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Nenhures

Nenhures

13
Jun24

Na Feira do Livro

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A culpa foi do José Navarro de Andrade. O outro dia fui a uma cena dessas literárias, o que me é raríssimo. O tipo também comparecera, coisas de amizades lá dele. Enfim, fiz o que me cabia, sem murmúrios ouvi algumas palavras (auto)laudatórias e depois uns mui sentidos versos bem mortais. No final daquilo, e também para evitar uns apparatchikos PS (daqueles mesmo..) que por lá constavam, roliços ronronantes, vim para a rua fumar, e o Navarro também avançou. A gente vê-se (via-se, melhor dizendo) era na bola, ele levava-me a ver o Sporting, e também nos jantares de sportinguistas no Império. Mas ali não falámos de futebol, descaímos para livros. E não é que o Navarro me diz - ao fim destes anos todos - que tem este "Terra Firme", pequeno livro sobre a formação dos preços dos víveres, isso que nos esmaga. Narrou o ciclo, dos produtores até aos Pingos Doces da vida...

Enfim, fui agora à Feira do Livro, tendo jurado nada comprar, dadas as estantes atafulhadas e, acima de tudo, devido à... formação dos preços dos víveres, cruéis. Mas lembrei-me do livro do Navarro, e fui comprá-lo, até por ser bem barato. Mas foi o desastre, foi o ceder do dique moral. Malditas pechinchas!, as que logo se seguiram, que do Benoliel aos monos (e que belos monos) da Relógio D'Água já disparatei. E a culpa, repito, é do Navarro.

12
Jun24

Uma ida à Feira do Livro

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Raisparta isto, lá terei eu de ir amanhã à dispendiosa Feira do Livro (sim, os preços nas barracas de "comes e bebes" são especulativos...). A partir das 14 horas acorrerei ao pavilhão onde a minha querida amiga Isabel Quadros se fará acompanhar do seu livro "A Chama de Um Poente" - e se o motivo quase único será vê-la estarei também na expectativa de encontrar alguns veteranos de Moçambique (Isabel, temos de organizar outra jantarada, e dessa vez serás tu e não outro Quadros a vender livros). 

Saírei dali para a apresentação, às 15 horas, do "Não Sou Nada: Um Filme Pós-Pessoano de Edgar Pera", livro coordenado pelo excelente Jerónimo Pizarro. Os dois juntam-se depois para uma sessão de autógrafos (15.45 h.) e pode ser que apareçam - apesar do feriado ou talvez por causa dele - alguns meus conhecidos. Ainda que não acredite eu que venham a ser servidos canapés, nessa frugalidade que é a grande pecha literária e ensaística nacional. 

No meio desta azáfama pode ser (pode ser, sublinho) que eu venha a perder a cabeça e me dirija ao pavilhão da excelente editora Guerra e Paz e compre o "O Pensamento de Camões" de Jorge de Sena (e se for "livro do dia" dificilmente resistirei), o único livro - para além dos escritos por amigos - que me faria apanhar o metro até ao Eduardo VII. 

Enfim, estou certo que amanhã chegarei a casa exausto. E depauperado.

12
Jun23

No final da Feira do Livro de Lisboa

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Frey Joannes Garabatus, As Quybyrycas, 1972. 

Acaba amanhã a Feira do Livro de Lisboa 2023. Passei incólume, nada tendo comprado - nem se trata de uma opção, é mesmo uma obrigação, a qual tornei promessa. Pois não só me escudo na verdade de ter em abundância livros que ainda não li, tal como sigo abonado de amigos com estantes apetitosamente repletas. Ao invés da radical escassez de recursos para adquirir livros - sim, há muitas "promoções" na Feira, tal como as há alhures ao longo do ano. Mas as publicações recentes, novidades ou reedições, dessas apelativas, que até compelem à gula aquisitiva, são dispendiosas - um volume de ensaios ou um fruto de investigação, tal como uma ficção um pouco mais bojuda, "custa um jantar" dirão os mais sossegados. Mas de facto é o equivalente ao rancho semanal de um celibatário frugal...

Foi nesta disposição desconfiada (de mim mesmo) que por três vezes visitei a Feira, sempre a encontrando pejada de gente, de várias idades, e com ar alegre: para a sessão de apresentação do "Transcolonial" do meu antigo professor João Pina-Cabral, uma interessante colecção de artigos sobre Moçambique (aviso os interessados no estrangeiro, e não só, que há edição de livro digital que lhes será de mais fácil aquisição). E logo no dia seguinte para outra sessão similar, a do para mim tão delicioso "Antes que a gente morra" do meu amigo Nuno Quadros, que nele coligiu 30 episódios da sua vida, suas memórias ocorridas entre o ocaso de Lourenço Marques e o Maputo actual, passando por outros continentes. E ainda voltei, para uma - concorridíssima - sessão de celebração do décimo aniversário da colecção "Pessoa" da editora Tinta-da-China, dirigida pelo excelente Jerónimo Pizarro, a quem tive o privilégio de conhecer muito recentemente na sua Bogotá.

Enfim, diverti-me, ouvi intervenções interessantes, revi gente amiga e conhecida. E trouxe apenas uma amargura, um desejo não cumprido - isto para além, claro, da minha consuetudinária tristeza invejosa enquanto vasculho as bancas alfarrabistas -, esse de me ter mantido fiel a mim próprio e assim não ter comprado o "A Escravatura - subsídios para a sua história", de Edmundo Correia Lopes, edição algo recente da Antígona de um original de 1944. Sim, custa apenas 5 euros: grosso modo serão mais caros os dois cafés, a água das Pedras, o rissol e o bolo de arroz empaturrante que consumirei se for lê-lo a uma biblioteca. Mas promessa é promessa, e não era ali rodeado de tantos perigos que a iria quebrar... Assim sendo foi pecadilho que adiei até à próxima ida à capital.

Quanto ao restante da Feira tenho apenas dois comentários. Julgo que se alargaram as áreas dedicadas aos "comes e bebes" e isso é muito bom, tanto porque possibilita e/ou induz estadas mais longas aos clientes como porque contribui para uma dinâmica passeante, até festiva - a tal Festa do Livro que é Feira... Aquilo que não percebo (ou seja, percebo mas resmungo...) é a causa de nelas serem os preços caros, qual a obscurantista razão de se pagar duas ou três vezes mais por um pequeno copo de cerveja (a dita "imperial") ou uns euros mais por uma sanduíche ou similar do que se paga num café em zona burguesa da cidade. É que os cafés e restaurantes fixos têm rendas, ordenados a tempo inteiro - e quantas vezes são familiares -, imensos impostos, quantas vezes pesados empréstimos, etc., para pagarem. E ali são umas bancas, um mero "gancho" de quem as instala, sem custos fixos nem obrigações a prazo, decerto que com trabalho eventual e sub-remunerado. Porque se paga tão mais por uma "imperial" na banca da Sagres do que no café do bairro que vende "Sagres"? Enfim, "já que estes gajos vêm aqui gastar dinheiro em livros é de se lhes carregar nos preços..." Há quem compre (maus) livros e a isto chame "gentrificação", a "gentrificação da Feira do Livro" dirão arrastando as vogais. Eu prefiro praguejar, carregando nas consoantes. Divisões ideológicas, como se percebe.

