Portugal-Bélgica (crónica)
Na véspera dos oitavos-de-final deste Euro 2020/1 fui infiltrado, o que me criou más expectativas para o encontro pois temi alterações nas condições físicas apropriadas. Mais ainda, no próprio dia recebi a novidade, esperada é certo, de que nas relativas cercanias do estádio de Wembley a minha filha, também ela, assinara pelo clube Pfizer. Algo que me causou uma enorme desconcentração, prejudicial ao embate face aos belgas.
Pois assim me mergulhei em memórias inúteis: de quando na época passada a aguardei, ela com traumatismo asmático, agravado no pesado calendário inglês, para logo nos confinarmos num Nenhures campestre, eu em pânico, inseguro sobre os efeitos que uma hipotética fractura covidesca poderia ter na carreira dela. E isso quando o Presidente da Federação, Sousa, e o director das Relações com as Filiais, Silva, nos garantiam da impossibilidade de fechar fronteiras, sendo que Sousa prosseguia entre festejos em estádios teatrais no reduto de Pinto da Costa. E Freitas, a responsável pelo departamento médico, nos pedia para visitarmos os núcleos de veteranos - onde a minha mãe, antiga campeã de paciência, viria a definhar e morrer enclausurada - e nos alertava para não usarmos máscaras nos treinos nem aceitarmos que nos fizessem testes anti-doping. Já para não falar de Antunes, responsável dos relvados de Alvalade e Alcochete, que se debruçava sobre possíveis transferências de jogadores para o campeonato chinês. Lembrei ainda os meus frémitos quando a minha filha, já nesta época regressada à Premier League, contraiu uma lesão no tendão covidiano, ainda por cima sem que eu tivesse total confiança nos fisioterapeutas do seu clube. Enfim, tamanho foi o meu alívio, até eufórico, com a sua transferência para o Pfizer, que no domingo me alheei dos cuidados tácticos face ao nº 1 do ranking mundial e à ponderação dos titulares necessários para cumprir as matizes estratégicas que se poderiam impor durante o tempo regulamentar e, mesmo, no sempre temível prolongamento.
Tão abstraído estava que nem verdadeiramente notei que a equipa nacional, após entoar o hino, se ajoelhou como se fosse uma qualquer equipa de futebol americano, nisso decerto que arrebitando os ademanes dos holigões socratistas do Sport Campo Grande, do Atlético de Campolide e do Académico de Coimbra, já para não falar do entusiasmo que decerto sentiram os literais "Black Panthers", recém-contratados pelo Desportivo da República, ao verem o enérgico Sanches de "Poder Negro" em riste.
Assim sendo só após soar o apito inicial pude constatar algumas evoluções na filosofia do Engenheiro Santos: poventura para mitigar o número de punhos racistas erguidos no início do jogo cuidou de enviar William Carvalho, sua excentricidade, para a bancada, e Danilo, seu óbvio talismã, para o banco de suplentes. Um pouco mais à frente tudo na mesma como a lesma - como diz o povo, na sua infinita sageza - com os alas da direita e da esquerda (se é que este o era) impassíveis, pobres avatares dos excelentes Bernardo Silva e Diogo Jota que ali estavam encarregados de representar.
As equipas entraram em cuidadosa fase de estudo, a qual teve direito a 2ª chamada e se prolongou até à 2ª época, o que comprovou o acerto da escolha do Prof. (Jubilado) João Moutinho como titular. Nesse entretanto, e apesar de algumas irreverências do aluno Sanches, decerto que devidas a ser oriundo do ensino técnico-profissional, posso afiançar que foi o período em que mais estive em jogo. Pois decorreu um futebol mastigado, condizente com a nossa claque aqui presente, entregue ao manuseio de uns belos ovos com farinheira (cuja origem não averiguei), uns rojões com molho amostardado do mais fino recorte técnico, uns decentes camarões austrais cozidos debruados com a maionese caseira, tudo circundado com tremoços temperados bem frescos e o pequeno luxo de tijelas de castanha de caju, estas ali em homenagem aos sempre indefectíveis apoiantes africanos da selecção nacional, como bem o comprovou o hino da selecção, o "Vamos Com Tudo" de autoria e trinados do artista David Carreira. Mas nestas manobras reconheci o meu estado de abatimento, o qual nada de bom augurava para o desiderato final, pois acompanhei-as com apenas uma cerveja, a condignamente titular "Super Bock".
Enfim, cerca do final da primeira parte aconteceu o rude golpe belga, selecção que - reconheço-o - muita simpatia me convoca e não só devido a Moulinsart. Ao intervalo o nosso estado era de algum torpor, em murmurados lamentos face à opção de retirar o play-maker Ferro Rodrigues da equipa, substituindo-o por um apático e inexperiente Brandão Rodrigues. Pois não basta ser (quase) homónimo para se poder levar a equipa ao triunfo. Confesso que a segunda parte por cá encontrou uma moldura humana já mais rarefeita e ainda menos confiante. Foi reconhecida, com justiça, a (tardia) afoiteza do Engenheiro, o qual com sucessivas substituições tratou de "meter a carne toda no assador", tentando inverter o agora regressado triste fado luso. Ficará para sempre a dúvida sobre porque não o fez antes, pois foi óbvio - como o demonstrou a inútil arrochada do Tio Pepe, que lhe provocou a reprimenda arbitral - que a carne assada em tão pouco tempo se torna demasiado nervosa, dando-se pouco macia às gengivas adeptas. Ainda assim o Engenheiro não mereceu a traição cometida por Raphael Guerreiro, que decidiu atirar ao poste quando as instruções recebidas eram para repetir exactamente a manobra de Budapeste.
Terminado o confronto de Sevilha, constatado o atentado blasfemo à religião oficial de Estado, retirámo-nos acabrunhados sem mesmo escutar os sacristões congregados nos painéis televisivos. Já no leito algo me reanimei ao ler as doutas declarações do presidente da Federação, Sousa, afiançando-nos que tínhamos sido os melhores e que, mais importante, somos como os melhores. Nisso convocando o nosso fervor para 2022, ano no qual, prometeu o Engenheiro, seremos campeões do mundo. Adormeci, mais pacificado. E sonhei com múltiplas medalhas em Tóquio. E com Eduardo Ferro Rodrigues.