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Nenhures

rui-knopfli-1932-1997-ecoo-inteiro-a-forca-do-meu-

Em geral convém ser moderado nos elogios, pois em não o sendo quando apregoamos um qualquer apreço pouco impacto isso terá, resumido pelo fastio alheio num "lá está este...". Mas ainda que assim seja apregoo agora que este documentário "Rui Knopfli - I'm really the underground" (realização de Ricardo Clara Couto, argumento de Nuno Costa Santos) - que acabo de ver na RTP2 - é muito bom, mesmo muito bom. Excelente! E não só pelo tom e encenação, apuradíssimos - e com protagonismo cénico dado a um rádio igual ao que herdei da minha avó materna e que vim a fazer transitar para um dos seus bisnetos, pormenor que me deliciou mas que é bem secundário neste meu encanto... Pois este vem, repito-me, da excelência e pertinência do documentário.
 
Eu gosto muito da poesia de Knopfli, talvez pelo seu classicismo (como ali resume Francisco José Viegas - um dos entrevistados, junto à filha e à neta do poeta, e a Pedro Mexia, Eugénio Lisboa, Vasco Rosa, João Francisco Vilhena e ao já mais-velho Luís Carlos Patraquim, todos com deveras interessantes contributos), nisso sem lânguidos meneios oitocentistas nem poses crípticas de formalismos (pós-)modernos, bem ritmada ("jazzística" dela diz Eugénio Lisboa) e sem a deriva das metacitações, onanismo poético que me é insuportável.. E porque, poeta de Moçambique, isento dos sempre habituais tons "curio", essas "cores" ocres, esses linguajares "apoetizados" de "indigenismos" e, pior do que tudo, os malvados sentimentos "profundos" e "humanitários" tão ditos como "líricos", que fazem as delícias dos leitores africanófilos e dos "tops" de literatura "lite" premiável... E, ainda por cima, sem se conspurcar por gota que seja de "causas".
 
E gosto, adoro, a inteligente pertinência que teve ("atropelado pela História", muito bem dele diz Mexia), rara no seu mundo. Um dia usei-lhe um poema como epígrafe de um texto meu: "Feita de lavras / em pousio e esperança adiada / pertencemos todos a esta áfrica lusitana / que pelas outras se expandiria. Por estas / andámos perdidos, ignorando então / que a passagem obrigava ao regresso.", poema em fim de vida - mas dolorosa presciência já presente no seu inaugural "O País dos Outros" de 1959 - em apenas seis versos explicando o XX português, esse dos "portugueses em transição" (como diz Lisboa) num "paraíso a prazo" (Patraquim) que tão poucos dos seu contemporâneos pressentiram, sentiram e compreenderam e que ainda alguns, não tão poucos assim, insistem em incompreender. E no dia em que me fiz vir embora de Moçambique, irremediável passo mal dado, exigindo-me sozinho no rumo para o aeroporto deixei dito, lembrando-o, "Não sou o Knopfli, o Kok já morreu ["Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon / e olha-me obliquamente nos olhos: Não voltas mais? Digo-lhe só que não"], escreveu o poeta narrando-se em Mavalane à saída," quando indo-se da independência] - ele então expulso, partindo para um exílio perpétuo. E, como se viu e o sentiu ele, desabrigado, apesar do amparo pragmático que recebeu do país e do Estado.
 
Hoje à noite ao ver o belo documentário lembrei-me de quando Knopfli ressurgiu, no ano em que viria a morrer, com o terminal "O Monhé das Cobras", naquela década em que tinha visitado Moçambique, sendo surpreendido pelo acolhimento de escritores e leitores - na época muito dinamizado pelos seus admiradores Nelson Saúte e Francisco Noa, já então intelectuais centrais no país. O regresso em livro do "velho" poeta era marcante - e porque me deu para isso encomendei algumas dezenas (5? 10?) de exemplares, que era o que podia, para distribuir pelas bibliotecas e leitores do país. Decerto que terão sido lidos, justifico-me... E lembro também a excitação tida, coisa de um ano depois, aquando da publicação por António Sopa da pequena pérola bífida, a colecção de crónicas de José Craveirinha e Rui Knopfli chamada ""Contacto e outras Crónicas" (Craveirinha) + "A Seca e outros textos" (Knopfli), textos ditos "menores" mas riquíssimos...
 
Mas isso são memórias minhas, o relevante agora é ver o documentário. E o melhor é perceber que este não se fica (como temi) no Knopfli de Inhambane a Lourenço Marques, como é costume nas (ainda assim algo raras) invocações do poeta. Pois se ele veio a dizer que "daí nunca mais saí" o filme percorre um pouco do seu "exílio" londrino, o seu descabimento alhures. Ficou apenas por remexer aquele "Ilha de Próspero", sempre incensado mas que é, de facto, a grande fronteira do poeta, apesar de tudo homem do seu tempo - pois o macuti, a "Ilha" mesmo, onde vive quem de lá é e quem para lá vai, era-lhe externo, foi-lhe impenetrável, e é isso coisa que os dos estudos "culturais" e "literários" nunca conseguem perceber... Mas não seja por isso, pois o filme é mesmo (bi-repito-o) muito bom. E porque termina com este seu magnífico "Cântico Negro" - ensinem-no aos jovens, nas escolas e universidades, desempreguem os sacristãos de pacotilha que para aqui andam:
 