O outro comentário é (exclusivamente) económico. No dealbar desta edição vi anunciada uma selecção dos "14 livros que todos os estudantes deviam ler", emitida pela popular cadeia de gadjets electrónicos FNAC. A qual estava representada na Feira do Livro, logo à entrada, por barracas que sempre encontrei apinhadas. Presumo que esse reclame ao "cânone literário" tenha tido algum efeito. É certo que qualquer selecção literária é discutível, e de facto até se torna inútil fazê-lo. E normalmente essas listas são muito influenciadas por interesses próprios, comerciais ou intelectuais (comercial se a recomendação advir das malvadas editoras, intelectuais se emanadas pelos doutos especialistas... que recebem salários por se especializarem naquilo que recomendam). Mas também pelos "ares dos tempos" - a que propósito é que se diz aos incautos jovens e menos jovens que nestes 3000 anos de literatura corrente há 14 livros muitíssimo recomendáveis e depois se elenca Harper Lee e não Faulkner? Não há mesmo paciência...

Mas aquilo que me irritou mesmo - com o tempo já me passou, até porque a Feira já decorreu - foi o desplante de ver os vendedores de produtos digitais a dizerem à mole cliente que desde Gilgamesh até agora um dos quatorze livros fundamentais é "Viagem à Índia" de Gonçalo M. Tavares... E dizer isto num país onde se continua a não ler o monumento "As Quibíricas" de António Quadros (nele se apresentando como Frey Joannes Garabatus) é, e muito mais do que mero eco dos "ares dos tempos", um escândalo. Não estou a exagerar, é uma impudicícia empresarial escandalosa.

Para quem não conheça deixo abaixo o prefácio de Jorge de Sena a "As Quibíricas" e três belos artigos sobre o livro e seu autor. E nada mais tenho a dizer sobre (a Feira do) livros. Espero que para o ano possa lá chegar menos dado a promessas auto-repressoras, que a vida me sorria nesse aspecto. Ou, vá lá, pelo menos que lá chegue, ainda capaz daquelas subidas e descidas. Que é isso mesmo que interessa...

"Prefácio a As Quibíricas", de Jorge de Sena.

"António Quadros/Grabato Dias, o homem com um gato nos pulmões", de António Cabrita.

""Camões" em Mocambique à procura das Quybyrycas de Frey Garabatus. Cânone, geopolítica e descolonização", de Maria Benedita Basto.

""As Quibíricas" de Grabato Dias ou o discurso da ruptura", de Luís de Sousa Rebelo.

01
Jun23

"Transcolonial" de João Pina-Cabral

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João Pina-Cabral é um dos antropólogos portugueses mais proeminentes - e avanço isto não para o mimar mas porque a disciplina segue bastante clandestina em termos públicos e sendo assim é normal que os seus grandes nomes não sejam muito reconhecidos, contrariamente ao que acontece no universo das disciplinas "primas", mais dadas às "luzes da ribalta".
 
Cresceu parte da sua meninice e adolescência em Moçambique, onde o seu pai era figura relevante do clero anglicano. No início de XXI voltou ao país para leccionar na UEM. Destas últimas estadas resultou um conjunto de textos sobre o país. Há pouco coligiu 13 desses artigos neste "Transcolonial".
 
É um livro problematizador - o melhor que se pode pedir a um livro de antropologia, pelo que dispenso-me de outros requebros e adjectivos. Amanhã, 2.6.23, será (re)apresentado na Feira do Livro de Livro às 19 horas no pavilhão da Imprensa de Ciências Sociais.
 
Deixo aqui o anúncio tanto para os que estejam nas cercanias e se interessem por temas moçambicanos como para aqueles - até das tais disciplinas "primas" - que tenham interesse nas abordagens dos antropólogos. E seria interessante congregar um núcleo heterogéneo para debater o livro.
 
(Nota pessoal para os mais desconfiados - e assim potencialmente renitentes: eu disse que o livro é "problematizador" mas convém juntar que - aleluia - não se trata de "activismo". Ou seja podem ir, podem ler...)

27
Mai23

Feira do livro

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Há um mês visitei a Feira do Livro de Bogotá. Enorme, também alimentada pelo gigantesco mercado editorial hispânico, também palco de críticas devido à mercantilização/padronização devida às grandes editoras multinacionais. Mas muito diversificada. E apinhada de gente, esta entrechocando-se, entre o turbilhão de expositores e o vasto manancial de palestras e apresentações. E nisso fruindo, numa verdadeira Festa do Livro, algo comprovado na imensidão de gente, famílias e grupos de amigos ali enfileirados para petiscar, e mesmo (ainda) sem livros nas mãos. Foi um prazer cruzar essa festa popular, cobiçar capas, comer maçaroca de milho, ver alguns pavilhões peculiares, até os alguns encontrões sofridos.

Amanhã começa a Feira do Livro em Lisboa. Só vejo, redes sociais afora, resmungos, exigindo a sua superioridade sobre a malta da bola (sim, o país está futebolizado, mas não é de agora...) porque uma parcela desta se prepara para festejar ali perto. E reclamações de que há autores a mais e abundância de maus livros, proclamações de que há temáticas indignas ou pouco próprias, resmungos sobre palestras e conferencistas, que são vácuas e ocos, etc. E a um amigo, que lá vai apresentar um livro, diz-lhe a editora que "não é próprio" fazer-se acompanhar de uns singelos "comes e bebes" para animar o convívio...

Não tenho dúvidas sobre uma certeza - e neste passo sigo o "achismo" do agora centenário ilustre e tão louvado posfaciador do "Senhor Engenheiro José Sócrates" (sic) -, a característica central dos portugueses não é sebástica, ou atlântica ou hiper-identitária, ou lá o que seja. É mesmo a cagança.

04
Set22

Rui Mateus Pereira

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A última edição da revista Etnográfica inclui um In Memoriam dedicado a Rui Mateus Pereira, morto em 2020 - com textos de Adolfo Yáñez Casal, Ana Isabel Afonso, Frederico Delgado Rosa e Laura Almodôvar, colegas que lhe foram próximos e que com ele constituiram amizades. Tive com o autor um relacionamento muito mais distante e esparso. Mas, e até porque a nossa interacção não se enquadrou no espaço universitário, aqui deixo a minha memória. Na qual, e porque escrita em blog próprio, não tenho o espartilho dos limites de caracteres - comum em publicações institucionais - nem prescindo do exclusivo tom pessoal.

