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Nenhures

toquei na minha mãe pela última vez. É certo que a, posteriormente consagrada, directora-geral da autoridade sanitária pública ainda nos viria convocar para visitarmos os nossos "mais-velhos", e que o nosso PR ainda andava, frenético país afora, em comemorações teatrais. Mas, face ao que já grassava na Itália e em Espanha, decidimos não visitar a mãe até que as coisas, que tão negras pareciam, viessem a serenar. Fui, fomos, à Ericeira dizer-lhe isso, afiançando-lhe a crença de que seria por pouco tempo, uma "maçada" apenas, algo a que ela, nonagenária lúcida, acedeu em acreditar.

Uma semana depois, a 13, a minha filha viajou de Inglaterra - no exacto dia em que Warwick, a sua universidade, encerrava por todo aquele ano lectivo (!) -, fui recebê-la ao aeroporto, ainda pejado de exultantes turistas nórdicos em busca de sol de Inverno, vinho barato e peixe grelhado, tal como no Tejo ainda aportavam os gigantes paquetes..., vil e incompetente coisa de país reduzido ao afã da "indústria turística". E, angustiados, seguimos directos para Sul do Tejo, onde amigos-verdadeiros irmãos abriram a levadiça do seu já confinamento para nos albergar. Dias depois o país confinou-se.

Algum tempo depois pude voltar, voltámos, a visitar a minha mãe, à distância sem beijos nem toques, no jardim frondoso da "Residência" onde vivia. E, em piores momentos, apartados por uma barreira de acrílico. Um dia, meses depois, ela, bastante enfraquecida por aquela clausura angustiante, disse-me e repetiu-me "és muito bonito, meu filho, és muito bonito", inédita hipérbole que atribuí a alguma anciã confusão intelectual e a um carinho saudoso. Era, afinal, uma despedida pois morreu poucos dias depois. Sem que eu a pudesse ver uma última vez, já no seu esquife, devido às exageradas restrições, nisso disparatadas, mesmo assarapantadas...

Andava eu acabrunhado, acabrunhadíssimo fiquei, entretanto talvez me tenha libertado do superlativo.               

E acabrunhados então andávamos, mesmo que não desistentes: o meu amigo Miguel Valle de Figueiredo - que é não só um bom fotógrafo mas também um homem como deve ser (Homem com H grande, dizia-se) - logo se apartou das angústias e saiu à rua para fotografar a cidade confinada, tendo editado o seu "Cidade Suspensa", a Lisboa dessa inicial era Covid. E depois, meses a fio, continuou a fotografar-nos. Acabrunhados, nisso até exaustos. Deixo aqui alguns de nós por ele fotografados.

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sentada.jpgPara quem se possa interessar: um dia deixei um relato longo dos dois primeiros meses de Covid em Portugal, chamando-lhe "O Capitão MacWhirr e o Covid-19". E julgo que qualquer leitor de Conrad logo pressentirá o seu conteúdo...

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(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

Ontem, 13 de Março, passaram-se 3 anos exactos!: a minha filha chegou de Inglaterra, onde a sua universidade encerrava por todo aquele ano lectivo, eu recebi-a num misto de angústia - aquela que presumo todos os pais terem sentido nessa época, ainda desconhecedores dos efeitos que a nova doença teria entre os jovens - e de ira, pois acolhendo-a num aeroporto pejado de turistas ingleses que vinham ao Sol do Algarve, e sabendo que os paquetes apinhados ainda atracavam ao Tejo..., isto tudo entre as já trapalhadas da futura "Super-Marta" (que agora se anuncia "para Lisboa"!), sua dra. Graça ("visitai os lares de terceira idade", clamara ela nessa mesma semana) e restantes dignitários... Saímos da Portela logo rumo a Sul do Tejo, e confinámo-nos junto a um grupo de amigos que já se tinham encerrado há já uma semana, abrindo o portão apenas para que nós entrássemos - Amigos-Irmãos, verdadeiramente.
 
