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Nenhures

Nenhures

06
Jan22

Católico não crente?

jpt

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Sou ateu desde o berço - literalmente falando, pois o meu pai proibiu que me baptizassem. Disso não faço proselitismo (nem junto da minha filha o fiz, quanto mais com outros). Nem uma dessas estapafúrdias "identidades" com que os neo-commies querem animar as barricadas. Disso faço, e é muito, razão.

Dito isto, raras vezes me comovi tanto como quando, aos 24 anos, visitei o Tintoretto na Scuola Grande di San Rocco. Até às lágrimas, confesso envergonhado (homem que é homem não chora, muito menos diante de umas pinturas velhas). Certo, o ambiente soturno e, acima de tudo, a fome endémica de quem está em inter-rail terão ajudado a tal desvergonha. Ou seja, se dúvidas tivesse desvanecia-as ali: sou um cristão. Cultural.

Por isso percebo perfeitamente o que o desajeitado dr. Rui Rio quis dizer ontem, naquela disparatada declaração "sou católico, não praticante, não crente", ao querer remeter a sua posição para um conjunto de princípios "civilizacionais". Mas é um erro crasso, uma ignorância tétrica (ainda para mais num homem daquela idade). Para além de ser uma patética, de desesperada, piscadela de olho ao Portugal mariano. Pois os incréus (como eu, como ele) não são católicos. E há até quem defenda que os não praticantes não são católicos - mas essa será uma posição algo radical, que a igreja trata de modo algo abrangente.

Enfim, lembremo-nos de algumas gaffes de políticos: a (injusta) de Guterres com as contas da inflacção (ou do défice); a de Santana com os violinos de Chopin; a de Cavaco com Mann por Morus; a de Costa com vírus e bactérias. Etc. Podemos brincar com elas (com a de Guterres é imoral, dado o terrível momento que vivia). Mas não eram denotativas de algo particular, mas apenas uma distracção ou uma ignorância sectorial. Mas esta de Rio é bem diferente, denota uma irreflexão estrutural, sobre si mesmo e sobre a sua sociedade. E o seu Estado, ancorado numa laicidade.

Leio algumas pessoas (que não conheço) a defenderem as actuações de Rio nos debates, dizendo-o alvo de desinterpretações, de malévolas manipulações. Anunciando-o, até, como político superior a estes diálogos curtos. Estão enganados, e estas declarações mostram-no bem. É um trapalhão, cheio de si - condição que apela à irreflexão. O que nada augura de bom vendo-o como responsável político. Diz este ateu, cristão cultural, daquele ateu que se quer católico. (E não, isto não é uma mera questão de palavras).

27
Jan21

A chuvada eleitoral

jpt

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A chuvada eleitoral de domingo, com o sucesso do Prof. Ventura, demonstrou a pertinência da velha máxima "o que é preciso é que se fale, mesmo que seja ... bem". Recordo o que já resmunguei: catapultado como "voz televisiva do Benfica" e, depois, "enfant terrible" de Loures, Ventura chegou aos 60 mil votos e foi resvés eleito deputado em 19. Breves minutos depois da sua eleição a então também nóvel deputação do Livre celebrou o seu sucesso eleitoral alcandorando-o a adversário fundamental, dando-lhe eco, sublinhando-o reforçando-o, como mera forma de se reclamar paladina do "antifascismo". Forma de encapuçar a estreiteza da agenda política própria e, acima de tudo, de ocupar espaço à "esquerda", onde o palanque legitimador do "antifascismo" vem sendo - e com legitimidade histórica, diga-se - ocupado pelo PCP e pelo PS. E de nisso também se apartar do BE, ao qual acabara de subtrair basto eleitorado e, também por esse novo estatuto "antifascista" reclamado, imensa atenção mediática. Pois a imprensa lisboeta, muito "gauchiste", assumiu com frenesim este novo conflito entre unideputações, novidade bem mais apetecível do que os já monótonos acintes entre os "big five".

Depois foi o que foi: Ventura soube afrontar os ideais dominantes da imprensa sem com isso a afastar; enquanto a disparatada Moreira a afastou de vez, não só pelo seu patético conflito com o "pós-stasiano" Tavares mas, acima de tudo, pelo dislate de chamar a polícia para se proteger das perguntas da imprensa, arrogância - dela e do seu assessor dos saiotes - nunca vista na democracia portuguesa. Resultado: a imprensa democrática não lhe liga, condenando-a um silêncio revelador da sua essência, mero apêndice de um PS tacticista. Enquanto persegue, enlevada, um Ventura que seguiu rampante, capitalizando as antipatias recebidas.

