, ou isso julgavam. Crente Ba'hai, e algo prosélito, mas sem excessos, a todos acolhia e, com imensa generosidade, aconselhava. Num saber que os pobres doutos diriam de "senso comum" mas que a todos acalentava - e por isso sempre regressavam os seus ouvintes. Verdadeiras terapias de grupo...
 
Enquanto nos aparava - com a sua, de facto, magnífica técnica - perorava, incansável. Não só sobre os rumos que cada um presente naquela plateia, real congregação, deveria seguir. Mas também, e essa era tema constante, sobre a sua experiência de vida. Pois ele era um magnífico, grandiloquente, mitógrafo de si mesmo. E o que mais me fascinava era o facto daquela sucessão de mirabolantes episódios ser contada e recontada sem falhas, sem aquelas alterações que desvendam a ficção e, muito mais, a autoficção. De facto, ele era um talentoso mitógrafo, pois crente irredutível do mito que construía, ele-mesmo...
 
E basto credível nisso  - ainda hoje os que o frequentaram afiançam da veracidade dos detalhes então narrados: a participação na resistência armada antifascista, o mergulho na clandestinidade, a partida "a salto" para o estrangeiro, as desavenças com o (micro)movimento em que militava. E o ressurgir da "normalidade", fazendo-se cabeleireiro no Sul de França, estudando isso e estabelecendo o salão em Marselha. Tendo-se seguido a fuga daquele país, para Norte, para mais um mergulho na clandestinidade da resistência armada antifascista. Depois viera o 25 de Abril, a liberdade e o seu regresso ao país. E só então o remanso - laborioso, é certo - da vida familiar, vivida naquela religiosidade bonacheirona, até anafada, de uma imensa generosidade, esse a que nós assistíamos, acompanhávamos. Que tanto me encantava. E a tantos dos meus vizinhos, seus fiéis clientes.
 
Nesse rodopio que lhe fora o vivido narrado havia um episódio que me era mais sonante, a causa da sua fuga de Marselha, norte afora e regresso à luta antifascista clandestina. Pois o seu salão marselhês havia tido um rápido sucesso, a clientela crescera desmesuradamente. Alain Delon cedo se tornara cliente habitual. Mas esse tinha um defeito: julgava que o seu estrelato lhe concedia estatuto privilegiado. Um dia, farto das irrupções de Delon no seu salão, o cabeleireiro disse-lhe, sem rodeios: "Ó Alain, tens de ir para fila como os outros, espera a tua vez...". Claro, o actor, despeitado, mandou os seus capangas violentá-lo, tendo ele fugido, felizmente antes de ser seviciado. E nunca a história faltava, e nunca tinha versões adulteradas...
 
E talvez a lembrança dessa prazerosa, mas convicta, encarnação do Delon de Borsalino seja exemplo maior de como através do cinema a ficção se pode tornar real - verdadeiramente real. Sendo assim uma grande homenagem ao actor que agora morreu. E que fez das suas personagens parte da nossa vida, de forma tão... viva.
 
(Claro, escolhi como meu objecto de "história de vida" o maior mitógrafo que conhecia, o menos típico "informante" que tinha à mão. Porque acreditava, e ainda acredito, que era o mais significante para ser ouvido... Apresentei o trabalho final na minha última aula de licenciatura, dia grande... A assistente do regente, jovem ainda, quando expliquei as causas daquela minha opção, respondeu-me, crítica, lá do meio da sala: "isso é o contrário do que qualquer manual de investigação recomenda!"... Eu, também jovem, ripostei, até sem querer: "se eu estivesse preocupado com manuais tinha ido estudar Gestão" - coisa que, de facto, deveria ter feito, estaria agora numa prateleira algo remunerada, em teletrabalho pré-reforma. 
 
Dispensava-se de exame final se obtida uma nota de frequência bastante acessível, até medíocre. Mas tive de o ir fazer, foram implacáveis... Mesmo assim ainda hoje penso que "O Barbeiro do Alain Delon" foi o melhor texto que já escrevi.)
 