 
 

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A situação dos serviços públicos de Saúde é complicada. E tendendo para o deficitário face às expectativas sociais. Nos últimos dias, para além dos consabidos problemas estruturais e das reclamações dos sectores profissionais, aconteceram mortes em instalações públicas que convocaram a atenção. Há uma década alguns lamentáveis incidentes similares convocaram uma chuva de reclamações na imprensa - na redução de maternidades proposta sob Correia de Campos e, depois, durante o governo de Passos Coelho. Mas agora a reacção da imprensa (jornalistas e colunistas) é muito mais pacífica. O poder de Costa é-lhes mais atractivo, mais sexy.

Nos últimos 27 anos o PS esteve no poder, a solo, durante 21. É assim absolutamente inaceitável a continuidade do discurso que responsabiliza a "direita" e os seus "interesses privados" (os "barões da medicina", como alguns ainda adornam) pelo estado actual dos serviços de saúde públicos. É um aldrabismo, puro e simples.

A governação da ministra Temido exerce-se há sete anos, ela tem o posto há quatro e é o seu terceiro governo consecutivo. E sobre o seu desempenho é relevante percebermos a influência de uma imprensa - a institucional e a dita de "cidadania", a dos apparatchiki, avulsos nas redes sociais - que cria "boa imagem", ao governo e a alguns dos seus membros. E a esta ministra, muito em particular.

Recordo que durante o longo período sob a Covid-19, muito se falou, bem e mal, fundamentado e infundamentado. Mas nada vi tão baixo como este episódio: no início de 2021 Portugal tornou-se, por algum tempo, um dos piores países do mundo, talvez mesmo o pior, no controlo da pandemia. É evidente que o rumo desta era algo inesperado e que os seus efeitos seriam sempre duríssimos. Mas tal descontrolo nacional muito se deveu à atrapalhação governativa (executiva e comunicacional) durante o Outono-Inverno de 2020. Nesse nosso pico pandémico - com o sistema de saúde em sobreesforço - vingou o "negacionismo" informativo: passados alguns meses foi notícia constante a "catástrofe indiana", pois naquele país de infraestruturas sanitárias bem mais escassas do que as nossas, morriam diariamente cerca de 11 vezes mais pessoas do que naquele nosso Janeiro. Mas os indianos são 140 vezes mais do que nós!... E aqui o que se afirmara não fora a "catástrofe lusa" mas sim, ao invés, a excelência de Temido. Esse trabalho propagandístico foi eficiente, por mais baixo que o possamos considerar: lembro que no rescaldo de uma entrevista de Temido à RTP, onde ela se escapou às críticas respondendo de modo abrasivo, tornou-se "viral" (como se deixou de dizer...) um apoio partidário que a tratava como "Super Marta". Quando éramos, repito, um dos piores ou mesmo o pior país do mundo nos efeitos da Covid-19.

De facto, Temido era má ministra antes da Covid-19. Não foi uma boa ministra durante a Covid-19. E não é a ministra necessária para o pós-Covid-19. Tem uma "boa imagem", pois não é um decano façanhudo e porque teve a imprensa (a institucional e os tais avençados) a cuidar de si. Entretanto, o SNS está numa crise estrutural profunda. E anunciada. E ela nada tem para responder.

Mas nada ganharemos se apenas a tornarem numa "cabra expiatória", enviando-a para um qualquer posto internacional. Pois, de facto, o  problema ultrapassa-a. E o cerne é este, repito-me: nos últimos 27 anos o PS esteve no poder, a solo, durante 21. Com vários governos, primeiros-ministros e ministros da Saúde. E o SNS está como está. É esse o busílis. Necessário para reflectir antes da próxima e necessária demissão de Temido. Que não é "Super" nem nunca o foi. A não ser nas palavras avençadas. E nos aplausos inconscientes. Até suicidários.

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Quase sexagenário continuo a acreditar que de pequenos episódios se podem retirar conclusões sobre questões (ou posições) mais gerais, assim uma espécie de pensamento indutivo. Método de reflexão com muitos limites mas que, pelo menos, é uma muleta para mentes medianas, como esta que tecla. E lembro-me agora disto por causa desta guerra russo-ucraniana e de muitas reacções que fui vendo, dessas que enfatizam a maldade "ocidental". As quais começaram por ser bem explícitas e que foram sendo matizadas - "embrulhadas" - até pela evidente insuportabilidade intelectual desta "russofilia", a qual actualmente não passa de uma necrose da ideologia socialista.
 
