Os que estão em Lisboa, poderão ver no cinema Ideal (ao Bairro Alto), entre hoje (2.11) e sábado (4.11), o filme "Catembe" de Faria de Almeida. As sessões serão às 21:15. O bilhete custa 5 euros.
O filme - e alguns outros, pequenos, do cineasta, que estão anunciados no sopé do cartaz - rodado na então Lourenço Marques será alvo de apresentações: Maria do Carmo Piçarra, investigadora (quinta-feira), Amarante Abramovici, cineasta e programadora (sexta-feira), Isabela Figueiredo, escritora (sábado).
Transcrevo o texto alusivo ao filme que está inscrito na página-FB do Ideal:
"Manuel Faria de Almeida (Moçambique, 1934) é autor de uma das mais importantes obras do cinema português, "Catembe" (1965), um filme severamente censurado pelo regime ditatorial do Estado Novo. O filme vai ser apresentado em sala, no cinema Ideal, numa ação do projeto FILMar (no âmbito do qual a Cinemateca Portuguesa o digitalizou com o apoio do programa EEA Grants 2020-2024).
A recente digitalização do filme permitiu revelar o trailer inédito que contem algumas imagens das sequências amputadas durante o processo de censura. Retirado de circulação pelo próprio realizador, o filme foi sujeito a 103 cortes, muitos deles perdidos, e que revelavam o quotidiano da cidade de Maputo, então Lourenço Marques, no início da década de 1960. "Catembe" tinha estreia marcada para o Cinema Império, em Lisboa, no mês de novembro de 1965, mas a violência das exigências do regime, levaram à anulação das suas exibições.
A cópia que agora se apresenta, junta os 45 minutos autorizados, aos quais se juntam 11 minutos de cortes, e o trailer que exemplifica a singularidade do olhar de Manuel Faria de Almeida, então um jovem realizador que veria o seu percurso amplamente afectado pela repressão artística e política a que o seu trabalho foi sujeito. O filme, cujo título completo seria "Catembe - Sete Dias em Lourenço Marques", acompanhava o quotidiano do bairro de pescadores, bem como de uma jovem rapariga, contrariando as imagens impostas pelo regime colonial.
As sessões serão acompanhadas com a apresentação de três filmes assinados por Manuel Faria de Almeida."
Não posso deixar de referir o primeiro comentário posto neste anúncio na páginas do Ideal - irreverente diz algo fundamental, que "o filme foi censurado no Estado Novo" mas também depois, que não passou. De facto, foi escassas vezes mostrado, principalmente (ou mesmo apenas) na Cinemateca. Não sei porquê, talvez se possa agora perceber essa elisão deste trabalho - e, honestamente, isso será mais interessante do que a explícita censura pré-25 de Abril, que surgia "por defeito".
Eu vi o filme há uns anos, exactamente na Cinemateca. Ainda era uma cópia não digitalizada. Coloca-a abaixo, em formato da plataforma Vimeo, para quem se possa interessar/concentrar durante quase uma hora:
Já aqui deixei nota que - com a minha vetusta idade, a qual me permite lembrar de Moshe Dayan, Golda Meir e Yasser Arafat -, não tenho qualquer disponibilidade para escutar/ler os doutos que na imprensa se afadigam a explicar o que se passa lá no longínquo Mediterrâneo.
Mas tenho solidariedade e piedade. Solidariedade com as vítimas dos estrategas do fascismo palestino. E, concomitantemente (que bela articulação retórica me sai aqui), com as dos "falcões" israelitas - esses que desta não se safarão durante as próximas décadas. E julgo que após ter exarado esta profunda opinião, arguto diagnóstico da situação, o mundo melhorará.
E tenho piedade - cristã, a do cristianismo ateu - por tantos dos meus compatriotas (ou de países aliados) que têm enchido o meu Facebook com as suas aceradas opiniões, quase sempre comprovadas com indiscutíveis fontes bibliográficas ou filmográficas.