 

05
Mai24

A "Nwahulwana", de Wazimbo

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Gastei parte da noite insone a ver na televisão o "A Promessa" ("The Pledge"), um sofrível filme policial realizado por Sean Penn em 2001. Vale sobretudo pela galeria de notáveis actores que vão desfilando, alguns em curtas aparições: o grande Harry Dean Stanton, Vanessa Redgrave numa breve e magnífica actuação. E também dada a presença da sempre perturbante Robin Wright (então casada com Penn). E, mais do que tudo, por Jack Nicholson, ainda por cima porque ali um pouco menos actor histriónico do que tornou hábito nas suas últimas décadas profissionais.
 
Enfim, dito tudo isto, o relevante é bem diferente. A meio do filme, noite longa, até já eu cabeçeando - apesar da referida Robin Wright -, despertei-me, verdadeiramente surpreendido, pois a "banda sonora" do filme integra esta "Nwahulwana" do grande Wazimbo.
 
Fiquei mesmo estupefacto pois nunca soubera que Wazimbo tinha sido cooptado pela indústria de Hollywood, essa grande montra. Escapara-se-me o facto. E, honestamente, até acredito que tal não tenha sido muito divulgado em Moçambique - ou então andava eu muito distraído. Aliás, basta lembrar o escarcéu festivo, impossível de não acompanhar, que foi por cá naquela época quando a "Canção do Mar" de Dulce Pontes surgiu num filme insuficiente, com o Richard Gere...
 
Enfim, o que isto me lembra é que conheci Wazimbo quando ele gravou o disco "Makwêru" em 1997, e nos espectáculos subsequentes, tudo mesmo muito bem produzido pela Conga (do Luís Moreira et al). E de logo me ocorrer, e dizer, entusiasmado, que "se este tipo fosse da África Ocidental seria uma "estrela" internacional", dado que aquela região era então muito vasculhada pela indústria musical.
 
Pois, e é o sumo, Wazimbo é um enorme cantor.
 
 

(Nwahulwana, de Wazimbo)

03
Abr24

Aderindo ao Estoicismo

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Em miúdo eu gostava era de História. Enquanto os outros putos queriam ser astronautas (na época era sonho em voga) ou polícias sinaleiros (daria "pano para mangas" analisar as razões daqueles tão comuns anseios daquela época), eu fazia-me arqueólogo - e o meu herói de puberdade ficou o Thor Heyerdhal... Felizmente cresci e amadureci, tendo optado por uma carreira profissional de sucesso garantido, isto de antropólogo.
 
Esse amor pela História era alimentada pelas estantes domésticas. As quais, como era típico nas gerações antecessoras, se centravam no dueto greco-latino da antiguidade clássica (para além dos oitocentistas portugueses e do prolixos ensaístas de XX a discutirem quem "nós" "somos" ou "deveríamos ser").
 
Roma era mais atractiva - a razão é simples, tinha uma "flecha de tempo" (sem a qual não se aprende História) fácil de adquirir, com um império cronologicamente crescente e, acima de tudo, dinastias de imperadores que um miúdo podia decorar, assim organizar-se. O meu imperador preferido não era Júlio César (que, de facto, nunca o foi, já agora), apesar de celebrizado no Astérix. Nem Augusto, esse que só muito depois Pierre Grimal me ensinou a amar, interpretando-o eu como o primeiro europeu, o inventor do continente - talvez por serendipidade... Nem Cláudio, essa magnífica recriação de Derek Jacobi na série britânica, utilizando o delicioso livro (por anacrónico que seja) de Robert Graves - quarenta e tal anos depois ainda me lembro da sensação ao ler aquelas reflexões do imperador (tendencialmente) ateu ao saber que fora declarado deus vivo lá na longínqua Britânia...
 
Enfim, o meu imperador preferido era Marco Aurélio. E a razão foi simples, o impacto que teve o filme (um típico "pastelão" a la Hollywood "dos tempos") "A Queda do Império Romano". Vi-o no Monumental, com a minha mãe, petiz de oito anos. Marco Aurélio era interpretado por Alec Guiness - como é óbvio eu não fazia a mínima ideia de quem este era. Mas o filme impressionou-me imenso, numa estranheza atraída, exaltante até, que então incompreendi. Só anos depois, já na adolescência, ao rever o filme compreendi o que tanto me cativara. Pois fora no filme que eu subentendera o que eram as mulheres, tamanha a impressão, avassaladora, que me causara... Sofia Loren, ali representando Lucila, a filha do velho imperador...
 