Um dos tópicos deste omnicriticismo sobre o "mundo ocidental" é o sublinhar da putativa influência (causal) da indústria de armamento americana, o qual teve muito uso no início da guerra. O que é interessante, em particular quando os locutores são africanos, é que nunca referem que as actuais importações de armamento em África têm como fontes preponderantes as indústrias... russas e chinesas. É certo que este não é material mais sofisticado (e caro). Mas também nunca referem a veemente concorrência entre essas indústrias nacionais de armamento nesse tipo de material muito sofisticado, a qual vem tendo imensas implicações "geoestratégicas". Não é por falta de informação (que está bem disponível, via google ou mesmo em livros generalistas, p. ex. no célebre Frankopan). É apenas porque não lhes dá jeito à retórica...
 
 
 

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Fez ontem exactamente um ano que morreu Fernanda Angius, antiga leitora do Instituto Camões em Maputo durante a década de 1990, tendo então exercido na Universidade Pedagógica e no INDE, e que antes ocupara funções similares em Itália e no Zimbabwé. Octogenária, e presumo que padecendo de alguma maleita física, vivia numa residência para a terceira idade em Lisboa. Julgo, mas não o posso afiançar, que terá morrido na sequência de uma infecção com o Covid-19.
 
Não trato aqui de uma homenagem póstuma. Mas sim de partilhar um texto que Fernanda Angius publicou no seu mural de FB pouco antes de morrer, em 2.1.2021., e o qual muito me sensibilizou naquele momento - estando longe (como é óbvio) de imaginar que precedia a sua morte - e que desde então penso em abordar. Em parte porque a minha mãe, que vivera numa residência similar, ainda que felizmente recebendo um enquadramento bem mais mimoso, havia morrido há muito pouco tempo.
 
Mas não só, pois acima de tudo o que me impressionou naquele texto era a demonstração, crua, sem rodeios, de como na nossa sociedade vamos armazenando os nossos mais-velhos, transformando a sua real dependência física numa subordinação moral, esta exercida através de um paternalismo gélido. Desrespeitador. Num fluxo de relações, intergeracionais, que se terá exponenciado durante esta maldita pandemia e seus confinamentos, mas que muito mais é uma característica já pré-existente e que temo vir a enquistar-se neste futuro próximo, transformada num verdadeiro e malvado legado. Pois assume, decerto, um vigor de mundivisão dominante, e não apenas um transitório deslize promovido por práticas constrangidas pelas urgências sanitárias. Nisso tudo traduzindo-se num efectivo destratamento dos velhos.
 
Tudo isso poderá ser pressentido, intuído ou mesmo testemunhado por muitos, ou até conhecido através de queixumes daqueles nossos mais-velhos que sofrem estas rudes despersonalizações. Mas decerto que é raro encontrar alguém já do "outro lado", já "asilado", que mantenha a energia e a pertinência intelectual para nos transmitir o "como é" que vivemos. Os mais-velhos já "lá dentro" e nós, menos-velhos, ainda "cá fora". Por isso aqui partilho este texto, longo, duro de pungente, o relato que Fernanda Angius fez daquele "reveillon", afinal o seu último. Tende coragem para ler...
 
*****
 
Penso na entrada deste Ano Novo que foi, para mim, completamente oposta à entrada do ano anterior. Esperemos que o seu desenvolvimento também se oponha ao desenvolvimento de 2020.
 
A última ceia do Ano Velho foi muito triste embora alguém a tivesse declarado ser de festa. Mas foi uma festa silenciosa pois, na sala de refeições, alguns poucos e tristes balões agarrados às paredes não conseguiam transmitir a ninguém o ambiente de festa que fora anunciada; nem mesmo o pratinho de doces sortidos que, (sobre a mesa de cada residente) aguardava o pós refeição chegava para me fazer sentir a especialidade desta última refeição do ano, tomada em sepulcral silêncio, todas nas costas umas das outras, como colegiais em castigo por mau comportamento.
 