O disparatismo dos "bem-pensantes" urbanos mostra-se ainda mais no rescaldo das eleições presidenciais. Leio inúmeras declarações de nojo pelos compatriotas que se (a)venturaram - na senda das declarações do grande maître à penser Malato. Vão tal e qual, estes ululantes perdigoteiros, o prof. Ventura quando fala de ciganos. Como a parvoíce - que terá evidente substrato publicitário - da organização do festival Amplifest 2021 que anuncia  não querer como espectadores quaisquer votantes do Chega. Ou, pior ainda, a recepção jubilosa de alguns textos mais desequilibrados que surgem nas redes sociais, invectivando os recém-eleitores do Chega.

Para além da indecência e da parvoíce de muitas destas reacções, o seu fundo, consciente ou inconsciente, é traçar uma "cerca sanitária" vs. Chega, para a qual será necessário traçar uma população a encerrar, o "Eleitor Chega", e demonizá-la. De facto, "queimá-la" (simbolicamente, espera-se) e ostracizá-la (moralmente). Daí o afã em traçar-lhe, o mais lesto possível, um perfil unívoco: os tipos da "direita", aliás PSD/CDS; os alentejanos do PCP, como muitos referem - ainda que, de facto, o PCP não domine o Alentejo há já bastante tempo, mas tendo ali um peso eleitoral maior do que alhures.

O que me parece óbvio é que Ventura colhe votos em vários sectores - talvez não tanto no eleitorado PS, mais sociologicamente repousado. Antes do Natal jantei com amigo emigrado, cinquentinha viajado e culto, classe média, e que se situa naquilo a que os democratas chamam "centro-direita" e a esquerda revolucionária amiúde apelida(va) de "fascista". Ou seja, é um fluído apoiante do CDS. Dizia-nos ele, algo estupefacto naquela visita anual à "Pátria Amada", que "na minha família só eu e o meu pai é que não apoiamos o Chega", e avançava, até desencantado, que lhe era agora óbvio que todos esses seus parentes "não têm vínculo com a democracia", "são saudosistas do Salazar" ainda que sempre tivessem sido eleitores de CDS e PSD, até consoante os momentos.

Este é um detalhe, individual, que pode ilustrar os bons resultados de Ventura em alguns locais urbanos, como as zonas mais favorecidas da "Linha" - que é a que aludo aqui. Ao mesmo tempo, e porque estou em Palmela, mostro os resultados de um universo que não é alentejano rural e que mostra como num eleitorado que vota basto à esquerda, Ventura surge com bons resultados. Significará o que deveria ser evidente: que as pessoas votam consoante o tipo de eleições e consoante as mensagens que querem enviar ao poder - flutuando muito mais do que os ideologizados jornalistas, empenhados intelectuais públicos ou mesmo os meros drs. locutores nas redes sociais (como este jpt).

Ou seja, houve meio milhão de pessoas que decidiram ir votar num tipo que apareceu há pouco mais de um ano e que foi insuflado pela imprensa lisboeta e pelos movimentos demagógicos de extrema-esquerda. É uma amálgama de nossos vizinhos, que o fizeram por uma série diversa de razões. E decerto que o terão feito também devido à grande máxima da política: "o que parece é!". E tudo isto parece que está mal. Pode até nem estar tão mal como parece. Mas parece estar bastante mal. E feder. E o melhor seria reflectir sobre o "estado da arte" e sobre as formas de "exposição" dessa "arte". E não, nunca, isto de andar a demonizar os nossos vizinhos, co-fregueses. 

25
Jan21

As verdadeiras causas do sucesso eleitoral do prof. André Ventura

jpt

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Meio milhão de votos! No "inominável"?, no " coiso", como lhe chamam os "verdadeiros democratas" fervilhantes nas redes sociais? Serão assim meio milhão d'"inomináveis", de "coisos"?
 