Enfim, foram estas razões não propriamente intelectuais que me fizeram tender para Marco Aurélio. Só depois, adolescente, soube que ele tinha sido uma espécie de rei-filósofo, proeminente estóico. Mas apesar do meu apreço pela figura (e sua filha) nunca tive a têmpera suficiente para aderir ao estoicismo. Deixei-me degenerar reactivo, furibundo, dado à vã ira e, até, a espúrias ambições.
 
Chegando-me agora aos 60, ancião mas não senador, decidi hoje aderir a essa corrente estóica, fundando-me na temperança. A razão é simples: para celebrar a chegada a sexagenário atrevi-me a fazer uma "edição de autor" das minhas memórias (ainda não estóicas), o livro "Torna-Viagem". Fi-lo através da plataforma editorial Bookmundo. Logo vários amigos me convocaram para fazer um "lançamento" do livro. Decidi então organizar um "simpósio" a esse propósito, para divulgar o livro - que está a ser um sucesso comercial, tendo já vendido quase ... uma centena de exemplares.
 
E assim no próximo sábado à tarde, bem antes do "derby eterno" da bola, haverá o tal "simpósio" (aliás, "banquete") em torno do "Torna-Viagem", livro que apenas se adquire no "site" da Bookmundo. Os preparativos estão feitos, os comes e bebes encomendados, o tão simpático Restaurante Moçambicano Roda Viva a postos para nos receber. E nessa azáfama grassando a expectativa que mais alguns amigos e conhecidos comprem o livro, nem que seja para com ele comparecerem ao "abraço" coloquial.
 
Noto entretanto que o "site" da Bookmundo está "em baixo", inacessível desde ontem....! Arrepelo os cabelos, desfaço a barba, arranho o peito, clamo para mim mesmo "para que insistes, Zé? Para que te metes nestas coisas?". Nada disso, adiro ao estoicismo, com sageza modero-me, persigo (e prossigo?) a vida em harmonia. Faço um enorme sumo de laranja (de Palmela, e "bio"). Fumo um tão saboroso cigarro de Amber Leaf.
 
E sorrio um - algo exagerado, eu sei - "isto só a mim é que acontece"...

28
Jan24

Mais Um Beijo Pecaminoso

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Há algum tempo o mundo, aliás o "ocidente", cansado da guerra na Ucrânia e desatento a outros guerreares, debruçou-se com ira e furor sobre uma beijoca do señor Rubiales, e a esse propósito de uma formosa campeã se fez mártir desvalida e demonizou-se o histriónico prócere da bola.

Em toda essa argumentação, explícita ou até implícita, notei hoje durante o parco almoço, tabuleiro na mão diante da tv, que faltou um item. 

Pois já aqui terei referido o algum apreço que tenho pelo filme romântico Notting Hill (1999), o qual teve um grande sucesso internacional e que, decerto por isso, continua a ser transmitido nos canais televisivos, até em horário indiscriminado (hoje em plena hora de almoço). Ora acontece que perto do final, numa cena que é o verdadeiro  clímax do filme - a conferência de imprensa em que William (Hugh Grant) pede perdão a Anna (Julia Roberts) e esta lho concede - há esta agressão de Bernie (Hugh Bonneville, depois celebrizado pela sua actuação no folhetim "Downton Abbey") a uma anónima personagem feminina. Bernie, eufórico com o desenlace amoroso do seu amigo, agarra vigorosamente as faces da referida personagem feminina, e "rouba-lhe um beijo", como antes se dizia...

Este é um problema que a actualidade exige enfrentar. Deverá esta cena ser retirada do filme, de forma a que o contexto romântico, com tons de comédia feliz, não naturalize, legitime, o acto agressor? Ou deve ser mantida a totalidade do filme, respeitando-se a obra, mas impedindo que ela seja transmitida sem qualquer contextualização, em qualquer horário e sem aviso prévio aos espectadores? Confesso que não tenho opinião final. Mas, sem dúvida, urge actuar sobre este corpo delituoso.