O ambiente festivo resumiu-se aos citados balões e ao pratinho que acompanhava um minúsculo cálice de licor que recebeu uma ginjinha (sem elas).
 
A estagiária que colabora com a Direcção e com a Animadora cultural fazia de ajudante no serviço de mesas e a alegria que a festa normalmente produz não se notava nos silenciosos corpos que apenas ingeriam a refeição como em Vigília fúnebre. Talvez esteja exagerando com o adjectivo, mas o meu sentimento era esse. As lágrimas subiam-me aos olhos pensando na passagem do ano anterior; e não era a saudade daquele último réveillon que me entristecia; eu estava profundamente chocada com o conceito de festa que estaria na cabeça de quem, convictamente, assim tinha classificado aquele jantar de fim de ano.
 
Eu esperava que, a qualquer momento, aparecesse um sinal da tal festa, mas apercebi-me de que as minhas companheiras, à medida que acabavam de comer, começavam a abandonar a sala no mesmo silêncio em que tinham entrado. Então, levantei-me e perguntei às funcionárias que levantavam os pratos se a festa era aquilo. Onde estava o convívio? A música? um aparelho de televisão?...Um rádio?...Enfim, onde um só sinal do respeito pela alegria devida a um ser humano que ainda não morreu e ainda tem direito à diversão tradicional em qualquer final de ano?
 
Afinal a nossa cultura popular e tradicional de séculos é ignorada por desatenção, ou já nos consideram apenas números? Afinal onde ficaram os nossos seres pensantes com memória e lucidez normais? Nenhuma das residentes autónomas foi consultada para se estudar como proporcionar-lhes a tal festa. Não seríamos muitas, mas sei de algumas que estavam tão tristes como eu, embora todas resignadas perante a determinação superior.
Enervada, comecei a expressar o meu descontentamento e as funcionárias, stressadas ao máximo, só me diziam que tinham feito o que lhes tinha sido mandado. Eu sabia-o muito bem mas não consegui calar a minha indignação pois me senti usada como trapo velho que, junta ao facto de estar confinada no interesse da saúde pública, ainda tem de ser tratada como de menor idade, sem direito aos possíveis meios de ocupação dos seus tempos e à comunicação com terceiros.
 
Sabendo que em anos anteriores a solução fora encontrada e de maneira bem simples e racional, não compreendo que em nome de uma eventual proximidade mais arriscada, se imponha o confinamento total, dentro de um Lar de onde não se saiu, não havendo, portanto, risco de se ter apanhado o vírus.
 
De qualquer maneira, é maior o risco para a saúde mental das pessoas autónomas do que o de ser infectada. Como diz a sabedoria popular: não se morre da doença, morre-se da cura...
 
As regras impostas sem justificação são sempre o motivo próximo para a transgressão.
 
Nunca me senti tão desprezada como ser racional de pleno direito e nem nos cinco anos que vivi interna, no colégio fui tão ignorada nos meus direitos de cidadã livre que ainda não passou procuração a ninguém para pensar por ela.
 
Basta de me protegerem! Sei tomar conta de mim e não pretendo infringir regras nacionais. Mas todas as ditaduras se afirmam ser tal em favor dos submetidos a elas. E eu começo a temer que a pandemia dê razão para se inculcarem em certas instituições um paternalismo bacoco que é só garantia de menos preocupação para quem tem de tomar decisões. Guiar um rebanho de ovelhas e mais fácil do que um de cabras. E eu sinto-me mais cabra montês do que carneirinho de Parnúggio.
 
Para culminar um ano que só nos trouxe desgraça, não precisávamos de colocar a cereja no topo do bolo...
 
Mas hoje já passou o primeiro dia do ano; e eu já consegui falar com alguns amigos que me deixaram luz na alma e coragem para afrontar o que mais nos trará este Novo Ano.
 
(Fernanda Angius, 2 de Janeiro de 2021)

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