Mesas de voto
Tendo madrugado fui votar logo na alvorada eleitoral. Apesar das décadas passadas tão longe faço-o ainda no local de sempre, a escola nas traseiras da casa onde cresci e na qual sigo hoje envelhecendo, em tempos chamada “Damião de Góis” e agora abarcada por uma qualquer sigla C+S, amputação onomástica que presumo devida à tomada de consciência estatal da malévola colonialidade eurocêntrica daquele intelectual, nunca denunciante do escravismo e do racismo seus coevos.
Fui assim um dos primeiros eleitores presentes, percorrendo os pequenos corredores frios e vazios daquele edifício acabrunhado, que já este século veio substituir os imundos pavilhões pré-construídos que ali decorreram décadas sob estatuto de “provisórios”. Enfim, direito cívico e momento de nostalgia correram-me lestos e aprestei-me a regressar a casa. Mas ia eu nesse propósito e ali mesmo fui captado por uma vizinha. Do meu prédio, das mais novas da geração dos meus pais, os povoadores dos Olivais, aportados no final da década de 1960s. Esta ainda septuagenária, e activa, agora figurando na organização do dia eleitoral. Enérgica e atenta, pois cooptando-me, convocando-me a integrar as mesas de voto, às quais muitos dos membros agendados haviam faltado.
Tentei escapar mas era-me difícil, embatucado com o que senti como um tal de dever de cidadania - e logo comigo que passo a vida a resmungar sobre política. E tendo já trabalhado em várias eleições no estrangeiro, como assim negar-me a fazê-lo na minha “Pátria Amada”, e mesmo à porta de casa? Ainda assim, com alguma falta de pudor, ainda tartamudeei, em desespero de causa, “ainda nem comi, nem bebi café, estou meio azamboado”, nisso procurando razão suficiente para me escapulir. Hábil estratega, a vizinha não vacilou, “vai lá tomar o pequeno-almoço e volta rápido”. E assim fiz, cerviz dobrada, acorri ao meu “Arcadas”, a pastelaria de sempre, à bica dupla, a resmungar ao Sô João “veja lá o que me aconteceu, vou passar o dia ali encerrado” e ele sorridente, “vá e depois venha com boas notícias”. E eu, desalentando-nos, “não virei, decerto que os gajos vão ganhar isto”. E “para mal dos nossos pecados”, acrescentei, ateu. No que anuiu ele… Risonho, telefonei ainda à minha mana a narrar-lhe a armadilha em que caíra, e ela sossegou-me em definitivo: “o pai ficaria muito contente, até muito tarde sempre foi para as mesas…”, e é verdade – como delegado do Partido, claro, que nesses tempos ainda tal havia. E se o pai ia como posso eu negar-me?
Assim lá segui até à escola. À entrada identifiquei-me a uma jovem da Junta da Freguesia, cujos óculos e atitude davam ares de encarregada - deixando o meu rol de contactos, como se garantindo-me honesto - e dirigiram-me a uma mesa de voto. Ali me apresentaram como membro avulso, voluntário, e me empossaram como segundo secretário, condição na qual passei o dia a conferir cadernos de votantes ordenados alfabeticamente e, mais tarde, a contar o que haviam eles feito. Para isso integrei uma equipa de simpáticos olivalenses, eficientes e entusiastas daquilo, todos veteranos da poda eleitoral: três deles haviam feito todas as eleições desde os anos 1980, e a mais nova – filha da presidente da mesa, por coincidência - fazia-as desde há uma década. Surpreendi-me, questionei como era isso possível, qual o sistema que os integra desse modo? Que basta as pessoas inscreverem-se para este efeito na Junta de Freguesia, afiançaram-me.