(Versão de postal que há meses colocara no Delito de Opinião mas que me esquecera de aqui colocar)

27
Jan24

O Pensamento "Woke"

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Vejo o "E tudo o vento levou", que há muito não revia. Chega agora numa cópia restaurada há cerca de uma década, a avivar-lhe, mesmo que em mera televisão, algum do brilho fílmico que incendiou os cinemas aquando do seu aparecimento, fenómeno que foi. Lembro-me, vagamente, da primeira vez que o vi, petiz junto à minha mãe em cinema de grande tela - talvez o "Monumental", bem antes deste ser uma vulgata envidraçada de vendilhões do templo, talvez o "Império", também antes deste ser um templo de vendilhões.

Ela adorava o filme, percebi depois e lembro agora, saudoso, que por venerar Scarlett, feita arquétipo de pessoa, suplantando-se entre a candura e a estratégia, numa franqueza ardilosa, símbolo da mulher adequado ao circundante, mais necessário de afirmar em tempos já tão distantes que a boa língua portuguesa sobrevivia sem patacoadas como "resilência"... Ao longo dos anos regressei ao filme algumas vezes, percebendo que - afinal - articula o dramalhão comercial com o desfazer dos aparentes estereótipos, pois não só desfraldando as fraquezas masculinas como escorrendo algum sarcasmo com o estertor daquela nada bela "Belle Époque" escravista. Num filme de guerra sem guerra, assim sem heroísmos encenados, nisso subreptícias justificativas...

Mas ontem nem pensei nisso. Sexta-feira à noite fiquei a ver o filme ao lado dela, Marília, enquanto o meu pai António ia lendo na sua poltrona, alheado como (quase) sempre da televisão. Tinham vindo passar o serão, agradados com a visita que lhes fizera de manhã no cendrário dos Olivais - onde acorrera por razões outras, - tendo-me demorado, ali, junto ao que deles me resta. Até me sentir qual o Anthony Hopkins no final do "O Pai" que vi há dias, que foi o sinal para partir, que nada é bom em demasia.

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Depois do tão esperado e obrigatório "After all, tomorrow is another day", a mãe foi-se deitar e fiquei, como é habitual, de conversa com o pai. Ele disse-me que estou a fumar demais e, como é óbvio, resmungou com a pepineira do "Gone With the Wind". Foi o (por mim ansiado) sinal para politizarmos. Precipitei-me para o controlo e puxei o filme atrás - coisa que ele nunca faz, estranhando estas novas tecnologias - até ao princípio. E logo concordámos no ditirambo contra este pensamento "woke", paupérrimo arremedo de reflexão. Tanto barulho fazem os seus "activistas" para expurgar a história, para tutelar mentes, para "analisar" o "abissal" mundo. E para apenas saracotearem coisas como esta: enfrentar um filme destes, com o impacto que teve, quase quatro horas de filme, num argumento com as camadas que tem, e julgam relevante e necessário anunciá-lo como "produto da sua época e retrata preconceitos raciais e étnicos", como se houvesse algo que não o seja. E é com esta pobre mentalidade que se agitam, ufanos na crença de que "para criar um futuro melhor é necessário primeiro conhecer e compreender a história"... Assim?

O pai abanou a cabeça, em desprezo, e nisso tanto concordamos na aversão a esta pobre gente adormecida, enlevada consigo própria, tanto que se dizem "Acordados", essa sempre dita "esquerdalhada". Avancei um pouco o filme e digo-lhe "vê esta cena, pai", o baile no qual a jovem viúva Scarlett dança pela primeira vez, assim quebrando as regras do nojo, com o galhardo Rhett. E ela, enquando rodopia, diz-lhe "Mais uma dança e perderei a minha reputação para sempre", ao que ele responde "Se tiver coragem, pode viver sem a sua reputação". E o  meu pai, o Camarada Pimentel, sorri, anui, nem preciso de lhe explicar o que quero dizer - até porque já cheguei à idade em que não só o compreendo como também ele me percebe. "Querem a história sem "grão", como o dos filmes antigos, a história como "cópia digital restaurada", atiro. "É isso", diz, aceita. E repete que estou a fumar demais. Depois vai dormir. Estando, claro, acordado mas nunca "woke"...