Conheci o trabalho de Rui Pereira quando em 1992 comecei o primeiro mestrado dito de "Estudos Africanos" no actual Centro de Estudos Internacionais do ISCTE. Decidira trabalhar na "cintura matrilinear" de Moçambique e na época eram escassos os antropólogos portugueses a investigarem naquele país (Yañez Casal, Feliciano e ele - só mais tarde vim a conhecer o trabalho de Medeiros), pelo que a atenção sobre eles logo se impunha. E muito me era importante a temática que ele erigira - pois o mestrado incidia em Estratégias de Desenvolvimento, o que tornava imprescindível a sua reflexão sobre as práticas e os objectivos da nossa "antropologia aplicada" naquela colónia. Da qual resultara a sua prova de aptidão científica e pedagógica na Universidade Nova em 1986, "A Antropologia Aplicada na Política Colonial Portuguesa do Estado Novo. A Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português (1956-1961)", um produto excêntrico no panorama intelectual nacional daquela época. E que ele já divulgara em alguns artigos e comunicações, principalmente em duas publicações na então pujante Revista Internacional de Estudos Africanos (nº 4-5 e nº 10-11). Ou seja, e como era hábito e necessidade naquela época, acumulei com afã fotocópias dos seus textos. 

Em 1995, já regressado do meu primeiro trabalho de campo em Moçambique, enquanto tentava terminar a escrita da minha tese de mestrado fui trabalhar na Comissão dos Descobrimentos (CNCDP), quando António Manuel Hespanha substituiu Vasco da Graça Moura como Comissário-Geral. Foi então que conheci Rui Pereira, ali uma figura proeminente, e que logo me pareceu ser uma das hastes da tripeça que suportara o até frenético, entusiástico e tão competente exercício da casa, articulando com Graça Moura e o comissário-adjunto, Faria Paulino -  que também estava de saída da instituição -, o qual era um excelente produtor cultural, literalmente reverenciado pelo pessoal técnico. E foi relevante o que aconteceu no período subsequente: Hespanha surgiu com um projecto um pouco diferenciado, recorrendo uma historiografia mais contemporânea, atenta - e nisso sedimentada - a visões mais críticas de analíticas, mas sem abdicar da espectacularidade exigível àquela função comemorativa. E optou por uma direcção mais colegial, nela integrando historiadores (e não só) de excelência dotados de funções executivas. Ora nessa transição, implicando um diferente modus faciendi, Rui Pereira manteve-se como elemento fundamental - tal como veio a acontecer com o comissário seguinte, Joaquim Romero de Magalhães -, o que sublinha a sua extrema capacidade intelectual, de planificação e execução. E se disso memória física seja necessária, para o comprovar está aí a belíssima e rica colecção da revista "Oceanos", verdadeiro ex-libris da instituição, a qual ele continuou a dirigir, entre várias outras tarefas.* 

Lembro-me da minha expectativa ao ser-lhe apresentado naquele final de 1995, e de no momento me ter imbuído, até involuntariamente, de um estatuto de mais-novo, de interesse respeitoso, até cerimonioso. Rui Pereira impressionava, pois na sua robustez e vigor era também um indivíduo bem apessoado, e sobre tudo isso era notório ser alguém cioso do seu espaço face aos homens, nisso desprovido de "falas mansas" e falsas amabilidades, tão típicas dos corredores institucionais. E assim, mesmo sendo eu também antropólogo, em investigação sobre Moçambique e da mesma geração - pois apenas meia dúzia de anos nos apartavam -, deu-me as duas braçadas de distância do tratamento na terceira pessoa. É certo que tratava com essa frieza respeitosa a maioria dos funcionários, tal como era evidente que o acolhimento a quem chegava com a nova direcção (mesmo sendo eu apenas um técnico) era cuidadoso - até pela transição política que então acontecia -, e talvez tivesse laivos da alguma relutância, até rivalidade (?), que então assomava entre os antropólogos oriundos da Nova (como ele) e do ISCTE (como eu). Mas a tal "terceira pessoa" marcava, acima de tudo, o curial relacionamento professor-aluno, o cada um no seu estrado que entendeu apropriado para a nossa interlocução.

Os meses foram passando e breves conversas nos foram surgindo. Cruzámos as nossas histórias de Maputo, as sentidas e as pitorescas, os conhecidos comuns que lá havíamos feito, os textos lidos, o Moçambique então actual tal como o apreendíamos. E ele falava com desvelo das suas conversas com Margot Dias, exultava com o seu acesso aos relatórios secretos da equipa de Jorge Dias (que viria a publicar como anexos à sua tese de doutoramento). E avisava-me, com "saber de experiência feito" - pois tinha um doutoramento encetado -, dos pantanosos perigos de interrompermos a escrita das teses ou de a subalternizarmos face a outros compromissos...

Em 1996 fui a Moçambique, incumbido por Hespanha de esboçar um rol de actividades possíveis naquele país. Quando voltei contactei Rui Pereira para lhe perguntar a opinião sobre o que preparara: eximiu-me a elogios e a... críticas. Entre outras publicações propus a reedição comentada de "Etiópia Oriental", de frei João dos Santos, e de "Os Macondes de Moçambique" de Jorge Dias et al, "o primeiro livro que lá escrevemos e o último", exagerava eu... Passados uns anos, já vivendo em Maputo, vim a Lisboa e visitei a CNCDP. O "Etiópia Oriental" havia sido publicado, com uma introdução de Manuel Lobato, mas de "Os Macondes..." ainda não havia notícia, tendo-me sido dito que as delongas se deviam a dúvidas sobre a quem incumbir o trabalho crítico. Respondi sem hesitar, até para surpresa dos interlocutores - nisso denotando-se o recorrente desconhecimento dos trabalhos entre a corporação dos historiadores e a dos antropólogos -, ser óbvio que não havia no país (e alhures) alguém mais adequado do que Rui Pereira para tal tarefa. E assim veio a acontecer, tendo ele feito a tão importante introdução à reedição de "Os Macondes", a qual infelizmente se restringiu ao primeiro volume, pois descontinuada devido à extinção da CNCDP. Alongo-me neste episódio para salientar o que então tanto me impressionou, aquilo de Rui Pereira - mesmo sabendo desde o início da existência do projecto de reedição de uma obra que lhe era fundamental e tão querida - não ter tido, "intramuros" ou por interposta via, qualquer estratégia para que lhe fosse atribuído um trabalho que tanto lhe interessaria, intelectual e estatutariamente. Uma postura peculiar, para além de exemplar.

