SITA: A VIDA E O TEMPO DE SITA VALLES - (Trailer oficial PT)
Este documentário "Sita: a vida e o tempo de Sita Valles", é mais uma investida da realizadora Margarida Cardoso ao ocaso colonial. Ao vê-lo logo recordei o excelente "O Mar em Casablanca" de Francisco José Viegas (talvez o meu romance preferido daquele autor), que aflorou o terrível episódio. Mas, e para além dessa minha deriva, como é óbvio logo associei este recente filme a outras obras de Cardoso, o "A Costa dos Murmúrios" (com base no romance de Lídia Jorge) e, em particular, o excelente "Yvone Kane", neste caso pela patente similitude temática - e, num âmbito mais alargado dessa indagação sobre aquele período histórico também é relevante o documentário "Kuxa Kanema - o Nascimento do Cinema", debruçado sobre o inicial processo cinematográfico moçambicano (o texto começa por uma alusão aos "cinco séculos de colonialismo" mas essa derrapagem não é mácula suficiente para deslustrar o trabalho).
Não faço estas associações pela superficial nota de "género" - aquele mero reconhecimento da mulher realizadora que indaga o(s) processo(s) histórico(s) através de três personagens/personalidades mulheres, que será prisma que pouco me ilumina. Interessa-me a pertinência (e competência) da realizadora no seu vasculhar do que pode - àqueles que se refugiam na forma de incompreensão que é o espanto - aparentar ser o absurdo na história. Mas o qual é, de facto, o horrível histórico que tanto vigorou naquele período do final do colonialismo português e das alvoradas das novas nações. Como nos anteriores e posteriores períodos, noto, pois segue esse horror bem omnipresente.
A sinopse deste documentário está disseminada, o que torna desnecessário que a repita. Apenas friso o que me ocorreu durante o longo filme (quase três horas). Por um lado, o não terem sido abordadas as diferentes facetas daquele horror, no qual morreram Sita Valles, seu marido, seu irmão e cerca de 30 mil indivíduos. Não será isso um defeito, mas uma característica que foi objectivo da realizadora, o centramento no ambiente formativo daquela militante. Valles, de uma família oriunda de Goa e da pequena-burguesia luandense - e a sua inserção social, denotando menores barreiras raciais do que as existentes no Moçambique coevo, é apenas aflorada - é recordada através de documentos pessoais, depoimentos de familiares, amigos próximos de Luanda e de seus correligionários durante o período de residência em Portugal. Não há uma única voz contrastante ou, pelo menos, afastada. Alguém a quem ela, ou suas causas e objectivos, fosse antipática. Seja de quem foi então militante do MPLA ou do PCP, seja de adversários políticos lato sensu. E assim segue ela, a sua memória, algo acarinhada, nisso até enublada. E dos seus companheiros finais - do propalado movimento de Nito Alves - nada fica, nem do seu afirmado líder.
O que fui vendo foi a formação de uma jovem progressivamente radicalizada - desde o anticolonialismo e aversão ao racismo inicial até à sua formação comunista em Portugal e, depois, o seu extremar aquando do regresso a Angola (patente num até trágico trecho de uma sua carta à família na qual ecoa a retórica oficial, em tom crítico, aquilo de que "o MPLA não é comunista"). Tratava-se de uma peculiar visão do real, que não é bem delineada nos depoimentos - talvez por nunca ter sido sistematizada pela militante - e sobre a qual algo podemos intuir através da leitura do opúsculo "África - Colonialismo e Socialismo", de algum esquematismo interpretativo, publicado nesse ano de 1977 pelo seu irmão Edgar Valles, o qual neste filme surge como fonte primordial e explicitando-se como mais moderado, e até descrente, do que a irmã.
Honestamente, ao longo do documentário - acima de tudo pela secura dos trechos das suas cartas aos seus pais, bem como pelo que se pode depreender da sua efervescência pessoal através de alguns dos testemunhos dos que lhe foram próximos -, foi-se-me criando uma imagem da militante revolucionária que até algo me envergonha de aqui deixar transparecer, face ao cruel destino que sofreu. Não é apenas a do seu radicalismo até inconsciente, coisa até passível de ser atribuída à juventude, e que não só a conduziu até à morte bem como talvez influenciado a do seu irmão. Pois o que mais me foi patente foi um irredentismo, talvez abrasivo, um fervor crente de intolerância constituído.
Ou seja, e sei o quão cruel e descabido é até este meu sentimento de espectador, se o filme ilustra um acto de horrível despotismo, massacrando pelo menos 30000 dos apoiantes do próprio regime, uma das habituais purgas das pretensas "grandes revoluções" históricas, aquilo que se me foi crescendo ao longo do documentário foi uma sensação de que se tratava de uma mulher horrível. Insuportável, pelo menos. Sim, é um sentimento que pouco me abona, face ao cruel destino de Sita Valles, assassinada grávida nos seus 20 anos. E à magnitude da malevolência daquele regime assassino. E à imoralidade daqueles - alguns dos quais tão laureados vieram a ser - que daquele processo foram cúmplices. Até exultantes, a crer em alguns relatos. Mas foi, e digo-o com pesar, o que me ocorreu ao ver "Sita".
E decerto que por isso, pelo acabrunhamento sentido face a esta minha reacção, que logo após o filme fui até à estante. E comecei a reler o "Les Dieux Ont Soif", talvez procurando justificar-me na memória desse malvado fanático revolucionário Évariste Gamelin que Anatole France nos legou. Para que não caiamos em simpatias. Pelo putativo brilho, carisma, fervor, empenho e competência organizativa deste tipo de militantes...
Adenda: deixo uma entrevista de Margarida Cardoso ao Buala, relativa ao seu trabalho durante a produção deste filme e do "Yvonne Kane".