Ontem na SIC 2 próceres "comentavam", "fazendo a cabeça" da turba burguesa telespectadora: o advogado Júdice (a que propósito tem ele aquele tão grande palanque?) e o Prof. Louçã (que mente sobre propostas da IL e não se retracta; que diz gostar a Alemanha disto do Covid porque ganha com a crise; com estes ditos, a que propósito é que esta aldrabismo básico tem tamanho palanque ...?). Nisso conclui então Louçã, mui assertivo, que os votos em Ventura lhe chegavam directamente do PSD e CDS, a direita... (agora já "democrática", candidata Gomes dixit, mesmo que " liberal" ainda lhe venha igual a Pinochet).
 
Então lembro-me de Palmela: não é um ermo alentejano calcorreado por hordas nómadas da "etnia cigana" (agora diz-se assim). Mas Vale do Tejo, urbano. De onde, das cercanias do seu "castelo altaneiro", se vê Lisboa. Câmara do PCP (+9000 em 2017), secundado por PS (+6000), onde PSD/CDS unidos valeram ... +2000. Comparai com os votos de ontem. Quereis o Alentejo das tais míticas hordas, o "profundo"? Deixo como exemplo o belo Alandroal.
 

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Grandes transferências de eleitores nunca são iguais. Mas há tendências (e a França é um bom modelo, ajuda a pensar), basta ler. Ou então não se leia, ouça-se a ladainha reconfortante a la Louçã.
 
Eu tenho uma explicação para os resultados eleitorais de ontem, em particular para a ascensão do prof. Ventura: foi um "downburst". Bastará chamar um director da PJ para identificar a Árvore assassina. E tudo ficará bem. Sem "coiso" "inominável".

25
Jan21

As causas do sucesso eleitoral de André Ventura

jpt

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Muito aprendo hoje, na leitura matinal dos sub-textos na imprensa e dos textos nas rede Facebook. Apreendo assim que "Pensar Bem" sobre política, ser "educado" ("ilustrado"), culto, democrata, reflexivo significa isto: se os compatriotas votam no brejnevista Cunhal, no berlingueriano Carvalhas, no honeckerista Sousa, se se agregam sindicalmente sob um deslumbrado ceausesquiano Judas ou um quase-titista Silva, são massas desalienadas em luta pelos seus direitos. Se tantos desses mesmos compatriotas de repente votam num Rolão Preto modo boçal? Passam a ser uns broncos. Básicos. Até deslavados.
 
Quando for grande quero ser assim Culto. Democrata. E "Ilustrado". E desse modo Feliz comigo-mesmo, claro.

23
Jan21

Declaração de voto

jpt

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Mesas de voto

Tendo madrugado fui votar logo na alvorada eleitoral. Apesar das décadas passadas tão longe faço-o ainda no local de sempre, a escola nas traseiras da casa onde cresci e na qual sigo hoje envelhecendo, em tempos chamada “Damião de Góis” e agora abarcada por uma qualquer sigla C+S, amputação onomástica que presumo devida à tomada de consciência estatal da malévola colonialidade eurocêntrica daquele intelectual, nunca denunciante do escravismo e do racismo seus coevos.

Fui assim um dos primeiros eleitores presentes, percorrendo os pequenos corredores frios e vazios daquele edifício acabrunhado, que já este século veio substituir os imundos pavilhões pré-construídos que ali decorreram décadas sob estatuto de “provisórios”. Enfim, direito cívico e momento de nostalgia correram-me lestos e aprestei-me a regressar a casa. Mas ia eu nesse propósito e ali mesmo fui captado por uma vizinha. Do meu prédio, das mais novas da geração dos meus pais, os povoadores dos Olivais, aportados no final da década de 1960s. Esta ainda septuagenária, e activa, agora figurando na organização do dia eleitoral. Enérgica e atenta, pois cooptando-me, convocando-me a integrar as mesas de voto, às quais muitos dos membros agendados haviam faltado.