Entre estes há os mais arqueológicos, que se desdobram na partilha de "mapas étnicos" dos tempos bíblicos - comprovando que os "judeus" já então eram os "donos da terra", assim julgando resolver as coisas de hoje. E há os mais sociológicos, incansáveis na proclamação da justeza das reclamações históricas da também imorredoira "nação palestiniana". Gentes futebolistas, estas minhas ligações-FB, sempre adeptos fervorosos sobre tudo o que mexa, seja qual for o campeonato em causa, fiéis ao mandamento do grande holigão René Descartes, fundador da claque do Paris-St. Germain, e autor do lendário lema "Torço, logo existo!".
Entretanto, sobre o continuado confronto entre israelitas e palestinianos, no canal Sic Notícias, no programa Toda a Verdade, está a ser transmitido este esplêndido documento "A Origem de um Conflito". Tem três episódios, são transmitidos a cada domingo (dá para recuar e ir ver). Já passou o segundo. É muito recomendável.
Mas será, também, um desperdício de tempo para judeófilos e para palestinianófilos. Para esses recomendo o canal Onze - que está porreiro. Em especial o aprazível programa "Sagrado Balneário", charlas sobre velhas histórias dos jogadores e treinadores de futebol,
Em geral convém ser moderado nos elogios, pois em não o sendo quando apregoamos um qualquer apreço pouco impacto isso terá, resumido pelo fastio alheio num "lá está este...". Mas ainda que assim seja apregoo agora que este documentário "Rui Knopfli - I'm really the underground" (realização de Ricardo Clara Couto, argumento de Nuno Costa Santos) - que acabo de ver na RTP2 - é muito bom, mesmo muito bom. Excelente! E não só pelo tom e encenação, apuradíssimos - e com protagonismo cénico dado a um rádio igual ao que herdei da minha avó materna e que vim a fazer transitar para um dos seus bisnetos, pormenor que me deliciou mas que é bem secundário neste meu encanto... Pois este vem, repito-me, da excelência e pertinência do documentário.
Eu gosto muito da poesia de Knopfli, talvez pelo seu classicismo (como ali resume Francisco José Viegas - um dos entrevistados, junto à filha e à neta do poeta, e a Pedro Mexia, Eugénio Lisboa, Vasco Rosa, João Francisco Vilhena e ao já mais-velho Luís Carlos Patraquim, todos com deveras interessantes contributos), nisso sem lânguidos meneios oitocentistas nem poses crípticas de formalismos (pós-)modernos, bem ritmada ("jazzística" dela diz Eugénio Lisboa) e sem a deriva das metacitações, onanismo poético que me é insuportável.. E porque, poeta de Moçambique, isento dos sempre habituais tons "curio", essas "cores" ocres, esses linguajares "apoetizados" de "indigenismos" e, pior do que tudo, os malvados sentimentos "profundos" e "humanitários" tão ditos como "líricos", que fazem as delícias dos leitores africanófilos e dos "tops" de literatura "lite" premiável... E, ainda por cima, sem se conspurcar por gota que seja de "causas".
E gosto, adoro, a inteligente pertinência que teve ("atropelado pela História", muito bem dele diz Mexia), rara no seu mundo. Um dia usei-lhe um poema como epígrafe de um texto meu: "Feita de lavras / em pousio e esperança adiada / pertencemos todos a esta áfrica lusitana / que pelas outras se expandiria. Por estas / andámos perdidos, ignorando então / que a passagem obrigava ao regresso.", poema em fim de vida - mas dolorosa presciência já presente no seu inaugural "O País dos Outros" de 1959 - em apenas seis versos explicando o XX português, esse dos "portugueses em transição" (como diz Lisboa) num "paraíso a prazo" (Patraquim) que tão poucos dos seu contemporâneos pressentiram, sentiram e compreenderam e que ainda alguns, não tão poucos assim, insistem em incompreender. E no dia em que me fiz vir embora de Moçambique, irremediável passo mal dado, exigindo-me sozinho no rumo para o aeroporto deixei dito, lembrando-o, "Não sou o Knopfli, o Kok já morreu ["Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon / e olha-me obliquamente nos olhos: Não voltas mais? Digo-lhe só que não"], escreveu o poeta narrando-se em Mavalane à saída," quando indo-se da independência] - ele então expulso, partindo para um exílio perpétuo. E, como se viu e o sentiu ele, desabrigado, apesar do amparo pragmático que recebeu do país e do Estado.
