Divagações nas Delongas
“Um verdadeiro triunfo!, esta minha vinda à Colômbia”, concluí eu ontem à noite (já longa). Pois a Iberia fez por mim - e quero desconfiar que a pedido de forças sociais relevantes - o que a TAP se recusou a fazer pelo presidente Marcelo em Maputo: adiou o voo Bogotá-Madrid, atrasando-me o regresso à Pátria Amada, soube-o cerca de meia-hora depois do horário previsto para a partida.
Disso avisou a sala de embarque bem preenchida. Logo a mole viajante se foi levantando em busca de informações. Aí começou o Show Iberia, tantos traços culturais activados - quiçá resquícios da pujante mente imperial que fermentou a Invencível Armada (aérea?) - e tão vistosos que até ressuscitaram o meu saudoso “olhar distanciado”. Pois a segunda informação emitida foi a convocatória para que todos se sentassem!, escolar reprimenda recebida com audível desagrado pela moldura humana…
Seguiram-se duas horas, entrando-se já neste dia seguinte, de silêncio substantivo polvilhado de comunicações vácuas. Mas o interessante é que a Iberia - no aeroporto internacional de Bogotá, num voo para Espanha, com passageiros de várias nacionalidades - passou a comunicar apenas em castelhano. Diante do caos esqueceram-se do habitual bilinguismo das companhias aéreas… Passada uma hora daquilo, distraída no meu “broken english” a traduzir aquele efectivo silêncio a suíços, alemães, franceses e algum etc. que incluía até… colombianos, lá fui aconselhar os proto-desvairados funcionários que seria de regressarem às informações em inglês. Para compreender que os pobres não estavam em abissais e linguísticas reclamações “hispânicas” ou “indígenas”, quais activistas do CES da Lusa Atenas. Mas que apenas vão tão pouco pujantes na língua dos gringos como sigo eu…!
Enfim, lá seguimos para um hotel. O que implicou tornar a passar pelo controlo de fronteiras, em fila escoltada pelas tão atrapalhadas assistentes da Iberia. Um rancoroso agente invectiva-me em busca do carimbo de saída com que o meu passaporte deveria ter sido brindado horas antes. “Não sei”, digo-lhe três vezes. Na quarta vez que me pergunta o mesmo, do porquê de estar eu ali sem carimbo de saída, espadachando o meu passaporte na minha cara, digo-lhe no meu ridículo portunhol “não sei, é o seu trabalho, tem de saber como eu estou aqui assim!”. Irrita-se, tira-me da fila, entrega-me a duas dessas assistentes Iberia, e enquanto punhados me ultrapassam estas vasculham-me o documento, clamando - tornando-se assim ainda mais feiosas do que são, nisso mérito delas, não ganharam o emprego devido ao palmo de cara e ao punho de mama… - “ser minha responsabilidade” tudo aquilo. Entretanto esgotado um magote de passageiros o fascista junta-se às tais desengraçadas, conversam sobre mim e de súbito tomam consciência do que já lhes narrara: o passaporte é electrónico, passa incólume aos colecionáveis carimbos. O arvorado sorri e passa-me o documento, para que eu siga.
Mas estou cansado e agora aborrecido com o destratamento. Por isso esqueço-me que estes controleiros fronteiriços são desconfiáveis - não mataram os nossos, ali mesmo nas vizinhanças de minha casa, um azarado tipo apenas porque lhe faltava um qualquer carimbo, apesar dele ser “louro e de olhos azuis”, assim dos nossos favoritos, como dizia o esquerdista Pacheco Pereira nos seus dias putinescos? Enfim, esqueço-me desse âmago ferino, e digo-lhe “porque não me deu esse sorriso antes, para quê tudo isto?”. De novo, lesto, se apropria do meu passaporte, invectiva-me “estás tomado?”, nem percebo, só depois na sua insistência, “estás tomado!!”, compreendo que me diz bêbedo. Ombreia com o par de jarras da Iberia e anuncia que eu ficarei ali, que vai chamar a polícia devido ao meu estado. Não estou bêbedo mas fico estupefacto, mais até com as cabrinhas Iberia (feiosas, não recordo se já o disse), ali tão ciosas em chatear o passageiro. Fico calado, presumo que tenha arqueado a sobrancelha (dizem-me ser-me gesto habitual), constato que nenhum deles porta identificação. Logo, logo, sem mais, me devolve o documento e eu sigo - “amanhã uso o livro de reclamações, espanhóis de merda…” -, mas um bocado alquebrado: na fronteira de chegada uma oficial tentou ser simpática e disse-me “velho”, à partida o seu colega quer ser antipático (e consegue) e chama-me “bêbedo”. Será melhor não voltar cá, sabe-se lá que mais avançarão.
Enfim, quase 5 horas depois da hora da borregada partida lá aporto ao hotel, feito coito de desiludidos. Enquanto espero por um verdadeira ceia leio as novas de Lisboa. Rio-me: Sousa Pinto, em tempos o agitado inventor das “causas fracturantes” agora tornado xuxu dos salões do centro bem-pensante, encantados com a verve do homem em avatar crítico, associou-se a outros da mesma laia (gente com o desplante de militar no PS), invocando o “fascismo” “inadmissível” da centena de tipos do CHEGA que se manifestaram no Largo do Rato, sede do sindicato socialista. Nas redes sociais vários, até não-PS, concordam.