Alguns anos depois, em 2003, surgiu a febre bloguística no país. E ele abriu o seu Companhia de Moçambique (publicado entre Julho de 2003 a 2005, e que teve um breve ressuscitar em 2009-2010). Dedicado exclusivamente à história de Moçambique (e contactável por um endereço electrónico de nome "Chinde", a povoação no delta do Zambeze, nisso denotando o seu recatado carinho, até identitário, pelo país), o blog continha uma belíssima e cuidada dimensão iconográfica - centrada na filatelia colonial -, mas seguia absolutamente desprovido dessa "nostalgia colonial", quantas vezes impregnada de saudosismo revanchista, que inunda(va) os sítios digitais que se dedica(va)m ao memorialismo "africanista". E referia-se ainda, em concisos textos, sem derivas ensaísticas ou polemistas, a várias dimensões do regime colonial, algumas das quais agora - 20 anos depois - são publicamente abordadas de modo tonitruante e menos sedimentado: as heterogéneas características do colonialismo português, a refutação da especificidade "luso-tropical", a relevância do comércio escravista, etc. E apesar dessa peculiaridade temática, do seu (aparente) afastamento da reflexão política - essa tão dominante no bloguismo nacional -, e da discrição do seu autor, o Companhia... tornou-se um blog bastante procurado e presença recorrente nas interacções daquele meio (em especial nas então célebres e requestadas "colunas de links").

Nessa época o nosso escasso e esparso diálogo algo se reacendeu, enquanto membros da chamada "blogosfera", feito de raras mensagens e ocasionais comentários - nos quais ele mostrava continuar atento a Moçambique. Como quando comigo resmungou por ter eu ecoado no meu ma-schamba as opiniões expressas num livro de William Minter, o norte-americano compagnon de route da Frelimo, cujas perspectivas considerava ele (e bem) serem enviesadas, na senda de algum marxismo anglófono dos anos 60s, demasiado embrenhado na causa anticolonial e no vitupério antiportuguês para produzir visões lúcidas sobre os processos históricos. Um pequeníssimo detalhe, mas precioso por demonstrar a constante disciplina da sua visão analítica, imune a maximalismos militantes.

Entretanto a Comissão dos Descobrimentos fora extinta e Rui Pereira ocupara a presidência do então Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.** Em 2004 contactou-me, anunciando que nessa condição se deslocaria a Maputo inserido na visita oficial do Primeiro-Ministro Durão Barroso. Combinámos um jantar em minha casa, o qual acabaria por ser alargado a um punhado de quadros do nosso ministério da Cultura e a amigos também integrantes dessa comitiva. Foi nesse dia que me apareceu com o "tu", então já entre quarentões. E também com a oferta do excepcional "Viva o Povo Brasileiro", de Ubaldo Ribeiro, acompanhado da dedicatória verbal "para veres que há mais sítios para te encantares", um "o mundo é muito grande!" que era uma evidente (e lúcida) convocatória para que me descentrasse eu de Moçambique, que tanto me monopolizava.

Esse seu encanto pelo Brasil era algo já antigo, sinalizado na sua participação - subentendo que de cariz institucional - no tão interessante livro "Viagem Philosophica: Uma Redescoberta da Amazônia" (1992), a celebração dos 2 séculos da expedição amazónica do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira. Bem como na sua actuação, nesse mesmo 1992 - ano da influente Exposição de Sevilha, que foi também marco nas comemorações portuguesas -, como comissário executivo da grande exposição "Brasil nas Vésperas do Mundo Moderno", cuja comissão científica também integrara, conjuntamente com Jill Dias e Benjamim Enes Pereira. Interesse esse que viera a desembocar na realização da bem conseguida série televisiva "Avenida Brasil",*** que escrevera com Francisco José Viegas e fora apresentada pela RTP durante 2000. E o qual presumo se havia incrementado através da produção dos excelentes números da "Oceanos" - então já sob o magnífico grafismo da TVM Designers (Luís Moreira e Emílio Vilar), que lhe ficou imagem de marca - produzidos para a celebração dos 500 anos da viagem de Álvares Cabral: desde logo o especial de 1997 dedicado a "Vieira" e os cinco publicados em 1999 e 2000.**** 

Mas o relevante dessa viagem a Maputo foi a sua dimensão institucional. Havia já anos que organismos estatais portugueses, e até membros dos governos, se desdobravam em visitas e declarações de intenções em apoiar o Arquivo Histórico de Moçambique (AHM), o qual após a independência havia congregado a maioria dos fundos documentais existentes no país, e desde então havia subsistido com galhardia mas com condições infra-estruturais crescentemente deficitárias. Era já evidente que o AHM necessitava de novas instalações. E Rui Pereira, na sua posição de Presidente do IPLB, rompeu com a habitual retórica solidária e teve a arte de articular algumas instituições estatais portuguesas, impulsionando um apoio congregado que foi decisivo nessa transferência e, assim, na preservação da memória histórica moçambicana. Mais ainda, consciente de que as funções do IPLB eram também de actuação no apoio às redes de leitura pública da CPLP, Rui Pereira quis encetar um ambicioso programa de cooperação com as bibliotecas provinciais e distritais moçambicanas - além de dinamizar feiras do livro de grande dimensão a efectuar em capitais provinciais. Mas para esse projecto de apoio institucional as dificuldades seriam intransponíveis, dada a fragilidade das infra-estruturas moçambicanas, as quais seriam de facto incapazes de absorver os apoios materiais que ele, energicamente, se predispunha a congregar. E foi isso que lhe vim a dizer, um doloroso conselho informal quando me pediu a opinião. Todo este seu empenho, energia e criatividade no estabelecimento de uma verdadeira "cooperação cultural" com Moçambique poderá, à distância, parecer algo vulgar. Mas foi mesmo um caso raro, excepcional até, de competência no desempenho de funções públicas no âmbito da "cooperação", de ajuda pública ao desenvolvimento. E, também, de evidente e desinteresseiro apreço por Moçambique.

Foi  nessa época, em 2005, que defendeu o seu doutoramento "Conhecer para dominar : o desenvolvimento do conhecimento antropológico na política colonial portuguesa em Moçambique, 1926-1959", uma continuidade da sua anterior prova académica. Fora uma investigação sobre as várias etapas da prática disciplinar na colónia, decorrida durante 18 anos pois intermediada pela azáfama de múltiplas tarefas laborais. Mas esse longo período não obscurecia o seu estatuto pioneiro, em que através da História da Antropologia nacional em Moçambique enunciava as características reais, e heterogéneas, do regime colonial português em África. Nisso desnudando as tensões entre visões assimilacionistas e segregacionistas, e de como estas se articulavam com o traço fundamental colonial, a frenética apropriação de trabalho forçado, nisso desmontando a visão "luso-tropical" ainda tão vigente -  e actualizada na retórica lusófona desta II República.