Cago na juventude e na contestação
e também me cago em Jean-Luc Godard.
Minha alma é um gabinete secreto
e murado à prova de som
e de Mao-Tsé-Tung. Pelas paredes
nem uma só gravura de Lichtenstein
ou Warhol. Nas prateleiras
entre livros bafientos e descoloridos
não encontrareis decerto os nomes
de Marcuse e Cohn-Bendit. Nebulosos
volumes de qualquer filósofo
maldito, vários poetas graves
e solenes, recrutados entre chineses
do período T´ang, isabelinos,
arcaicos, renascentistas, protonotários
– esses abundam. De pop apenas
o saltar da rolha na garrafa
de verdasco. Porque eu teimo,
recuso e não alinho. Sou só.
Não parcialmente, mas rigorosamente
Só, anomalia desértica em plena leiva.
Não entro na forma, não acerto o passo,
não submeto a dureza agreste do que escrevo
ao sabor da maioria. Prefiro as minorias.
De alguns. De poucos. De um só se necessário
for. Tenho esperança porém; um dia
compreendereis o significado profundo da minha
originalidade: I am really the Underground.

sita.jpg

boubacar traore.jpg

A "New Yorker" traz uma boa peça sobre Bill Frisell (ligação com acesso livre). Enquanto a leio abro outra "janela" e deixo-o tocar. Mas, oops, cansar-me-ei - sim, sei que o homem é infindável, quase infinito, mas o concerto que abrira aborrecia-me. E por isso recuei às suas declarações na tal peça, dizendo que fora influenciadíssimo pelo grande Boubacar Traoré... "Ih, há quanto tempo não o ouço!", resmungo-me. Deixo o Frisell lite (lamento, mas é a verdade), vou à referida Spotify e inscrevo-me como ouvinte do gigante maliano. Isto foi na alvorada. Passei o dia a ouvi-lo, a Boubacar Traoré. Que belo dia!

Boubacar Traoré  - Je Chanterai Pour Toi (documentário de Jacques Sarasin, 2001)

tardi.jpg

Em meados da década de 1970, a nossa revista semanal "Tintin" era um verdadeiro luxo. Sob os célebres arrais Vasco Granja e Dinis Machado - este que viria a botar o tão influente "O Que Diz Molero", uma pérola...-, agregava o que era publicado na "Tintin", na "Pilote" e ainda na "Spirou", conjugando a "ligne claire" (dita de Bruxelas) com  "escola de Marcinelle".*  Pouco depois dos meus 10 anos, na era do PREC, nela houve uma "revolução coperniciana". Foi a introdução de autores que então pareciam menos atreitos canónicos, como Derib, Auclair, Cosey, etc. E Pratt, ainda para mais chegado no preto-e-branco que a tantos desagradou. Essas novidades provocaram uma enorme polémica no sempre animado "correio dos leitores" - verdadeiro prenúncio das "redes sociais", poderemos dizer se hoje revisitarmos a revista -, opondo os (jovens) "conservadores", militantes dos heróis já estabelecidos, aos "(jovens) turcos", paladinos das inovações havidas. Descobri-me "centrista", na concertação entre o afã jubiloso com que perseguia as odisseias de Comanche, Alix, Clifton, Blueberry e as de Jonathan, Simon du Fleuve ou Buddy Longway.

Pouco depois, e ainda na minha puberdade, surgiu a brevíssima revista dedicada ao Spirit (talvez seis números apenas), assim descobrindo Will Eisner que logo me encantou. Depois fui crescendo e chegando a outras revistas, outros autores e heróis. Mas antes havia tido uma excepção no meu encantamento: nunca tinha entrado em Tardi, de que fora publicada o início da série Adèle Blanc-Sec ainda na minha adolescência. Pois a este autor só quando adulto vim a aderir. E muito. 

E sim, ele é o homem da I Guerra Mundial, da absurda hecatombe dos poilus, obsessão temática que ele próprio reconhece. Quando se celebrou o centenário do Armistício em Portugal - entre um gigantismo militarista totalmente anacrónico e um discurso falsário do presidente da República (que teve o desplante de apresentar a participação portuguesa como se fosse dotada do conteúdo de uma participação na II Guerra Mundial, se associada aos Aliados) - botei, em cima das minhas memórias de Tardi, a minha repugnância por tais dislates. Sublinhada por estar então a viver na Bélgica, onde as comemorações (bem mais sentidas, como é óbvio) estavam despojadas de tais militarismos, patéticos triunfalismos e falsidades históricas. Enfim, foi a Tardi que recorri, tamanha a influência que ele teve na minha visão da nossa História. E o encanto que tenho diante da sua obra gráfica. 

Por isso aqui deixo duas entrevistas em registo autobiográfico: estaao longo de cinco "fascículos" radiofónicos. E uma entrevista audiovisual: 

* Para uma breve história da revista "Tintin" portuguesa ver este artigo de Carlos Maria Bobone; sobre as "escolas" (tendências) da banda desenhada belga ver este postal de Agnés Deyzieux. 

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