Estou cansado, esfomeado. E, repito, aborrecido com os maus-tratos, e percebo-me burguesote, nisso saudoso do quando até parecia um jovem aprumado, assim imune a estas cenas. Por tudo isso descarrego, desabafo, e para todas eles encomendo desgraças, dolorosas. Há pouco mais de um ano, na sequência dos dislates russófilos emanados do PCP aquando da invasão da Ucrânia, umas dezenas de manifestantes, entre os quais ucranianos, acorreram à sede daquele partido manifestando-se contra as suas posições. Na época vieram estes “comentadores” e estes “redessociólogos” gemer qualquer “inadmissibilidade”? É a malta do CHEGA desagradável? É.Mas para se manifestarem avessos às Leitão Marques e aos Silva Pereira onde o deverão fazer? Em Quelimane….? Mas se for contra o PCP toca de acorrer à Soeiro Pereira Gomes?
Acordo cedo e avanço para a leitura de um artigo sobre a história da Antropologia portuguesa, coisa de italianos. Para além das laudas ao nosso “progressismo político” actual lá vem o regurgitar do discurso socialista: o enquadramento histórico (em texto de 2023) anuncia o colonialismo português como um projecto do Estado Novo, malévolo. Os autores são estrangeiros, estarão a ecoar o que se lhes disse. Mas mais uma vez lá vem o elidir da essência colonialista do nosso republicanismo, da I República, de como tudo isso nos conduziu à I Guerra Mundial - é um esquecimento que é um aldrabismo (o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa no centenário do Armistício é um monumento protocolar dessa mistificação).
No fundo trata-se do óbvio: naquele meio intelectual, do tal “progressismo político”, o relevante é apupar o padre António Vieira e salvaguardar os antecedentes do PS, o qual distribui empregos e financiamentos.
Interrompo a leitura, irritadíssimo. Desço à recepção onde me avisam que talvez siga hoje à noite. O meu problema é que os filtros acabaram e é difícil comprar mais - fuma-se pouco por aqui, escasseia a venda de tabaco. Os bogotanhos devem pensar que há coisas mais relevantes do que fumar à porta dos restaurantes. Se calhar há… Vou à rua fumar, terceiro cigarro com o mesmo, e último, filtro, um nojo. Despreocupado com o regresso. Pois de facto, constato, para todos os outros é igual a que horas ou em que dia viajarei eu. É verdade. Mas assim rebelo-me contra este meu declive, até depressivo, num “estás tomado?!”.
Regresso ao quarto, onde perorava o insuportável sotaque da Annanpour. No caminho uma empregada trata-me, como aqui o têm feito, por Señor Taveira, sorrio com gosto à tão rara alusão ao apelido do meu avô materno - oficial do 28 de Maio que não era mais colonialista do que os seus irmãos e cunhados mais velhos, também militares, que antes haviam partido, patrióticos, para a guerra na Flandres. Mas pronto, a minha irritação se calhar deve-se a ter lido ontem um (até fraco) “Abril e Outras Transições”, no qual o Cutileiro resmungara, en passant, a mistificação da I república, como acima de tudo, culmina com aquilo de uma boa educação universitária (sumamente altaneiro remete-a para Oxbridge) se definir por ser aquilo que torna alguém capaz de identificar “when a man is talking rot”… Não que eu tenha estudado por aí além mas atrasos nos vôos dão para estas… divagações.
Avanço, uma matrona simpática, nariz arrebitado atraente, companheira de vôo - a quem eu, na véspera ajudara com as malas, como se nada fosse - retoma a conversa comigo. Almoçaremos juntos, eu para dentro a recordar um conto de Cortazar no "Todos os Fogos o Fogo", que li em Salema aos 14 anos (um engarrafamento na auto-estrada, passados poucos dias as pessoas já se organizaram em comunidades, e até casais se fazem, de súbito o trânsito começa a fluir e tudo se desfaz na debandada). Ainda assim "fiz conversa" quase duas horas, um recorde de décadas.
No regresso ao quarto, aqui, outra me trata por Senhor Taveira. E de súbito o tão raro tratamento atira-me para 35 anos antes: no Hospital Militar, a que acorrera para ver se me via livre da tropa, fui recebido por uma senhora, que então me parecia até decana, secretária de um qualquer Coronel ou General Médico. Olhou distraidamente para os meus documentos e tratou-se por "Taveira". Eram ainda os tempos do escândalo dos filmes e talvez também por isso disse-lhe "Eu não sou Taveira, sou Teixeira".
Ao que a Senhora me respondeu, dando-me a maior lição na vida, e que tantas vezes esqueço: "Taveira somos todos!".
(Talvez avance hoje. Se daqui a bocado encontrar o sacana da fronteira pago-lhe uma cerveja. E claro que não reclamarei das hospedeiras, ou lá como se lhes chama. Mau mesmo é o estado deste filtro, após 5 cigarros. Fedorento, afianço).