E para isso fora lúcida vantagem de Rui Pereira o ter baseado a sua análise na concepção de "situação colonial" (Balandier), que lhe permitiu analisar as efectivas relações de poder que balizavam e norteavam as diferentes modalidades daquele exercício disciplinar. E com isso escapando às habituais reificações devidas às influências das visões oriundas dos "estudos culturais" - ainda que a estas não fosse nem alheado nem avesso (por exemplo o seu artigo "A remissão da arte tribal" leva como epígrafe uma citação de Edward Said) -, que tanto tendiam (e tendem) a encontrar os processos históricos como refracções de "categorias" mentais "exploratórias", credoras de vigorosas "denúncias" pelos "activistas" académicos. Assim, Rui Pereira, e enquanto demonstrava através do exercício da antropologia os traços fundamentais do colonialismo nacional, soube dizer - ao invés do histrionismo denunciatório que já então grassava alhures, e que depois veio a acampar em Portugal -, com pertinência realista: "Em vez de ser julgada como um anátema da Antropologia portuguesa, a situação colonial deve ser entendida como o processo catalisador que proporcionou um salto qualitativo ímpar aos estudos antropológicos em Portugal: a sua aplicabilidade e a sua autonomização científica e académica." (49-50).

Enfim, e sem preocupações de exaustividade bibliográfica, o que encontrei (e ainda encontro) neste "Conhecer Para Dominar",  é o membro pioneiro de um tridente que naquela época desmontou os mitos da "especificidade portuguesa", acompanhado pela tese de mestrado de Cláudia Castelo "O Modo Português de Estar no Mundo”. O Luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961)" (julgo que de 1998) e de doutoramento em 2005 de Cristina Nogueira da Silva, "Constitucionalismo e Império: a Cidadania no Ultramar Português", trabalhos com diferentes enfoques mas que contribuíam para o calafetar de uma visão analítica já suficiente.   

Nos anos subsequentes nenhum contacto tive com ele. Desde Maputo soube que ocupava funções na câmara de Lisboa. E presumia-o algo associado a algumas iniciativas dessa autarquia de que ia tendo notícia, como aquele curioso ciclo de três exposições de colecções privadas de arte africana, a de  Eduardo Nery, a de José Berardo e a de José de Guimarães, sendo que nesta última, "África, Diálogo Mestiço", foi dele a curadoria.***** Tal como foi co-curador, conjuntamente com Alexandre Pomar, da exposição "As Áfricas de Pancho Guedes: a colecção de Dori e Amâncio Guedes", no ano em que fora também apresentada a monumental "Pancho Guedes, Vitrivius Mozambicanus", fazendo daquele 2009 o ano do grande arquitecto de Maputo (Lourenço Marques), justificada homenagem em vida a que Rui Pereira teria de se associar.

Quando voltei para Portugal soube que ele havia transitado para a administração estatal. Pouco depois desse meu regresso tive de ir ao Porto. Desci na estação ferroviária de Gaia, subi a rua e entrei numa tasca para manducar. E ali mesmo vi no telejornal uma alargada notícia sobre a sua demissão de um qualquer posto, promovido que fora ao estatuto de bode expiatório. Não falava com ele há anos mas - num arremedo daquela rusticidade a que chamamos máscula, e até porque sabedor, à minha pequena escala, do que custa, diga-se o que se disser, passar por tal função - deu-me para lhe telefonar. Atendeu, até surpreendido. Disse-lhe "estou ao balcão de uma tasca de Gaia, a beber uma imperial, a comer um rissol e a ver-te ser queimado no largo do pelourinho... É só para te dar um abraço! Até breve". Ele riu-se, resmungou - estava, justificadamente, macerado - e ainda se deixou perguntar dos meus rumos, que desconhecia. Ficámos de nos encontrar, o que veio a acontecer algumas vezes - por exemplo na apresentação do "O Império da Visão", organizado por Filipa Lowndes Vicente, livro com tantos artigos e autores que a sala estava cheia, e ele emparelhou-se-me, ainda eu recém-retornado à capital do tal ex-império e nela excêntrico de has been, para me fazer um muito bem-humorado "quem é quem"...

Um dia fui com colegas - "moçambicanólogos" - à Cinemateca ver filmes laurentinos dos anos 60. No final escapámos ao fastidioso debate, ele viu-nos em fuga e associou-se. Fomos jantar a Campo de Ourique, onde ele vivia, nós os dois com a Ana Bénard da Costa, o Elísio Jossias e a Isabel Galhano Rodrigues. Foi um convívio muito divertido, talvez mesmo porque inesperado, que são assim os melhores... O Rui Pereira espicaçou-me, perguntando-me como me sentia eu por cá, ainda por cima metido em tentativas doutorais. Fui-lhe dizendo da minha angústia, após 18 anos de Moçambique onde a antropologia é outra coisa, real e realista. E como tal incapaz de me habituar aos tópicos e modos daqui, no fundo avesso àquilo a que Sherry Ortner depois tão bem veio chamar "dark anthropology", mas ainda por cima por cá vivida em registo pueril, rumo à irrelevância social da disciplina. Nessa noite eu ligara a verve, e também já muito gesticulava, ilustrando o meu desamparo com a fúria quotidiana que sentia diante dos e-mails profissionais que recebia, oriundos do centro de investigação que me acolhera, encabeçados e culminados com estes insuportáveis "Car@s" e "PrezadXs", folclorismo que tanto me arrepi(av)a. E o que ele se ria, bem como todos os outros convivas, mas esses já mais habituados ao meu arrepelar...

Decerto que foi aquela minha catarse, em noite de bom convívio, que o conduziu ao gesto que comigo veio a ter passado algum tempo, desafiando-me para que transitasse eu para o centro de investigação onde trabalhava ele, sítio mais adulto, concordávamos. Mas então eu já percebera que para mim era demasiado tarde para ingressar num rumo de investigação, o meu tempo passara, e deixei-me recusar o companheiro convite. A vida correu, voltei a vê-lo apenas numa lição que deu aquando da jubilação do seu grande amigo Eduardo Costa Dias. Entretanto fui viver no estrangeiro. E quando regressei a Portugal soube que o Rui estava muito doente, em estado incurável.

Há uns meses um amigo convidou-me para um encontro ao fim da tarde, na esplanada vizinha que nos é habitual. Quando lá cheguei deu-me um livro, pois na véspera entrara numa livraria, vira-o e considerara "de certeza que o Zezé vai gostar disto". E era este "Conhecer Para Dominar...", uma edição de 2021 (Parsifal) que eu desconhecia, assim surpreendendo-me. Finalmente estava publicado, e já 16 anos após a sua conclusão, pois Rui Pereira não correra a publicá-lo, decerto que por ter continuado desdobrado em múltiplos afazeres. E, com a sua experiência editorial e seus vastos contactos laborais, como lhe teria sido fácil fazer publicar esta sua obra...