09
Nov23

Festival Olhares do Mediterrâneo

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Começa hoje o já tradicional Festival cinematográfico - e verdadeiramente cinéfilo - "Olhares do Mediterrãneo", a apresentação de filmes realizados por mulheres sitas na bacia do velho centro do mundo. Será uma semana de filmes, apresentados na meia-lua lisboeta São Jorge, Goethe Institut, Cinemateca e ISCTE. Com toda a certeza haverá no vasto programa (basta "clicar" para aceder à panóplia ofertada) algum filme esperado (pelos connaisseurs cinéfilos) ou atraente à curiosidade do espectador vulgar de Lineu. Ide até lá, se puderdes. Para melhor estudo do "que fazer" aqui deixo o rico catálogo do festival...
 
Para nós, a Sul do Trancão, este Festival tem a saudável peculiaridade de não estar preso à "lisboa" de Lisboa. E assim na próxima semana, de 17 a 19, virá apresentar-se junto ao Sado. Lá estarei...
 
(Fico grato à equipa da SAPO pelo destaque dado a este postal, assim colaborando nesta modesta divulgação do excelente Festival).

02
Nov23

"Catembe" no Cinema Ideal

jpt

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Os que estão em Lisboa, poderão ver no cinema Ideal (ao Bairro Alto), entre hoje (2.11) e sábado (4.11), o filme "Catembe" de Faria de Almeida. As sessões serão às 21:15. O bilhete custa 5 euros.
 
O filme - e alguns outros, pequenos, do cineasta, que estão anunciados no sopé do cartaz - rodado na então Lourenço Marques será alvo de apresentações: Maria do Carmo Piçarra, investigadora (quinta-feira), Amarante Abramovici, cineasta e programadora (sexta-feira), Isabela Figueiredo, escritora (sábado).
 
Transcrevo o texto alusivo ao filme que está inscrito na página-FB do Ideal:
 
"Manuel Faria de Almeida (Moçambique, 1934) é autor de uma das mais importantes obras do cinema português, "Catembe" (1965), um filme severamente censurado pelo regime ditatorial do Estado Novo. O filme vai ser apresentado em sala, no cinema Ideal, numa ação do projeto FILMar (no âmbito do qual a Cinemateca Portuguesa o digitalizou com o apoio do programa EEA Grants 2020-2024).
 
A recente digitalização do filme permitiu revelar o trailer inédito que contem algumas imagens das sequências amputadas durante o processo de censura. Retirado de circulação pelo próprio realizador, o filme foi sujeito a 103 cortes, muitos deles perdidos, e que revelavam o quotidiano da cidade de Maputo, então Lourenço Marques, no início da década de 1960. "Catembe" tinha estreia marcada para o Cinema Império, em Lisboa, no mês de novembro de 1965, mas a violência das exigências do regime, levaram à anulação das suas exibições.
 
A cópia que agora se apresenta, junta os 45 minutos autorizados, aos quais se juntam 11 minutos de cortes, e o trailer que exemplifica a singularidade do olhar de Manuel Faria de Almeida, então um jovem realizador que veria o seu percurso amplamente afectado pela repressão artística e política a que o seu trabalho foi sujeito. O filme, cujo título completo seria "Catembe - Sete Dias em Lourenço Marques", acompanhava o quotidiano do bairro de pescadores, bem como de uma jovem rapariga, contrariando as imagens impostas pelo regime colonial.
 
As sessões serão acompanhadas com a apresentação de três filmes assinados por Manuel Faria de Almeida."
 
Não posso deixar de referir o primeiro comentário posto neste anúncio na páginas do Ideal - irreverente diz algo fundamental, que "o filme foi censurado no Estado Novo" mas também depois, que não passou. De facto, foi escassas vezes mostrado, principalmente (ou mesmo apenas) na Cinemateca. Não sei porquê, talvez se possa agora perceber essa elisão deste trabalho - e, honestamente, isso será mais interessante do que a explícita censura pré-25 de Abril, que surgia "por defeito".
 
Eu vi o filme há uns anos, exactamente na Cinemateca. Ainda era uma cópia não digitalizada. Coloca-a abaixo, em formato da plataforma Vimeo, para quem se possa interessar/concentrar durante quase uma hora:
 
 

Catembe, de Faria de Almeida, 1965 from Jorge Borges on Vimeo.