Acabou por ser um dia interessante, muito também pela eficiência, tarimbada, daqueles parceiros, tanto na votação como na contagem. Cabiam naquela mesa 1000 eleitores, entre Luíses e Marias P’s, consistindo, dada a área coberta, e ainda que naquele bairro tão compósito, num nicho da pequena-burguesia – o em torno do Centro Comercial dos Olivais, para quem conheça a zona. População muito envelhecida, eleitores até nonagenários, imensos octogenários, feixes de septuagenários, escassíssimos jovens, raríssimos mesmo (e quase todos “Marco”s, já agora…), e a aparecerem em grande número, muitos até compenetrados no acto. Fui vendo o desfilar do eleitorado geronte, com carinho mas também remoendo “como pensar numa reviravolta disto tudo com estes votantes?”. Voto muito conservador, presumi primeiro e depois contei-o… Comprovando-me pois ali brilhou, resplandecente, o dr. Costa e seguiu-se, menos trôpego do que alhures, o dr. Rio.
Mas também me diverti, na quantidade de caras conhecidas que ali aportavam: amigos de agora (“estás aqui Zezé?”, “até logo” para a imperial de rescaldo), amigos de antes, da saudosa juventude de bairro, colegas do secundário – e algumas delas ainda em muito bom estado, clamava o sátiro utópico em mim aboletado -, vizinhos de rua e bairro, pais e mães (muito mais mães, claro, que os homens já as enviuvaram) de amigos, e nisso uma catadupa de lembranças para a minha mãe Marília, então já abstencionista. Surpreendidos seguiam os meus parceiros de mesa, com a rapidez com que eu identificava tantos nomes nos cadernos, pois quantas vezes me bastava ver assomar o eleitor e sabia-lhe o nome… “dá muito jeito ter alguém da área”, sorriam simpáticos. Senti-me assim, como nunca, um verdadeiro freguês, um vizinho ancorado. Agradável, para um ainda – e talvez para sempre – torna-viagem.
Nisto foi chegando a hora do almoço e começámos uma escala, a vez de cada um se ausentar para ir comiscar qualquer coisa. Disse então eu, para a jovem colega ali a meu lado, “seria simpático que a Junta nos trouxesse um lanche … e evitavam-se estas saídas”. E ela, perspicaz, percebeu-me desatento ignorante: “mas olhe que nos pagam!”. Surpreendeu-me, não fazia ideia de que era aquilo trabalho remunerado, suponha-o extremoso voluntariado cívico, coisa, decerto, de ter vivido tantos anos fora. “Pagam-nos?! E quanto?”, “cinquenta e tal euros”, não estava ela certa da quantia, pois fora anunciado um pequeno aumento. E juntou-lhe, mas já em registo “aqui entre nós”: “mas só pagaram as eleições passadas – as europeias, que haviam sido sete meses antes – anteontem. Por isso é que muita gente não veio hoje para as mesas”. Sorri diante daquilo, claro, o costume, apenas mais uma mostra do atrapalhado desrespeito do Estado para com todos nós… E percebi bem melhor este afã dos veteranos eleitorais, decerto que o prazer da participação – notório, afianço -, porventura também espelhando-se como importância própria, por parca que seja, entre vizinhança e parentela. Mas tudo isso bem sublinhado pela jorna, meia centena de euros que será coisa pouca para muitos doutores, mas nada de deitar fora, nada mesmo, para nós-remediados, e isso se nos conseguimos assim manter.