Hoje à noite ao ver o belo documentário lembrei-me de quando Knopfli ressurgiu, no ano em que viria a morrer, com o terminal "O Monhé das Cobras", naquela década em que tinha visitado Moçambique, sendo surpreendido pelo acolhimento de escritores e leitores - na época muito dinamizado pelos seus admiradores Nelson Saúte e Francisco Noa, já então intelectuais centrais no país. O regresso em livro do "velho" poeta era marcante - e porque me deu para isso encomendei algumas dezenas (5? 10?) de exemplares, que era o que podia, para distribuir pelas bibliotecas e leitores do país. Decerto que terão sido lidos, justifico-me... E lembro também a excitação tida, coisa de um ano depois, aquando da publicação por António Sopa da pequena pérola bífida, a colecção de crónicas de José Craveirinha e Rui Knopfli chamada ""Contacto e outras Crónicas" (Craveirinha) + "A Seca e outros textos" (Knopfli), textos ditos "menores" mas riquíssimos...
Mas isso são memórias minhas, o relevante agora é ver o documentário. E o melhor é perceber que este não se fica (como temi) no Knopfli de Inhambane a Lourenço Marques, como é costume nas (ainda assim algo raras) invocações do poeta. Pois se ele veio a dizer que "daí nunca mais saí" o filme percorre um pouco do seu "exílio" londrino, o seu descabimento alhures. Ficou apenas por remexer aquele "Ilha de Próspero", sempre incensado mas que é, de facto, a grande fronteira do poeta, apesar de tudo homem do seu tempo - pois o macuti, a "Ilha" mesmo, onde vive quem de lá é e quem para lá vai, era-lhe externo, foi-lhe impenetrável, e é isso coisa que os dos estudos "culturais" e "literários" nunca conseguem perceber... Mas não seja por isso, pois o filme é mesmo (bi-repito-o) muito bom. E porque termina com este seu magnífico "Cântico Negro" - ensinem-no aos jovens, nas escolas e universidades, desempreguem os sacristãos de pacotilha que para aqui andam:
SITA: A VIDA E O TEMPO DE SITA VALLES - (Trailer oficial PT)
Este documentário "Sita: a vida e o tempo de Sita Valles", é mais uma investida da realizadora Margarida Cardoso ao ocaso colonial. Ao vê-lo logo recordei o excelente "O Mar em Casablanca" de Francisco José Viegas (talvez o meu romance preferido daquele autor), que aflorou o terrível episódio. Mas, e para além dessa minha deriva, como é óbvio logo associei este recente filme a outras obras de Cardoso, o "A Costa dos Murmúrios" (com base no romance de Lídia Jorge) e, em particular, o excelente "Yvone Kane", neste caso pela patente similitude temática - e, num âmbito mais alargado dessa indagação sobre aquele período histórico também é relevante o documentário "Kuxa Kanema - o Nascimento do Cinema", debruçado sobre o inicial processo cinematográfico moçambicano (o texto começa por uma alusão aos "cinco séculos de colonialismo" mas essa derrapagem não é mácula suficiente para deslustrar o trabalho).
Não faço estas associações pela superficial nota de "género" - aquele mero reconhecimento da mulher realizadora que indaga o(s) processo(s) histórico(s) através de três personagens/personalidades mulheres, que será prisma que pouco me ilumina. Interessa-me a pertinência (e competência) da realizadora no seu vasculhar do que pode - àqueles que se refugiam na forma de incompreensão que é o espanto - aparentar ser o absurdo na história. Mas o qual é, de facto, o horrível histórico que tanto vigorou naquele período do final do colonialismo português e das alvoradas das novas nações. Como nos anteriores e posteriores períodos, noto, pois segue esse horror bem omnipresente.