Catembe, de Faria de Almeida, 1965

17
Set23

Woody Allen na Cinemateca

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A organização pediu que não se fotografasse o senhor Allen e eu cumpri. A imagem retrata o imediato após a sua saída de sala. A sua charla foi simples e muito agradável, deixou explícitas as influências mais marcantes na sua escrita, narrou alguns detalhes sobre o início da sua carreira, tanto na escrita como na representação, e também na realização, abordou a importância para a sanidade do olhar cómico, restringiu-se a um homem "com muita sorte". E culminou - diante de um intrometido tonitruante da assistência que o convocou a filmar em Portugal - dizendo o mais ou menos óbvio, que o poderá vir a fazer se para isso tiver "uma ideia", condutora. Rematando que talvez "com sardinhas", o que mostra bem que algo conhece do país. Nesse entretando fui comovido nisto de estar sob o mesmo tecto dele.
 
O seu interlocutor foi Ricardo Araújo Pereira, que esteve muito bem nessa função - também por se lhe ser evidente um natural, e mais do que justificado, até devido, nervosismo. Há meses vira-o na Feira do Livro conversar com o excelente Jerónimo Pizarro e gostara. Mas ontem ser-lhe-ia mais difícil. Esteve muito bem.
 
Depois viu-se o Manhattan, a magnífica falsa comédia, sempre tocante.
 
Muito obrigado à minha querida família, que à última hora me meteu na sala pela porta da frente, eu que há muito já havia desistido de lá ir, dadas as notícias (verdadeiras) da multidão que acorrera à Cinemateca, perfilando-se até quase ao São Jorge na esperança de ainda conseguir assistir a este encontro..
 
(Agradeço à plataforma SAPO o destaque dado a este postal)

31
Ago23

Chaplin na televisão

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Apenas partilho informação, durante este meu intervalo junto à varanda para um cigarrito. O canal televisivo FOX Movies tem disponíveis esta semana uma série de filmes de Chaplin (eu já arrolei 8 ou 9) - e também de Buster Keaton... Estou agora a ver o seu antepenúltimo, "Luzes na Ribalta" (1952), o seu último nos EUA. Não o via há 40 e tal anos! E assim estou a descobri-lo. Um filme sentimental - sentimentalão, dirão alguns mais coriáceos. Talvez por isso já vou eu no meu 2º Amber Leaf durante este (meu) intervalo. Pois é uma verdadeira maravilha.
 
Até porque também me vou lembrando das minhas memórias de Chaplin. Muito puto em casa da minha irmã, na qual o meu cunhado tinha um projector (de filmes em bobinas) e exibia os filmes mudos do Chaplin, para meu encanto. Ou do meu pai lembrando que no Porto, na sua adolescência, em pleno Carnaval uma turba festiva lotou um cinema para ver o "Quimera de Ouro". E que passado pouco tempo toda a plateia estava muda, avassalada com o afinal nada cómico filme. Ou das histórias em Moçambique - onde um querido amigo, que também é "amigo-FB", me contava do projecto pós-independência de mostrar cinema no interior de Cabo Delgado (no "mato", como se diz), em locais sem electricidade, nos quais o cinema era completamente inédito e desconhecido. E optaram por mostrar aos aldeões o Chaplin mudo (claro, dizia eu, tanto pela cinefilia daquela geração como pelo conteúdo, pela mundivisão transmitida), procurando "animar" o povo através do humor. E da até surpresa, vendo a recepção, nada risonha, silenciosa e até aflita de comovida e solidária para com o "Charlot", cruzando tamanhas diferenças "culturais".
 
Enrolo o terceiro Amber Leaf, fumá-lo-ei antes de voltar à sala, para diante da televisão. Prometo-me que não me comoverei demasiado com o velho Calvero e a sua sageza. E resmungo aqui. Somos as últimas gerações que veremos Chaplin (o mudo, o teatral, o clownesco, o sentimental). Que puto do instagram, da marvel ou do tik tok terá sinapses ainda receptivas àquilo? Ou seja, saí daqui e acorrei à FOX Movies. Ao Chaplin. E ao Buster Keaton...

Bloguista

Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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