Enfim, tudo correu bem naquele dia. Neste último Dezembro, 14 meses depois, numa manhã cedo fui ao Centro de Saúde dos Olivais, para saber de umas coisas nas entranhas, a ver se me ajudam com tais ardores e pressas. Regressei a casa em passo de peão e nesse calcorrear lembrei-me dos tais 50 euros, os quais nunca recebera e que muito me ajudariam agora a pagar a conta da electricidade – a qual, para o Governo, por não ser um bem essencial não deve ser paga a preço de custo. E assim fiz um pequeno desvio pelas ruas da Encarnação indo até à Junta de Freguesia. Atenderam-me à porta, pandemia oblige. Expliquei à simpática funcionária que ali estava em demanda da minha jorna eleitoral. Surpreendeu-se, pois “já pagámos isso há bastante tempo”. Ainda insisti, em modo de quem quer aparentar de que não precisa do dinheiro para a boca, e narrei as vias acontecidas. “Ah, como o senhor se voluntariou então não recebe, deve ser isso…”. E pronto, agradeci, na pose blasé que desencantei, feito Cidadão Teixeira, e lá segui à minha vida. Como quem nem queria a coisa …
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Há onze meses que seguimos ajoujados sob este Covid-19, e há muito que se espera e teme uma nova vaga infecciosa. A qual chegou. Estamos no topo mundial dos fustigados, no pico da pior crise que o país conhece desde há décadas. E o poder político convoca-nos a sair à rua e a visitar ambientes basto-respirados para votar. Durante todos estes meses ninguém no Estado, eleito ou funcionário, pensou em organizar o adiamento das eleições – se necessário ou recomendável. Inépcia, inacção, incompetência. Irrazão.
Em tempos disseram os nossos antepassados “navegar é preciso, viver não é preciso …”. Mas esses eram traficantes, pescadores, descobridores, piratas, soldadagem, todos feitos ou fazendo-se marinheiros de mar alto. Enquanto esta gente de agora é mera equipagem de cabotagem. E mostra-o agora como nunca o fizera…
E quando o nº 2 do Estado, Eduardo Ferro Rodrigues, veterano político, clama que “votar é forma de resistir ao vírus”, apenas ecoa um agora desajustado imaginário, a invocação de actos de corajosa cidadania democrática contra opressões. Para ele, patético, o voto de amanhã, no meio desta crise sanitária, entre contágio desregulado, hospitais apinhados e médicos exauridos, é qual o berro da La Pasionaria, as barricadas da Comuna de Paris, a cadeia do Forte de Peniche, o comício da Fonte Luminosa ou outro qualquer ícone das reclamações democráticas. Não percebe, por seus graves limites intelectuais, a diferença entre votar em condições adversas, durante conflitos ou rescaldos de catástrofes naturais episódicas - como cheias ou terramotos –, mostrando vontade moral, de cidadania, de afirmar a democracia contra adversários e adversidades. E votar agora quando “resistir ao vírus”, estancar a corrente de contágio – de facto, a cidadania democrática - é reduzir ao mínimo o risco de infecções.
Utilizar agora este argumento, este imaginário, é perverso. E boçal. Mas é pior ainda, denotativo da mundivisão de clique política, desencastrada da sociedade, dos seus compatriotas, de Ferro Rodrigues e seus correligionários e colegas políticos, desde a “esquerda revolucionária” até à “direita social”, dos “nacionalistas” aos “cosmopolitas/internacionalistas”.
Pois para suprir a sua incompetente inacção, a sua pobre e trôpega cabotagem, para levar a cabo estas adiáveis eleições, estes possidentes induzem e apelam a milhares destes pequenos fregueses, enrascados remediados, ali também em busca da parca jorna eleitoral – não só mas também, pois escassos serão os doutores bem-postos nas mesas de voto – a acorrerem para acolher centenas de votos depositados nas invernosas salas fechadas. Com hipotéticos sacrifícios sanitários. E, acima de tudo, com angústias morais.
São estes políticos de “esquerda”, do “centro” e da “direita”. E enchem a boca com as suas preocupações com o “povo”.
Amanhã, domingo, não sairei deste Nenhures, não irei de camioneta à capital, à tal C+S que foi “Damião de Góis”, não votarei. Por mim e para sossego daqueles que comigo coabitam. Pois, mesmo que reduzido seja o risco, não é razoável corrê-lo. Deixo sim o meu voto de saúde para todos aqueles que acorrerem para trabalhar nas mesas eleitorais. E o meu desejo que, desta vez, as suas jornas não sejam pagas apenas daqui a uns meses. E, já agora, que paguem também aos voluntários, que vierem a acorrer já em in extremis.