A sinopse deste documentário está disseminada, o que torna desnecessário que a repita. Apenas friso o que me ocorreu durante o longo filme (quase três horas). Por um lado, o não terem sido abordadas as diferentes facetas daquele horror, no qual morreram Sita Valles, seu marido, seu irmão e cerca de 30 mil indivíduos. Não será isso um defeito, mas uma característica que foi objectivo da realizadora, o centramento no ambiente formativo daquela militante. Valles, de uma família oriunda de Goa e da pequena-burguesia luandense - e a sua inserção social, denotando menores barreiras raciais do que as existentes no Moçambique coevo, é apenas aflorada - é recordada através de documentos pessoais, depoimentos de familiares, amigos próximos de Luanda e de seus correligionários durante o período de residência em Portugal. Não há uma única voz contrastante ou, pelo menos, afastada. Alguém a quem ela, ou suas causas e objectivos, fosse antipática. Seja de quem foi então militante do MPLA ou do PCP, seja de adversários políticos lato sensu. E assim segue ela, a sua memória, algo acarinhada, nisso até enublada. E dos seus companheiros finais - do propalado movimento de Nito Alves - nada fica, nem do seu afirmado líder.
O que fui vendo foi a formação de uma jovem progressivamente radicalizada - desde o anticolonialismo e aversão ao racismo inicial até à sua formação comunista em Portugal e, depois, o seu extremar aquando do regresso a Angola (patente num até trágico trecho de uma sua carta à família na qual ecoa a retórica oficial, em tom crítico, aquilo de que "o MPLA não é comunista"). Tratava-se de uma peculiar visão do real, que não é bem delineada nos depoimentos - talvez por nunca ter sido sistematizada pela militante - e sobre a qual algo podemos intuir através da leitura do opúsculo "África - Colonialismo e Socialismo", de algum esquematismo interpretativo, publicado nesse ano de 1977 pelo seu irmão Edgar Valles, o qual neste filme surge como fonte primordial e explicitando-se como mais moderado, e até descrente, do que a irmã.
Honestamente, ao longo do documentário - acima de tudo pela secura dos trechos das suas cartas aos seus pais, bem como pelo que se pode depreender da sua efervescência pessoal através de alguns dos testemunhos dos que lhe foram próximos -, foi-se-me criando uma imagem da militante revolucionária que até algo me envergonha de aqui deixar transparecer, face ao cruel destino que sofreu. Não é apenas a do seu radicalismo até inconsciente, coisa até passível de ser atribuída à juventude, e que não só a conduziu até à morte bem como talvez influenciado a do seu irmão. Pois o que mais me foi patente foi um irredentismo, talvez abrasivo, um fervor crente de intolerância constituído.
Ou seja, e sei o quão cruel e descabido é até este meu sentimento de espectador, se o filme ilustra um acto de horrível despotismo, massacrando pelo menos 30000 dos apoiantes do próprio regime, uma das habituais purgas das pretensas "grandes revoluções" históricas, aquilo que se me foi crescendo ao longo do documentário foi uma sensação de que se tratava de uma mulher horrível. Insuportável, pelo menos. Sim, é um sentimento que pouco me abona, face ao cruel destino de Sita Valles, assassinada grávida nos seus 20 anos. E à magnitude da malevolência daquele regime assassino. E à imoralidade daqueles - alguns dos quais tão laureados vieram a ser - que daquele processo foram cúmplices. Até exultantes, a crer em alguns relatos. Mas foi, e digo-o com pesar, o que me ocorreu ao ver "Sita".
E decerto que por isso, pelo acabrunhamento sentido face a esta minha reacção, que logo após o filme fui até à estante. E comecei a reler o "Les Dieux Ont Soif", talvez procurando justificar-me na memória desse malvado fanático revolucionário Évariste Gamelin que Anatole France nos legou. Para que não caiamos em simpatias. Pelo putativo brilho, carisma, fervor, empenho e competência organizativa deste tipo de militantes...
Adenda: deixo uma entrevista de Margarida Cardoso ao Buala, relativa ao seu trabalho durante a produção deste filme e do "Yvonne Kane".
Brian Wilson torna-se hoje um octogenário (um texto de 2011 no The Guardian). Será daqueles marcos surpreendentes. Deixo um (longo) documentário, para recordar um dos mais esquivos...
Brian Wilson: The Genius Behind The Beach Boys: Amplified