Tentei escapar mas era-me difícil, embatucado com o que senti como um tal de dever de cidadania - e logo comigo que passo a vida a resmungar sobre política. E tendo já trabalhado em várias eleições no estrangeiro, como assim negar-me a fazê-lo na minha “Pátria Amada”, e mesmo à porta de casa? Ainda assim, com alguma falta de pudor, ainda tartamudeei, em desespero de causa, “ainda nem comi, nem bebi café, estou meio azamboado”, nisso procurando razão suficiente para me escapulir. Hábil estratega, a vizinha não vacilou, “vai lá tomar o pequeno-almoço e volta rápido”. E assim fiz, cerviz dobrada, acorri ao meu “Arcadas”, a pastelaria de sempre, à bica dupla, a resmungar ao Sô João “veja lá o que me aconteceu, vou passar o dia ali encerrado” e ele sorridente, “vá e depois venha com boas notícias”. E eu, desalentando-nos, “não virei, decerto que os gajos vão ganhar isto”. E “para mal dos nossos pecados”, acrescentei, ateu. No que anuiu ele… Risonho, telefonei ainda à minha mana a narrar-lhe a armadilha em que caíra, e ela sossegou-me em definitivo: “o pai ficaria muito contente, até muito tarde sempre foi para as mesas…”, e é verdade – como delegado do Partido, claro, que nesses tempos ainda tal havia. E se o pai ia como posso eu negar-me?

Assim lá segui até à escola. À entrada identifiquei-me a uma jovem da Junta da Freguesia, cujos óculos e atitude davam ares de encarregada - deixando o meu rol de contactos, como se garantindo-me honesto - e dirigiram-me a uma mesa de voto. Ali me apresentaram como membro avulso, voluntário, e me empossaram como segundo secretário, condição na qual passei o dia a conferir cadernos de votantes ordenados alfabeticamente e, mais tarde, a contar o que haviam eles feito. Para isso integrei uma equipa de simpáticos olivalenses, eficientes e entusiastas daquilo, todos veteranos da poda eleitoral: três deles haviam feito todas as eleições desde os anos 1980, e a mais nova – filha da presidente da mesa, por coincidência - fazia-as desde há uma década. Surpreendi-me, questionei como era isso possível, qual o sistema que os integra desse modo? Que basta as pessoas inscreverem-se para este efeito na Junta de Freguesia, afiançaram-me.

Acabou por ser um dia interessante, muito também pela eficiência, tarimbada, daqueles parceiros, tanto na votação como na contagem. Cabiam naquela mesa 1000 eleitores, entre Luíses e Marias P’s, consistindo, dada a área coberta, e ainda que naquele bairro tão compósito, num nicho da pequena-burguesia – o em torno do Centro Comercial dos Olivais, para quem conheça a zona. População muito envelhecida, eleitores até nonagenários, imensos octogenários, feixes de septuagenários, escassíssimos jovens, raríssimos mesmo (e quase todos “Marco”s, já agora…), e a aparecerem em grande número, muitos até compenetrados no acto. Fui vendo o desfilar do eleitorado geronte, com carinho mas também remoendo “como pensar numa reviravolta disto tudo com estes votantes?”. Voto muito conservador, presumi primeiro e depois contei-o… Comprovando-me pois ali brilhou, resplandecente, o dr. Costa e seguiu-se, menos trôpego do que alhures, o dr. Rio.

Mas também me diverti, na quantidade de caras conhecidas que ali aportavam: amigos de agora (“estás aqui Zezé?”, “até logo” para a imperial de rescaldo), amigos de antes, da saudosa juventude de bairro, colegas do secundário – e algumas delas ainda em muito bom estado, clamava o sátiro utópico em mim aboletado -, vizinhos de rua e bairro, pais e mães (muito mais mães, claro, que os homens já as enviuvaram) de amigos, e nisso uma catadupa de lembranças para a minha mãe Marília, então já abstencionista. Surpreendidos seguiam os meus parceiros de mesa, com a rapidez com que eu identificava tantos nomes nos cadernos, pois quantas vezes me bastava ver assomar o eleitor e sabia-lhe o nome… “dá muito jeito ter alguém da área”, sorriam simpáticos. Senti-me assim, como nunca, um verdadeiro freguês, um vizinho ancorado. Agradável, para um ainda – e talvez para sempre – torna-viagem.