Comovi-me, por aquela gentileza dadivosa do meu querido amigo Manuel Bento. Mas, acima de tudo, esse seu gesto sumarizava a centralidade deste trabalho - pois não tendo ele ligações à antropologia nem às ciências sociais, nem tendo conexão com Moçambique, foi-lhe evidente o interessante pertinente presente na obra de Rui Pereira. E logo lhe reconheceu a elegância e relevância (também) ali legada. E deixar essa marca é muito mais do que quase todos nós fazemos enquanto por cá. Até daqui a bocado.

Notas:

* Deixo aqui ligação a uma sua entrevista de 1996, 3 minutos de conversa com Carlos Pinto Coelho a propósito do número dedicado à Ilha de Moçambique, na qual Rui Pereira aborda a produção da "Oceanos".

** Aqui deixo ligação a uma entrevista televisiva de 30 minutos, concedida nessa condição de presidente do IPLB.

*** Avenida Brasil - a ligação dá acesso a todos os episódios da série televisiva.

****  Oceanos nº 30/31 - "Vieira"; nº 40 -"A Formação Territorial do Brasil", com coordenação editorial de Ângela Domingues; nº 41 - "A Construção do Brasil Urbano", coordenado por Walter Rossa; nº 42 - "Viver no Brasil Colónia", coordenado por Maria Beatriz Nizza da Silva; nº 43 - "Ourivesaria Luso-Brasileira do Ciclo do Ouro e dos Diamantes", coordenado por António Filipe Pimentel; nº 44 - "Portugueses no Brasil Independente", coordenado por Robert Rowland.  

A latere, será de comparar a excelência das publicações historiográficas da época sobre a relação com o Brasil (muita da qual induzida ou patrocinada pela CNCDP) com a que acontece hoje, no duplo centenário daquela independência. Bem como a pertinência do olhar analítico de então, distante da deriva de denuncionismo histórico que agora grassa. Provando que a historiografia e a sua absorção pública não percorre uma evolução unilinear...

***** Deixo ligação a filme (5'30'') sobre a inauguração da exposição "África, Diálogo Mestiço", contendo breves declarações de Rui Pereira.

21
Jul22

Manguitos de Rafael Bordalo Pinheiro

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Do Manguito e Outros Gestos na Obra de Rafael Bordalo Pinheiro, de Isabel Galhano Rodrigues e João Alpuim Botelho, edição do Museu Bordalo Pinheiro, 2022.

Rafael Bordalo Pinheiro é muito invocado, dito "fundador da caricatura nacional" - para além de minudências cronológicas que lhe encontram "antecessores" - respeitado, amado até, como "cidadão pleno e libertário" e nisso precioso "coleccionador de fraquezas" (como disse João Paulo Cotrim), dessas que lhes eram coevas e as quais dizemos ainda actuantes nesta nossa (gasta) Pátria.

Mas, na realidade, Bordalo é-nos algo desconhecido, até mesmo obscuro. Um pouco como aquele avoengo presente em tantas famílias, evocado em convívios sazonais através de episódios que se querem risonhos ou verdadeiros exempla, historietas mais ou menos inventadas acontecidas nos Dembos e Angónias, entre os seringueiros amazónicos, baleeiros atlânticos, filões de volfrâmios ou, também, naqueles das andanças "a salto", tudo isso sem que nós, a sobrinhada, de facto perceba quem foram tais estranhos aventureiros "tios-avôs" e o que lhes foi acontecendo e como se fizeram acontecer.

Muito desse afastamento se deve a que as obras de Bordalo eram contextualmente enraizadas, raras as personagens por ele criadas - e estas sempre simbólicas -, pois se tratava de um universo centrado na vida política e social portuguesa do fim do século XIX. E, sendo aqueles quadros quase sempre de uma rica encenação, pela pluralidade de elementos expostos, a sua fruição convoca vários níveis de leitura, apelando a um conhecimento mais amplo, seja das personalidades caricaturadas seja dos contextos de cada uma das investidas de Bordalo Pinheiro. Digo-o também por mim, herdeiro de três volumes da "Pontos nos ii" oriundos de bisavô paterno, cuja leitura exige uma nada apressada decifração.

E é devido a essa distância para com o mundo de Bordalo Pinheiro, encapuçada pela aparente similitude das invectivas aos poderes que dele queremos recuperar, que são preciosos os livros a ele dedicados, pela descodificação daqueles contextos, afinal mais diferentes deste hoje do que poderá parecer a leituras de mera adesão. Através deles poderemos perceber bem melhor as suas obras, e, sem juizos anacrónicos (auto)punitivos - como esses que tanto estão na moda -, fruir do verdadeiro encanto que a compreensão permite. Por exemplo, apreender a profusão das suas referências a África e às putativas colónias portuguesas percebendo-o também como "Romântico, positivista e mação, agarrado às colónias como a um simbólico pé-de-meia, boémio, sexista, sentimental e altivo, cioso da dignidade nacional, intuitivo e de repentes, Raphael Bordallo Pinheiro é de facto "o português tal e qual"", como, há mais de três décadas, escreveu Ângela Guimarães em "Bordallo: Face a um Mundo em Turbilhão"*, uma investigação dedicada à refracção no autor da mentalidade colonial e dos anseios africanistas da época, algo que Guimarães cumpriu sem se desviar por bacocos dislates punitivos mas sim olhando Bordalo como uma voz trangressora no seu tempo. Ou essa reedição aquando do centenário da sua morte (2005), com textos de João Paulo Cotrim, do "Álbum de Glórias", que é preciosa para a identificação de inúmeras personalidades caricaturadas e, também, por fazer reviver a prosa de Bordalo e seus corrosivos colaboradores (em particular a de Guilherme Azevedo e a de Ramalho Ortigão).

Enfim, várias obras têm sido dedicadas ao autor. Mas ainda assim é muito atractiva esta nova colecção que o Museu Bordalo Pinheiro começou agora a publicar, pequenos volumes (de pequenas tiragens, 250 exemplares) com incursões temáticas àquelas obras. Comecei por este Do Manguito e Outros Gestos na Obra de Rafael Bordalo Pinheiro, de Isabel Galhano Rodrigues e João Alpuim Botelho, apresentado este mês. O qual comporta uma bem conseguida mescla entre a importância da gestualidade como comunicação não-verbal intra-comunitária e a a genealogia do carismático "Zé Povinho", "[Essa] criança que tem hoje perto de cinquenta anos de idade! (...) Nele concorrem em conjunto todas as partes que nos enlevam e encantam no bom menino - casta inocência, temor de Deus, obediência a seus mestres, humildade, nariz por assoar, dor de barriga às segundas-feiras e santíssima ignorância. Aos carinhosos desvelos de sua extremosa mãe, a Carta, e de seu galhofeiro pai, o Parlamentarismo, se deve o estado miraculoso de infantilidade que tão vantajosamente recomenda este vulto à simpatia e ao espanto de todo o mundo" (Ramalho Ortigão, dito João Ribaixo no "Álbum de Glórias"), descrição bem apropriada a um "Zé Povinho" que Bordalo, apesar da simpatia que lhe votava, invectivava por não se erguer como Povo, preguiça que considerava desamor à Pátria.

