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Nenhures

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Aconteceu-me que em pleno dia de Natal, indo a caminho da casa da minha irmã para as tradicionais celebrações, estreei-me em acidentes rodoviários após 39 anos de condução. Estraguei o meu dia, incomodei a minha filha, que lá me esperava, a qual padece deste pai. E sofri uma fractura exposta no osso orgulho. Para além um derrame na conta bancária, que seria letal não fora o caso desta estar já ligada à máquina, em condição dita irreversível.

Atendendo à data festiva, e concomitantes folgas, tive de esperar umas horas pelo reboque. Era já início de noite quando chegou, levando-me da via rápida verdadeiramente fronteira ao Trancão até à planície nas cercanias do Sado. Simpaticíssimo o motorista, e basto falador - tentando (e conseguindo, justiça lhe seja feita) animar-me, macambúzio que me encontrou, culminando ambos (e logo na Vasco da Gama) num quase nada estóico "foi só (pouca) chapa e plástico" "que se lixe!", isto que sobre angústias monetárias não me deixei espraiar...

E nisso o homem foi-se alongando, confirmando-me que são estes dias, os das Festas, de muita azáfama. Pois poucos colegas de serviço e muita gente a ter problemas, "no Natal saem da casa das famílias com um copito a mais...", no "Ano Novo vêm das festas...". Às vezes cenas dramáticas - e algumas contou mas tenho pejo de as convocar - mas a maioria das vezes pequenas coisas, toques, choquezitos, a perturbarem ou mesmo a magoarem mesmo que felizmente não irremediáveis. Aquele copito de vinho a mais no Natal, só mais, só mais um brinde de Ano Novo - "Feliz" terá ele de ser -, até com o raisparta do espumante, ou mesmo a saideira seguida da abaladiça, e nisso já se está num registo mais desengonçável...

Enfim, lá me largou ele diante da oficina onde parqueei o carro (emprestado, ainda por cima). E agora, antes do reveillon de tantos, ou da "passagem" de outros, nem sequer tenho de me lembrar daqueles inícios dos 80s, antes da instauração do "balão" e das campanhas - nem o cinto de segurança era prescritivo -, das loucuras acontecidas, dos amigos perdidos... Lembro-me só da conversa desta semana com o loquaz motorista de reboque, a desmontar-me a ideia de que após tantas décadas passadas, tantas campanhas feitas, as coisas ao volante tinham mesmo mudado.

Eu sei que a esta canção é foleira, e o vídeo também. Mas muito mais foleiro é guiar acima dos limites da segurança. Portanto, hoje em especial, "não guies com os copos". Mesmo que seja só aquele "bocadinho" de nada... Esse que se calhar até é o pior, dá aquela sensação de "falsa segurança" que a dra. Graça Freitas e a ministra Temido tanto combatiam - quando nos queriam convencer a não usar máscaras e a não nos testarmos.

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(Encontro de escritores nas "Pontes Lusófonas", Maputo 1999- reportagem)

Na semana passada foi o centenário de Saramago e evoco quando o conheci em Maputo. No ano anterior ele recebera o Nobel. A atribuição coincidiu com a visita oficial de Guterres a Moçambique - à cidade haviam chegado 170 pessoas integrantes da comitiva! Um quarto de século depois lembro-me de como soube do prémio: na inauguração de uma exposição na Fortaleza de Maputo, inserida no programa dessa visita. Ali cheguei ao fim da tarde, a hora apropriada, e logo fui abordado por um pequeno grupo de quadros de instâncias culturais moçambicanas, os quais me deram efusivavamente os "parabéns". Julguei, até surpreendido, que me saudavam devido a algum sucesso que estivesse a acontecer no decurso da viagem dos nossos governantes. Mas não era isso, congratulavam-me pelo Nobel! - uma "glória nacional" que eu ainda desconhecia, após um dia embrenhado em múltiplos afazeres, naqueles tempos já tão recuados que ainda sem internet avulsa nem telemóveis.