Nisto foi chegando a hora do almoço e começámos uma escala, a vez de cada um se ausentar para ir comiscar qualquer coisa. Disse então eu, para a jovem colega ali a meu lado, “seria simpático que a Junta nos trouxesse um lanche … e evitavam-se estas saídas”. E ela, perspicaz, percebeu-me desatento ignorante: “mas olhe que nos pagam!”. Surpreendeu-me, não fazia ideia de que era aquilo trabalho remunerado, suponha-o extremoso voluntariado cívico, coisa, decerto, de ter vivido tantos anos fora. “Pagam-nos?! E quanto?”, “cinquenta e tal euros”, não estava ela certa da quantia, pois fora anunciado um pequeno aumento. E juntou-lhe, mas já em registo “aqui entre nós”: “mas só pagaram as eleições passadas – as europeias, que haviam sido sete meses antes – anteontem. Por isso é que muita gente não veio hoje para as mesas”. Sorri diante daquilo, claro, o costume, apenas mais uma mostra do atrapalhado desrespeito do Estado para com todos nós… E percebi bem melhor este afã dos veteranos eleitorais, decerto que o prazer da participação – notório, afianço -, porventura também espelhando-se como importância própria, por parca que seja, entre vizinhança e parentela. Mas tudo isso bem sublinhado pela jorna, meia centena de euros que será coisa pouca para muitos doutores, mas nada de deitar fora, nada mesmo, para nós-remediados, e isso se nos conseguimos assim manter.

Enfim, tudo correu bem naquele dia. Neste último Dezembro, 14 meses depois, numa manhã cedo fui ao Centro de Saúde dos Olivais, para saber de umas coisas nas entranhas, a ver se me ajudam com tais ardores e pressas. Regressei a casa em passo de peão e nesse calcorrear lembrei-me dos tais 50 euros, os quais nunca recebera e que muito me ajudariam agora a pagar a conta da electricidade – a qual, para o Governo, por não ser um bem essencial não deve ser paga a preço de custo. E assim fiz um pequeno desvio pelas ruas da Encarnação indo até à Junta de Freguesia. Atenderam-me à porta, pandemia oblige. Expliquei à simpática funcionária que ali estava em demanda da minha jorna eleitoral. Surpreendeu-se, pois “já pagámos isso há bastante tempo”. Ainda insisti, em modo de quem quer aparentar de que não precisa do dinheiro para a boca, e narrei as vias acontecidas. “Ah, como o senhor se voluntariou então não recebe, deve ser isso…”. E pronto, agradeci, na pose blasé que desencantei, feito Cidadão Teixeira, e lá segui à minha vida. Como quem nem queria a coisa …

*****

Há onze meses que seguimos ajoujados sob este Covid-19, e há muito que se espera e teme uma nova vaga infecciosa. A qual chegou. Estamos no topo mundial dos fustigados, no pico da pior crise que o país conhece desde há décadas. E o poder político convoca-nos a sair à rua e a visitar ambientes basto-respirados para votar. Durante todos estes meses ninguém no Estado, eleito ou funcionário, pensou em organizar o adiamento das eleições – se necessário ou recomendável. Inépcia, inacção, incompetência. Irrazão.

Em tempos disseram os nossos antepassados “navegar é preciso, viver não é preciso …”. Mas esses eram traficantes, pescadores, descobridores, piratas, soldadagem, todos feitos ou fazendo-se marinheiros de mar alto. Enquanto esta gente de agora é mera equipagem de cabotagem. E mostra-o agora como nunca o fizera…

E quando o nº 2 do Estado, Eduardo Ferro Rodrigues, veterano político, clama que “votar é forma de resistir ao vírus”, apenas ecoa um agora desajustado imaginário, a invocação de actos de corajosa cidadania democrática contra opressões. Para ele, patético, o voto de amanhã, no meio desta crise sanitária, entre contágio desregulado, hospitais apinhados e médicos exauridos, é qual o berro da La Pasionaria, as barricadas da Comuna de Paris, a cadeia do Forte de Peniche, o comício da Fonte Luminosa ou outro qualquer ícone das reclamações democráticas. Não percebe, por seus graves limites intelectuais, a diferença entre votar em condições adversas, durante conflitos ou rescaldos de catástrofes naturais episódicas - como cheias ou terramotos –, mostrando vontade moral, de cidadania, de afirmar a democracia contra adversários e adversidades. E votar agora quando “resistir ao vírus”, estancar a corrente de contágio – de facto, a cidadania democrática - é reduzir ao mínimo o risco de infecções.

Utilizar agora este argumento, este imaginário, é perverso. E boçal. Mas é pior ainda, denotativo da mundivisão de clique política, desencastrada da sociedade, dos seus compatriotas, de Ferro Rodrigues e seus correligionários e colegas políticos, desde a “esquerda revolucionária” até à “direita social”, dos “nacionalistas” aos “cosmopolitas/internacionalistas”.