Ora vem esta sopesada mescla a propósito do célebre gesto do manguito, o qual sempre associamos, no nosso real afastamento à obra de Bordalo Pinheiro, a uma prática regular, desabafo até contestatário, do "Zé Povinho". Para depois, neste livro, percebermos que, afinal, "No que diz respeito aos gestos obscenos, Rafael Bordalo Pinheiro é muito discreto, evitando representá-los de modo explícito" (49). Ou seja, e contrariamente à nossa ideia feita, não há manguitos (literais, no sentido gestual) nas caricaturas - esse registo mais brejeiro apenas veio a surgir na cerâmica de Bordalo. E foi esta, torna-se assim evidente, que veio a moldar a nossa apreensão, a nossa memória, do trabalho gráfico do autor.

Fosse apenas por isso, por este desvendar, este livro seria já precioso. Mas há bem mais assuntos de interesse - até porque profusamente ilustrado (como não poderia deixar de ser), com explanações sobre o conteúdo de cada uma das ilustrações. E o mesmo se aplicará, presumo, aos outros exemplares desta colecção, um fio que será uma constante "reintrodução" a Rafael Bordalo Pinheiro, esse filão de entendimento sobre, 

"N'este país de compadres; / E de ministros d'estado, / E de vates trovadores, / E de tocadores do fado, / E de casas de penhores, / E de grandes orçamentos, / E de namoros aos centos, / E de parvonezes todos, / E de cem milhões de alferes, / E de homens que são mulheres, / E de eleitoraes engodos; (...)" ["Neste país de compadres e d'eleitoraes engodos", em O António Maria, 28 de Junho de 1883, reproduzido na p. 50), 

pois, se difererenças há em relação àquela época, e imensas há, as semelhanças também vigoram. E muito as incompreendemos quando não conseguimos perceber os detalhes da obra de Bordalo, na tal descodificação. Ou seja, urge ir ler os pequenos volumes desta colecção, a preço bastante acessível.

* Eu só tenho uma fotocópia de texto prévio, "O Riso e a Angústia", que não tenho a certeza de corresponder totalmente ao livro publicado em 1997.

13
Jul22

O Regresso das Ditaduras?

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No Delito de Opinião o Pedro Correia questiona-se sobre os que indiferenciam democracias de ditaduras. Tal não se deve a um mau juízo ou a desconhecimento pois, por fluida que por vezes seja a distinção num ou outro caso real, essa indiferenciação é uma posição de princípio por parte daqueles que são adversários da democracia, os crentes das virtudes das ditaduras, e por estas ansiosos. Aquilo que por vezes pode acontecer é ficarem os amigos da democracia algo confundidos, desprovidos de argumentação diante da propaganda alheia e seus veementes ecos nos adeptos da autocracia. Isto porque os contextos ditatoriais não só têm conteúdos diferentes como estes se têm vindo a alterar. 

Nem que seja por isso, para aclarar algumas ideias que são mais pressentidas do que sistematizadas (falo por mim mas creio que não vou só nisso), é interessante ler este pequeno livro, "O Regresso das Ditaduras?" de António Costa Pinto, uma edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos, daquela tão simpática colecção pois segue ao custo de 3,15 euros por volume e se vende em pleno Pingo Doce - isto para além da(s) Feira(s) do Livro(s) se aproximar(em).

O livro já é uma breve (e acessível) súmula da literatura sobre o assunto, pelo que seria descabido fazer eu aqui uma súmula da súmula, mas ainda assim deixo como lamiré algumas ideias que lá colhi. O autor - que há quarenta anos foi meu professor de História Contemporânea e que julgo depois ter enveredado pelo rumo da ciência política - lembra que tem vindo a aumentar o número de Estados sob regimes ditatoriais, num refluxo da "terceira vaga de democratizações" cerca do fim do milénio. E constata que não só têm uma grande variedade institucional como se afirmou um modelo dominante, pois se [tra]"vestem como democracias" , surgindo como "regimes híbridos", "autoritarismos competitivos" - têm eleições multipartidárias e não têm censura rígida mas controlam a informação e manipulam os resultados eleitorais (p. 8). E encontra-lhes traços comuns: uma forte (e crescente) personalização do poder; uma vincada des-ideologização, comparativamente às ditaduras passadas (com particular contraposição face às comunistas e fascistas de XX) - ainda que convocando um nacionalismo e apelando à "ordem e progresso" como função dos regimes; a tal mimetização da parafernália institucional (parlamentos, eleições, "livre" imprensa, etc.) das democracias; uma menor repressão política face às do passado, de cariz mais cirúrgico e preventivo; uma censura de informação menos directiva, num "pluralismo limitado"; uma generalizada integração nos mecanismos de mercado como fundamento da ordem política (pp. 85-88). Mais ainda, recorda que estas ditaduras se vão estabelecendo muito mais pela erosão dos mecanismos democráticos do que por rupturas revolucionárias. Isto explica Costa Pinto em cerca de 80 páginas, num formato de livro de bolso. Justifica-se ler.

Deixo apenas uma adenda: o livro foi publicado em 2021. O seu autor é relativamente conhecido - não só como renomado académico mas também porque presença habitual na televisão. A edição é popular - barata, da Fundação ligada à marca Pingo Doce, de uma colecção que já faz parte do horizonte do público leitor. Ou seja, não é normal que livros destes sejam totalmente ignorados. Ora Costa Pinto recorre a vários exemplos de regimes autocráticos, pretéritos e actuais. Destes últimos na Europa fala da Bielorússia, da Turquia e da Hungria. Mas também recorre, e com insistência, à Rússia de Putin como exemplo da ditadura. Ora, é verdadeiramente surpreendente que um argumento destes num livro destinado ao grande público, de um autor conhecido, tenha passado incólume ao crivo crítico dos nossos generais Branco, Costa e Cunha, do activo ex-deputado António Filipe e do intelectual José Goulão, para não falar de outros do mesmo ramalhete. Distraídos estavam diante desta manobra, insidiosa, da propaganda capitalista...