Confesso que fiquei um bocado atrapalhado. Pois diante do até lendário Prémio o meu trabalho de então (numa cultura nacional literata como é a nossa, que presume mais necessário que se leia Cardoso Pires do que Hermínio Martins, para falar de contemporâneos) pressupunha que eu fosse um saramagófilo... Mas não o era. Filho do senhor meu Pai - que me legou todos os livros do escritor (ainda que nos seus últimos anos de vida me recomendasse "o Aquilino") - havia lido com muito agrado o "Levantado do Chão", com encanto o "Memorial..." e, depois, com o sempre recordado fastio dos meus 21 anos o "...Ricardo Reis". E a partir daí tinha largado todos os livros do autor que havia encetado, por pura impaciência. Decidi, ali mesmo e enquanto me fingia - copo na mão - um "connaisseur" da obra nobelizada, resolver o assunto. No final desse Outubro tive - apaixonado - a sorte de me casar. O furacão Mitch desviou-nos da almejada e já reservada Guatemala e fomos celebrar o acordo que nos viria a dar a Carolina para o Norte do Brasil - e aí, nesse amoroso contexto, preparei o meu regresso a Maputo lendo o "Todos os Nomes". Que, pura e simplesmente, abominei (uma palavrosa mescla de Borges e Kafka, resmunguei, porventura lá pelo Marajó...).

No ano seguinte Saramago aportou a Maputo, incluso numa enorme embaixada cultural portuguesa, as "Pontes Lusófonas", uma sobranceria institucional germinada naqueles tempos das "vacas gordas" que alimentavam os "desígnios" da lusofonia e que também queriam abrilhantar a então nóvel - e indiscutida - CPLP. O escritor logo percebeu a pesporrência de tudo aquilo, do tão "nós aqui para vos iluminar", e decidiu "partir a loiça", nisso distinguindo-se das dezenas de comparsas viajantes, apenas embrenhados nas suas agendas pessoais e encantos alienados. Assim, e com o recente Nobel às costas, decidiu recentrar as coisas, articular(-se) com as "gentes da cultura" de Maputo, saindo do programa oficial que lhe fora agendado.

Foi então arranjada uma sessão na sede da Associação dos Escritores Moçambicanos (a AEMO), no qual ele proferiria uma charla. Entretando eu havia-lhe sido apresentado, gentileza do seu editor Zeferino Coelho, ali também deslocado, e do Augusto Carvalho, o jornalista e professor há já muito em Maputo e do qual eu viria, poucos anos depois, a ser colega. E nisso havia acontecido uma bela conversa, informal e na qual lhe pude perceber uma característica evidente: a extrema acutilância, algo que o desencerrava de si mesmo, coisa que é muito mais rara em artistas e escritores do que se possa pensar, pois tendencialmente egocentrados, no que penso ser mesmo uma deformação profissional.

Enfim, não pude deixar de ir à sessão na AEMO. Para ouvir o Nobel enchera-se a casa, pejada de escritores, jornalistas, académicos e jovens literatos. Saramago entrou, afável, o já velho laureado explicitando estar ali apenas entre colegas, homem contido mas sem nada de altaneiro. E, totalmente de improviso - como me confirmou um dos seus próximos, num decerto que exagerado mas também verídico "é sempre assim!" -, falou durante mais de uma hora sobre aquilo de escrever e isto de ler. Dando depois azo a uma animada conversa - lembro que a Paulina se levantou e disse, com desapegado atrevimento, "eu também gostaria de um dia ganhar o Nobel" e talvez só ela (ou nem ela) pensasse então que "se calhar...", como poderemos dizer hoje. Em suma, Saramago falou e literalmente encantou(-me). E isto para além do sensibilizado que já estava eu, tendo-o antes ouvido criticar o modo de voo do nosso funcionalismo público e nisso percebendo-lhe a sensibilidade política que a tantos outros faltava. Um ano ou dois depois voltou a Maputo, para a apresentação do seu "A Caverna" e lá fui, até mesmo ao autógrafo, e a uma breve troca de palavras, claro que antecedida do "não sei se se lembra de mim, sou fulano de tal...", para receber em troca um piedoso "sim, claro, como tem passado por cá, e etc.". Mas esta simpatia e admiração não me tornou leitor, tendo continuado a não aderir aos seus livros. 

Há quatro anos a minha filha teve de ler o "Memorial" pois constava do seu currículo escolar. Bastante lida para a idade fomos conversando sobre o livro, e daquela forma barroca latina bem diversa dos Fitzgerald, Huxley ou Orwell que o currículo inglês lhe promovia (e do Greene e do Waugh que o pai lhe impingia). Eu lá lhe aludi à minha ambivalência face ao autor, talvez me tenha socorrido daquele "um dia tens de ler o Ballester" - sei lá porquê mas tenho a mania de associar os autores - ou outra coisa qualquer. Mas, e acima de tudo porque pouco tive para avançar sobre o livro, passado pouco tempo fui relê-lo, 35 anos depois!, tantos que até custa assumi-los.

