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Nenhures

foto principal da receita de Mão de vaca com grão

Isto de andar na vida tem que se lhe diga. Por isso, e para minha defesa, procurei balizar-me por alguns princípios, morais se assim se lhes quiser chamar. Mas, entre as minhas abissais fraquezas e os "imponderáveis do quotidiano" (citando um célebre anglo-polaco que não era o Conrad), a quase todos esses princípios fui traindo, para minha desengraça espiritual. Agora, às portas do sexagenarismo, sobreviviam dois desses axiomas morais,"resilientes": jamais comer pezinhos de porco; nunca comer mão de vaca.

Acontece que ontem me estreei no restaurante Dom Rodrigo, sito ao centro da Palmela nova... Simpática sala, boa decoração alheada do estilo neo-pequeno-burguês que tanto vai vigorando, preços módicos, serviço simpaticíssimo - atento, gentil e sábio, nisso nada importuno. E comida simples, sem ademanes, mas de cuidada confecção, saciável quantidade e adequada apresentação. Ora o prato do dia era a tal celerada "mãozinha de vaca", que logo o meu correligionário comensal encomendou. 

Devastado pelas agruras da vida mais uma vez cedo, deixo-me quebrar um dos meus últimos redutos: provei a tal Mão Visível. E muito apreciei, à tal manápula, até ululei na anuência.

Fico assim na vida "preso por um fio", suspenso apenas por um último Valor, a tal refutação do pé suíno. Mas voltarei, e amiúde, ao restaurante Dom Rodrigo, na altaneira bela Palmela. Pois casa que me "veste bem", mesmo que homem desprovido de princípios siga já eu...

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Domingo já basto percorrido, eu feito andarilho desde a quase alvorada, entre passadiços, dunas e marés vivas, fui transportado até ao que me foi afiançado ser "referência" local, em plena Fão. A instituição em causa era o "Rita Fangueira", há pouco transitado para novas instalações, sito agora face a uma pequena praceta ribeirinha, um recanto encantador mas o qual, por si só, não suspenderia o afã crítico de amador, até porque seguia eu já esfaimado.

Começámos bem, pois apesar da hora tardia a que aportámos para almoçar a recepção foi afável, numa gentileza sorridente, mas felizmente sem pinga daqueles irritantes popularuchas familiaridades nem quaisquer ademanes altaneiros, esses que até antecipara dado que acabara de cruzar a vizinha Ofir, a qual presumi ser ainda refúgio dos descendentes daquele "dinheiro novo" do Estado Novo portuense.

Não tendo eu, nem a minha cicerone, quaisquer prosápias de analistas gastronómicos e ainda menos tendências glutonas, não procedemos a demorada análise do cardápio. E assim, amáveis clientes, acolhemos os conselhos de quem ali trabalha. Para encetar aconcheguei-me com um copo de tinto da casa, um Douro de 2019 (Fronteira) de qualidade muito mais do que aceitável para este iletrado vinícola. Desconhecedor dos costumes locais, mas de sensibilidade etnógrafa, muito notei que a taça chegou à mesa acompanhada da garrafa por encetar e de um "sirva-se, por favor", que bem entendi como um "vá-se o senhor servindo a seu gosto", modo que veio a ter o inesperado efeito de, duas horas depois, o vasilhame estar prestes a ser escorropichado, dado o alento que entretanto viera eu, a solo para aquele propósito, a receber por via dos víveres apresentados. 

O referido vinho foi inicialmente acompanhado por uma muito civilizada cobertura, saudavelmente apartada das pantagruélicas "entradas" que constam da mitografia nortenha: um par de croquetes, esquecíveis, e um outro de pastéis de bacalhau que, ao invés, justificaram a atenção. Mas o relevante foi a concisa cesta de pão, decerto que proveniente de decente padaria: algumas fatias de regueifa, na textura e sabor adequados, outras de broa e ainda outras de broa de carne, ambas assinaláveis. E tudo potenciado pelo seu acompanhamento, a extraordinária manteiga de Marinhas, um produto local digno dos maiores encómios. Ou seja, a bem dizer-se estava eu já almoçado, e bem, e ainda não haviam chegado os pratos, ali e assim verdadeiramente presigos.

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A nossa recatada opção recaíra sobre o prato do dia, um porco assado com castanhas, e o fígado de bovino de cebolada ("iscas", como dizemos nos Olivais e vizinhança). A minha atenção inicial incidiu sobre estas últimas - as quais estavam literalmente de "chorar por mais", e de tal forma que quase monopolizaram as minhas disponibilidades. Alguns entendidos nestas matérias propagandeiam um ideário que consagra haver uma graduação na dificuldade da confecção de alimentos e na execução das respectivas receitas. Não sei se nessas visões escolásticas as "iscas" estarão no topo mas confesso a minha surpresa, esta de perceber como um prato tão corrente - e nisso dito pouco "nobre", quiçá até "fácil" - pode ser apresentado de forma tão rara de excelsa.  Ao porco, e suas amásias castanhas, enfrentei-o já em dificuldades, até algo notórias, mas ainda assim pude constatar - e num "prato de dia" - que nos chegava exactamente como os mandamentos o ditam, sem inovações nem derrapagens. Ou seja, ambos os manjares ali estavam no estrito respeito pelos valores devidos, mas - e o que é ainda mais notável - sem quaisquer ribombos folcloristas.

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Após isto impôs-se um breve intervalo, à esplanada na fruição de um rolo de Amber Leaf, enquanto o eficiente "colaborador" recolhia o vasto remanescente das duas opíparas "meias doses" (?), destinado a recompensar o imaginário canídeo da clientela em questão. Regressei para enfrentar a recomendada sobremesa, uma parelha advinda da confeitaria local, um excelente folhado de ovos moles de Fão, que justifica sobressair no imenso rol de artigos aparentados que a tradição conventual legou à nossa "doce pátria", e uma "Clarinha", um esplêndido pastel de gila (ou chila) também típico daquela Fão assim dulcíssima.