Pois para suprir a sua incompetente inacção, a sua pobre e trôpega cabotagem, para levar a cabo estas adiáveis eleições, estes possidentes induzem e apelam a milhares destes pequenos fregueses, enrascados remediados, ali também em busca da parca jorna eleitoral – não só mas também, pois escassos serão os doutores bem-postos nas mesas de voto – a acorrerem para acolher centenas de votos depositados nas invernosas salas fechadas. Com hipotéticos sacrifícios sanitários. E, acima de tudo, com angústias morais.

São estes políticos de “esquerda”, do “centro” e da “direita”. E enchem a boca com as suas preocupações com o “povo”.

Amanhã, domingo, não sairei deste Nenhures, não irei de camioneta à capital, à tal C+S que foi “Damião de Góis”, não votarei. Por mim e para sossego daqueles que comigo coabitam. Pois, mesmo que reduzido seja o risco, não é razoável corrê-lo. Deixo sim o meu voto de saúde para todos aqueles que acorrerem para trabalhar nas mesas eleitorais. E o meu desejo que, desta vez, as suas jornas não sejam pagas apenas daqui a uns meses. E, já agora, que paguem também aos voluntários, que vierem a acorrer já em in extremis.

 

02
Dez20

A vacina de Gomes

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A dra. Gomes vacinou-se por motu próprio. E disso se gabou, em molde crítico. Mas não insurreccional, note-se. Acontece que nisso cometeu uma ilegalidade, o que em muitos outros países seria virótico, até letal, para uma candidatura presidencial. Talvez não para a sua pois, antes de zarpar para as imediações do Bugio, sossegou os apoiantes invocando o seu "desconhecimento da lei" - o qual, como bem se sabe, no direito português inocenta qualquer prevaricador.

Muitos dirão que é coisa pouca para que seja ela criticada. Pois as preocupações com a saúde, acrescidas nesta era de "epidemia" (PCP, 2020), sobressaem face a minudências legais. Não os contestarei. Pois diante deste episódio só questiono: quem quererá como Presidente da República uma mulher que escreve desta maneira?

(Já sigo com saudades da dra. Roseira, a tão popular Maria de Belém ...)

20
Nov20

A superioridade moral dos "pós-marxistas"

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A monumental cacetada televisiva que Sérgio Sousa Pinto decidiu dar em Rui Tavares, antigo deputado do Bloco de Esquerda e agora líder do "Livre" - aquele partido que o advogado Sá Fernandes, ex-candidato do MDP/CDE, reclamou como o primeiro partido de esquerda que "não vem do marxismo" (qu'isto não há limites ...) - tem dado para rir, em particular pela sonsice patenteada por Tavares (ver o curto filme abaixo). Sobre isso do agora Livre, do BE e do PCP terem sido dirigidos no Parlamento Europeu por um consabido antigo informador da STASI, a temível polícia política da RDA, bem esmiuça Rui Rocha.

 

(Intervenção de Sérgio Sousa Pinto no "Grande Debate", 17.11.2020, RTP)

Mas ainda que a tal sonsice tavaresca tão mostrada possa irritar convém não esquecer uma outra coisa. É que a candidata presidencial Matias também faz parte deste pacote. Pois também ela se perfilou num grupo parlamentar capitaneado por um consabido esbirro. É, decerto, um excelente cartão de visita eleitoral.

Enfim, sobre as sempre reclamadas superioridades morais está tudo dito ...

27
Out20

Os Dois Corpos do Presidente (transcrição)

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Abaixo transcrevi um texto de Clara Ferreira Alves sobre o "estado da arte" da política portuguesa. E logo uma amiga me chamou a atenção para um texto de António Guerreiro - o qual, do que conheço na imprensa portuguesa, é o é o colunista que mais aprecio, na sua coluna semanal no "Público". É uma excelente análise da deriva do presidente Sousa, partindo do episódio noticioso que foi a sua recente vacinação. 