Lá avancei na lide leitora, entre o recordar alguns traços e descobrir outros, acima de tudo saindo da trama - que decerto terá sido o meu interesse de leitor de 20 anos - para lhe procurar escavar o fundo ["a(s) mensagem(ns)", se se quiser] e a forma. E às tantas cheguei àquela parte em que o escritor inventa aquilo do povo trabalhador congregado ali em Mafra ter de avançar até ao que nós hoje alvitraremos ser Pero Pinheiro, na senda de uma enorme laje de pedra necessária para o convento. E se põe a imaginar esforços e cuidados, passos e paragens havidos em tal tarefa. E um tipo lê aquelas páginas e só pode dizer "que grande escritor. Gigante." 

Depois, claro, há uns tristes espíritos que resmungam umas ladainhas a seu propósito. Para quê ouvi-las, se nada encantatórias?

manuel-maria-barbosa-du-bocage-estátua-do-poeta-e

Aqui deixo informação que me chega da vizinha e ciosa capital sadina: hoje é o dia de Bocage, pois o do seu nascimento (1765), e nisso feriado setubalense. 

Leigo que sou nessas coisas literárias ainda assim me parece que o poeta segue destratado. Nem tanto esquecido, pois é ícone dos brejeiros literatos. Será mais poeta reduzido, espartilhado pelo tom pícaro das memórias que se lhe dedicam. Enfim, não serei eu a fazer-lhe justiça, deixo apenas dois dos seus poemas de que muito gosto:

 

O Ciúme

Entre as tartáreas forjas, sempre acesas,

Jaz aos pés do tremendo, estígio nume,

O carrancudo, o rábido Ciúme,

Ensanguentadas as corruptas presas.

 

Traçando o plano de cruéis empresas,

Fervendo em ondas de sulfúreo lume,

Vibra das fauces o letal cardume

De hórridos males, de hórridas tristezas.

 

Pelas terríveis Fúrias instigado,

Lá sai do Inferno, e para mim se avança

O negro monstro, de áspides toucado.

 

Olhos em brasa de revés me lança;

Oh dor! Oh raiva! Oh morte!... Ei-lo a meu lado

Ferrando as garras na vipérea trança.


******


Vós, crédulos mortais, alucinados
de sonhos, de quimeras, de aparências
colheis por uso erradas consequências
dos acontecimentos desastrados.

Se à perdição correis precipitados
por cegas, por fogosas, impaciências,
indo a cair, gritais que são violências
de inexoráveis céus, de negros fados.

Se um celeste poder tirano e duro
às vezes extorquisse as liberdades,
que prestava, ó Razão, teu lume puro?

Não forçam corações as divindades,
fado amigo não há nem fado escuro:
fados são as paixões, são as vontades.

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Cumprem-se hoje 200 anos da independência do Brasil. É tonitruante o relativo silêncio, qual murmúrio, em Portugal sobre o assunto - publicações, filmes, documentários, congressos? Nem mesmo o recordar, trazendo para os escaparates, do que foi sendo bem feito sobre essa época. Razões para tal haverá, desde a pequenez (ultramontana) que ao processo ainda sente como "perda" - e que na senda deste Ventura de agora ainda chamará "terroristas" aos Tiradentes - e o patético (identitarista) que se quer "desculpar" da História, a ver se nisso pingam uns subsídios extra para as ONGs e centros de investigação que controlam.

Enfim, deixo aqui memória desta interessante "Oceanos", n. 44 (2000), com  alguns artigos interessantes sobre portugueses no Brasil independente, que foi coordenado pelo antropólogo Robert Rowland - estou a folhear/reler hoje, como celebração...

E deixo um desejo sincero aos meus (poucos) amigos e amigos-FB brasileiros. O de que daqui a 200 anos o Brasil tenha evoluído o suficiente para que os seus problemas já não sejam culpa do colonialismo português. Será difícil, pois até agora não conseguiram libertar-se disso. Mas talvez venha a ser possível...

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(1984-08-12 Olympic Marathon (men's) raw satellite feed - part 3 of 4 Carlos Lopes - Portugal)

Faz hoje 38 anos que o grande Carlos Lopes - nos seus 37 anos ! - ganhou a maratona olímpica, o primeiro ouro português nos Jogos. Julgo que nem se consegue transmitir aos mais novos a euforia que então se sentiu. Revendo a corrida ainda me arrepio - neste filme aos 26', quando ao passar a placa dos 37 kms, ele se refresca e arranca, apartando-se dos concorrentes num passo de enorme pujança que manteria até ao final, ou aos 39'50'' quando entra, já bem destacado, na pista do estádio, recebido em ovação. "Vai Lopes, vai Lopes, vai campeão!!", gritei, gritámos. Que grande comoção foi, que grande festa se seguiu!!!

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