E desta suculenta forma terminou o repasto, que senti e recebi como excepcional. O preço desta para sempre memória? Num restaurante que me dizem renomado junto à zona de veraneio das elites económico-culturais nortenhas? Mais barato do que uma qualquer patetice italiana ou fancaria indiana na capital... 17 euros por pessoa! Algo está mal na república. E não é, garanto, em Fão.

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"Em Roma sê romano", clamava a sageza republicana, tão avessa à barbárie multiculturalista que tanto, neste depois, viria a ensombrar o Império.

Nessa crença sendo, cruzando o Porto fui conduzido ao Velasquez para proceder à obrigatória "observação-participante": ali, entre ordeiros e satisfeitos grupos provenientes de um bem sucedido encontro futebolístico local, um "dérbi" como sói dizer-se - no qual os vizinhos vindos da industriosa Paços de Ferreira haviam soçobrado -, confrontei-me com a célebre "francesinha", essa avoenga do hambúrguer de queijo disposta em maré viva de gordura. Foi um apreciável acto etnográfico. Agrado que se me sublinhou à saída, na gentil despedida que me foi ofertada, uma "boa estada cá pelo Norte" concedida pelo "colaborador" que nos atendera, a qual me foi logo interpretada como devida não só a ter eu pedido, repetidamente, "uma imperial, por favor" como por o ter feito com aquilo a que aqui chamam, erradamente, "sotaque".

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A recente morte de Isabel II, pela dimensão simbólica da longeva soberana e também pela cuidadosa e complexa ritualização das suas exéquias, promoveram não só o reforço do apreço generalizado pela defunta como também uma vaga de simpatia para com a envolvente monárquica.
 
Por isso, e agora que já passado o período de nojo, impôs-se uma verdadeira comemoração do dia da República, qual "cerrar fileiras" à ordem de uma "primeira forma" adequada. Com esse intuito o rancho deste 5 de Outubro foi condignamente celebratório. O saudável, e genuinamente selvagem, contingente de massacotes - já em tirocínio para besugos - fora arregimentado no vizinho mercado ribeirinho, ao qual aportara nessa mesma alvorada. Por conselho de verdadeiro arrais de mesa foi evitada a parafernália da assadura e tratou-se da sua fritura, apesar dos preconceitos discriminatórios que vão atingindo esta manobra. A guarnição apresentou-se em formato de arroz pátrio (carolino, pois então) de feijão, debruado de pimento vermelho e em estado algo malandrete, tudo isto orlado com uma muito saudável salada aspergida de uma balançadíssimo vinagrete.
 
Encetado o repasto o debate incidiu sobre as dificuldades dos cozinheiros surdos (ou mesmo dos moucos). Pois, frisou o mestre e chefe de mesa, são vincadas as exigências auriculares da correcta fritura do peixe, aquela que produz - como ali recebíamos, em comovente comemoração da res publica e da privada também - uma pele qual crocante mas preservando a frescura e sabor da carne piscícola. Algo apenas alcançável, diz quem o sabe, se captado o momento, sonoro, da inflexão do crepitar no frigir.
 
Enfim, depois a conversa versou outros temas, generalistas. Este cidadão, republicano q.b. e mouco em demasia, permitiu-se ao trio de massacotes. Esplêndidos. Viva a República!!!

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Tenho deixado no Facebook, e por vezes aqui no blog, alguns ecos de passeatas gastronómicas que me acontecem. E, com franqueza, até me surpreende o apreço com que são recebidos esses postais, muito maior do que que quando me ponho a perorar sobre assuntos sobre os quais julgo ("presunção e água benta...") ter muito mais pertinência. Pois nada sou especialista na matéria. Não só sou frugal nos "comes" (nos "bebes" por vezes alonga-se-me o apetite), até avesso às comezainas, como - e isso é que é o fundamental - não sou "gourmet" pois demasiado distraído (entenda-se, inculto) para aquilatar das verdadeiras qualidades do que vou comendo, da miríade dos seus condimentos, dos modos da sua maturação e das genealogias do que enfrento. Enfim, aprecio o convívio à mesa, mesmo que este apenas comigo mesmo quando sigo algo andarilho, e é apenas disso que por vezes falo, da comida como pretexto...
 
Algo muito diferente, sabedor e refinado, é o que se passa neste belíssimo blog Gastronautas. Feito a meias por Filipe Gill-Pedro (que se apresenta no seu inglês natal) e por Luís Neves (que segue lusófono). Textos concisos e bem escritos - o que implica que ali não se emulam os mestres Alfredo Saramago ou José Quitério, como ainda é tão cansativo hábito nas páginas sobre estas matérias -, e com bonita apresentação.
 
No Gastronautas discorre-se sobre os modos típicos da cozinha portuguesa - para inglês ver, literalmente falando, mas que muito faz falta aos nacionais vítimas da cozinha globalizada. Surgem textos sobre alimentos, recônditos e até excêntricos aos urbanos. Fala-se de alguns restaurantes e seus cozinheiros, sem a prosápia de distribuir estrelas, pneus ou consagrar os gentrificados "chefs". Desvendam-se daqueles agricultores que renovam o cardápio dos condimentos a que temos acesso, ou mesmo os ressuscitam. Em tudo isso, e mais, fala-se acima de tudo do manuseio do tempo, no civilizado primado do devagar.
 
Ide espreitar, sff. Espero que possais desfrutar tanto estas leituras como eu o tenho feito...

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