(O texto está reservado a assinantes mas eu transcrevo-o aqui. Crente que numa terça-feira ninguém compra um diário da sexta-feira transacta)

Os dois corpos do Presidente
(António Guerreiro, 23 de Outubro de 2020)

Para a história da iconografia política, em Portugal, é mais importante do que parece, à primeira vista, a fotografia do Presidente da República (de Daniel Rocha, no PÚBLICO de 19 de Outubro), de tronco nu, sentado num cadeirão azul, a ser vacinado contra a gripe por um enfermeiro. O tronco nu do presidente publicamente exibido não é uma novidade, vimo-lo já muitas vezes filmado e fotografado na praia. Mas aí, como acontece com todos os corpos na praia, ele quase se anula na sua corporalidade, é como se a pele fosse o fato do banhista e tivesse um efeito de ocultação (razão pela qual o nudismo é uma prática completamente anti-erótica); mas sentado no cadeirão, a ser picado no braço por um enfermeiro que ali ocupa o lugar do soberano, o Presidente de tronco nu apresenta-se sem dissimulações, sem filtros, e suscita um outro olhar. O que vemos, então? Um corpo naturalmente envelhecido e flácido (mas não exageradamente, para quem tem mais de 70 anos). Nada de obesidade, mas apenas um corpo em decadência, ainda que discreta, onde a carne e a pele estão sempre em excesso.

A foto mereceu um editorial no PÚBLICO, onde o seu director, Manuel Carvalho, classificou o gesto do Presidente como um atentado ao “bom gosto”. De um ponto de vista estético, isto é, da sensibilidade do espectador, compreende-se a classificação do desnudamento do Presidente como sendo de “mau gosto”. Mas para uma análise de iconologia política, essa questão estética não é pertinente e é a dimensão simbólica (o efeito de banalização, a que Manuel de Carvalho também se refere) que prevalece. Numa análise interpretativa dessa dimensão simbólica, impõe-se a evocação da metáfora dos “dois corpos do rei”, que o historiador alemão Ernst Kantorowicz (1895-1963) usou num estudo famoso da formação do Estado moderno. No centro do seu estudo histórico-genealógico, publicado em 1957, intitulado precisamente Os Dois Corpos do Rei, está a noção de corpo político e a ficção mística do duplo corpo do rei: o primeiro é o corpo natural e perecível, sujeito ao tempo e à fragilidade humana; o segundo é o corpo político, de carácter perpétuo, que ao ser transmitido (e o ritual da coroação é um acto da dramaturgia política dessa transmissão) escapa aos limites da finitude. Este corpo místico, ligado à sacralidade da política, não pode morrer, porque a dignidade não morre: Dignitas non moritur é a fórmula que, segundo Kantorowicz, constrói um paradigma dos soberanos vivos e imortais, onde se misturam instituições e corpos místicos. Estes axiomas da teologia política elaborada no Ocidente medieval permaneceram válidos até à instituição de uma “teologia profana”, em que se transpõe para a dimensão terrena da contingência política do Estado secularizado a Majestade divina, como mostrou Kantorowicz na sua grande narrativa da invenção do Estado moderno.

De forma laica, e ilustrando a tese de Carl Schmitt de que os conceitos fundamentais da política moderna são conceitos teológicos laicizados, o princípio dos dois corpos do rei nunca deixou de manifestar um enorme poder de sobrevivência. Não podemos deixar de pensar no grandioso estudo de teoria política de Kantorowicz quando vemos que o actual Presidente da República decidiu desde o início apresentar-se publicamente sob a forma de um excesso de corpo profano (que Manuel Carvalho, no seu editorial, chama “estratégia de banalização”), aquele corpo demasiado visível, sempre a oferecer-se às múltiplas máquinas de visão e reprodução modernas, exibindo demasiada carne, demasiada paixão, e eclipsando aquele outro corpo mudo, misterioso, invisível, sublime, que impõe distância e se confunde com o próprio Estado. No entanto, é possível perceber que a sua estratégia não é da “banalização”, mas a singularização pelo excesso, do qual este último gesto documentado na fotografia de Daniel Rocha é a manifestação mais eloquente. Aquele corpo vulgar, que se assemelha a todos os corpos envelhecidos, vai para além dos seus próprios fins e entra no êxtase da sua imanência. Dito de maneira muito mais singela: com este seu último gesto escandalosamente profano o Presidente não pretende descer ao nível do homem banal, mas elevar-se a um estado paradoxal. A nível nacional, o outro pólo do seu gesto de desnudamento — aquele onde não há invisibilidade nem sublimidade possíveis — só tem um correspondente no seu amado Ronaldo.

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