24
Out21

Azulejos Pretos, de Pedro Bidarra

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(Pedro Bidarra, Azulejos Pretos, Guerra &  Paz, 2020)

Publicado em finais de 2020 este "Azulejos Pretos" parece adequado a este covidoceno, pois a sua acção decorre confinada nuns sanitários - uma latrina com águas correntes, comummente dita sanita ou, em português aburguesado,"retrete" ainda que nada retirada pois metida dentro de casa, tema esse abordado pelo autor com notória pertinência mas alguma incompletude -, à excepção de breves passeios higiénicos à sala feita pista de dança de um longa e sempre-a-mesma festa. A qual vem decorrendo desde a descolonização sita nos Olivais e que ressoa agora num presumível centro da Lisboa algo finória, onde se meneiam aos sons mais ou menos em voga sucessivas gerações de convidados.

Apenas lamento que o livro tenha sido apresentado pelo próprio editor (também) como um "roman à clef " (a descodificar), e ainda dito por crítico como peça de escrita "gonzo", aquela onde autor e protagonista (quantas vezes narrador) se mesclam, coisa não tão rara pelo que talvez desnecessária referência. Pois, entre tantos outros, já Flaubert reclamava ser ele próprio a senhora Bovary, ainda que se diga, história talvez apócrifa mas "bem encontrada", ter ele, nas vascas da sua agonia, resmungado com a ira que lhe restava que a puta ficaria por cá enquanto ele se ia desta para uma pior... Lamento  essas pistas de leitura pois temo que, devido a elas, muitos leitores tenham partido do conhecimento que terão do autor - um publicitário lisboeta afamado -, no intuito (se) reconhecerem entre o ror muitissimo mais vasto e espesso de afinal meros "símios" que naquele seu "colóquio" se agitam em poses culturais e vã verve. 

As 170 páginas são um carrocel de abúlicos - ainda que alguns camuflados de histriónicos -, um vasto rol de falsos e veros homossexuais, bebés de mamas firmes e outras já avoengas, dealers, padres na moda, obesos, poetas e artistas variados, modelos, até influenciadores e quejandos. Todos visitam o protagonista, aboletado nos sanitários nos quais distribui com prodigalidade doses de cocaína, enquanto monologa consigo mesmo, com acertada e acerada verrina, sobre o triste estado das artes, letras e gentes circundantes. Poder-se-ia dizer que parte a loiça toda. Ou, talvez melhor, parte os azulejos todos. Não que se projecte o protagonista num qualquer pedestal de "crítico", intelectual ou coisa que o valha. Pois segue amarfanhado pela "decadência biográfica", angustiado na sua "tonsura santantoninha", consciente até que desliza para a "cara de parvo", pequenas degenerescências que são até suaves avatares da sua condição de "ferreiro deformado e manco", um pobre Hefesto de trazer por casa, tudo nisso  prenunciando um final que só será oxímoro a quem acompanhou o livro como se ensaio moral fosse.

Os tais sanitários - de loiça, soalho e paredes negros - são-nos apresentados como uma nave espacial, a possível, que o protagonista elaborou para defender os restos da civilização, os "valores da urbanidade" através do exercício da "complexa mecânica da equidistância", tarefa que persegue com evidente frenesim, na sua constante disponibilidade para ofertar as por todos desejadas doses de cocaína, num fazer o bem sem olhar a quem, assim um exercício cristão e também civilizador. Mas (sacra) equidistância essa, como o comprovará o infausto final, que é impossibilitada pela fateixa nasal a que está obrigado, e que o consigna ao pântano nada oceânico deste todo vácuo, de poses e anseios.

Ou seja, não há saída. Nem possibilidades.

Azulejos Pretos é um belo livro. Que todos estes símios deveriam ler.

 

31
Ago21

Lisboa Deserta

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(Beco da Corvinha, Lisboa)

Lisboa Deserta / Lisbon Deserted (edição bilingue) é  um livro muito característico, nisso curioso e exemplar testemunho de época. A sua autora, Maria Margarida Chaves Marques, é uma fotógrafa amadora e nele congregou uma colecção de fotografias feitas durante o primeiro confinamento lisboeta. Mas para além do excêntrico estado da cidade de então o que vive no livro é um exemplo das vivências de quem ali se acoitava. 

Luso-moçambicana - e durante décadas funcionária de organização internacional - a pandemia como que bi-confinou a autora, acantonando-a como a todos nós mas também ainda mais apartando-a de família próxima e amigos, pois estes espalhados pelo mundo, desde Maputo, onde reside, a tantos outros lugares. E assim o que aqui temos são verdadeiros postais ilustrados, enviados - via este correio de hoje que são as redes sociais - aos seus tão distantes. Torna-se qual um diário, encetado quando o encerramento doméstico se lhe tornou (e a tantos de nós) insuportável, e se permitiu aos passeios higiénicos que então nos eram autorizados ainda que não verdadeiramente recomendados: "Hoje é Domingo de Páscoa... Com um dia tão bonito lá fora, e cansada de estar fechada em casa desde 18 de Março não resisti a ir dar um passeio curtinho pelos arredores. Como é bela Lisboa, mesmo deserta e despida das suas gentes! Desejo a todos uma Páscoa Feliz", escreveu em 12 de Abril, e nisso começa o livro. E continuou passeando, fotografando nas alvoradas. No livro deixa-nos memória de quinze dias desse mês (as últimas fotos são de 27 de Abril), salpicadas de pequenas notas da sua vivência, detalhes refracções do que ia vergando a cidade, mas despojadas de reflexões abrangentes sobre todo aquele processo, num registo plácido que era a natureza dos tais velhos postais ilustrados: "Hoje acordei com a ideia fixa de ir à Manteigaria do Chiado comprar pastéis de nata para o nosso pequeno-almoço. Bati com o nariz na porta e nem imaginam a frustração. Até a célebre Manteigaria fechou!". 

Habitando a autora nas cercanias da Sé estes ecos dos seus passeios pedonais mostram a cidade antiga embrenhada no vazio humano, o Tejo e alguns laivos da Outra Banda (aquela à qual, por vezes e se bem-disposto, ainda chamo, jocoso, de Catembe, carinho saudoso que a autora decerto compreenderá), para além das praças mais monumentais. Mas, mais do que tudo, traz os recantos, becos e vielas desses velhos bairros circundantes. Todos, sempre, envolvidos no silêncio do vazio humano - com uma ou outra excepção, a que a fotógrafa foi sensível, captando a afinal incessante, ainda que reduzida, contrução civil. Actuante numa ou outra reabilitação do edificado, assim reafirmando que nada findara mas apenas nos suspendêramos.

Por tudo isto livro é uma preciosa memória.

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Lisboa Deserta / Lisbon Deserted, de Maria Margarida Chaves Marques, edição do autor, 2020.

 

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Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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