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A última edição da revista Etnográfica inclui um In Memoriam dedicado a Rui Mateus Pereira, morto em 2020 - com textos de Adolfo Yáñez Casal, Ana Isabel Afonso, Frederico Delgado Rosa e Laura Almodôvar, colegas que lhe foram próximos e que com ele constituiram amizades. Tive com o autor um relacionamento muito mais distante e esparso. Mas, e até porque a nossa interacção não se enquadrou no espaço universitário, aqui deixo a minha memória. Na qual, e porque escrita em blog próprio, não tenho o espartilho dos limites de caracteres - comum em publicações institucionais - nem prescindo do exclusivo tom pessoal.
Conheci o trabalho de Rui Pereira quando em 1992 comecei o primeiro mestrado dito de "Estudos Africanos" no actual Centro de Estudos Internacionais do ISCTE. Decidira trabalhar na "cintura matrilinear" de Moçambique e na época eram escassos os antropólogos portugueses a investigarem naquele país (Yañez Casal, Feliciano e ele - só mais tarde vim a conhecer o trabalho de Medeiros), pelo que a atenção sobre eles logo se impunha. E muito me era importante a temática que ele erigira - pois o mestrado incidia em Estratégias de Desenvolvimento, o que tornava imprescindível a sua reflexão sobre as práticas e os objectivos da nossa "antropologia aplicada" naquela colónia. Da qual resultara a sua prova de aptidão científica e pedagógica na Universidade Nova em 1986, "A Antropologia Aplicada na Política Colonial Portuguesa do Estado Novo. A Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português (1956-1961)", um produto excêntrico no panorama intelectual nacional daquela época. E que ele já divulgara em alguns artigos e comunicações, principalmente em duas publicações na então pujante Revista Internacional de Estudos Africanos (nº 4-5 e nº 10-11). Ou seja, e como era hábito e necessidade naquela época, acumulei com afã fotocópias dos seus textos.
Em 1995, já regressado do meu primeiro trabalho de campo em Moçambique, enquanto tentava terminar a escrita da minha tese de mestrado fui trabalhar na Comissão dos Descobrimentos (CNCDP), quando António Manuel Hespanha substituiu Vasco da Graça Moura como Comissário-Geral. Foi então que conheci Rui Pereira, ali uma figura proeminente, e que logo me pareceu ser uma das hastes da tripeça que suportara o até frenético, entusiástico e tão competente exercício da casa, articulando com Graça Moura e o comissário-adjunto, Faria Paulino - que também estava de saída da instituição -, o qual era um excelente produtor cultural, literalmente reverenciado pelo pessoal técnico. E foi relevante o que aconteceu no período subsequente: Hespanha surgiu com um projecto um pouco diferenciado, recorrendo uma historiografia mais contemporânea, atenta - e nisso sedimentada - a visões mais críticas de analíticas, mas sem abdicar da espectacularidade exigível àquela função comemorativa. E optou por uma direcção mais colegial, nela integrando historiadores (e não só) de excelência dotados de funções executivas. Ora nessa transição, implicando um diferente modus faciendi, Rui Pereira manteve-se como elemento fundamental - tal como veio a acontecer com o comissário seguinte, Joaquim Romero de Magalhães -, o que sublinha a sua extrema capacidade intelectual, de planificação e execução. E se disso memória física seja necessária, para o comprovar está aí a belíssima e rica colecção da revista "Oceanos", verdadeiro ex-libris da instituição, a qual ele continuou a dirigir, entre várias outras tarefas.*
Lembro-me da minha expectativa ao ser-lhe apresentado naquele final de 1995, e de no momento me ter imbuído, até involuntariamente, de um estatuto de mais-novo, de interesse respeitoso, até cerimonioso. Rui Pereira impressionava, pois na sua robustez e vigor era também um indivíduo bem apessoado, e sobre tudo isso era notório ser alguém cioso do seu espaço face aos homens, nisso desprovido de "falas mansas" e falsas amabilidades, tão típicas dos corredores institucionais. E assim, mesmo sendo eu também antropólogo, em investigação sobre Moçambique e da mesma geração - pois apenas meia dúzia de anos nos apartavam -, deu-me as duas braçadas de distância do tratamento na terceira pessoa. É certo que tratava com essa frieza respeitosa a maioria dos funcionários, tal como era evidente que o acolhimento a quem chegava com a nova direcção (mesmo sendo eu apenas um técnico) era cuidadoso - até pela transição política que então acontecia -, e talvez tivesse laivos da alguma relutância, até rivalidade (?), que então assomava entre os antropólogos oriundos da Nova (como ele) e do ISCTE (como eu). Mas a tal "terceira pessoa" marcava, acima de tudo, o curial relacionamento professor-aluno, o cada um no seu estrado que entendeu apropriado para a nossa interlocução.
Os meses foram passando e breves conversas nos foram surgindo. Cruzámos as nossas histórias de Maputo, as sentidas e as pitorescas, os conhecidos comuns que lá havíamos feito, os textos lidos, o Moçambique então actual tal como o apreendíamos. E ele falava com desvelo das suas conversas com Margot Dias, exultava com o seu acesso aos relatórios secretos da equipa de Jorge Dias (que viria a publicar como anexos à sua tese de doutoramento). E avisava-me, com "saber de experiência feito" - pois tinha um doutoramento encetado -, dos pantanosos perigos de interrompermos a escrita das teses ou de a subalternizarmos face a outros compromissos...
Em 1996 fui a Moçambique, incumbido por Hespanha de esboçar um rol de actividades possíveis naquele país. Quando voltei contactei Rui Pereira para lhe perguntar a opinião sobre o que preparara: eximiu-me a elogios e a... críticas. Entre outras publicações propus a reedição comentada de "Etiópia Oriental", de frei João dos Santos, e de "Os Macondes de Moçambique" de Jorge Dias et al, "o primeiro livro que lá escrevemos e o último", exagerava eu... Passados uns anos, já vivendo em Maputo, vim a Lisboa e visitei a CNCDP. O "Etiópia Oriental" havia sido publicado, com uma introdução de Manuel Lobato, mas de "Os Macondes..." ainda não havia notícia, tendo-me sido dito que as delongas se deviam a dúvidas sobre a quem incumbir o trabalho crítico. Respondi sem hesitar, até para surpresa dos interlocutores - nisso denotando-se o recorrente desconhecimento dos trabalhos entre a corporação dos historiadores e a dos antropólogos -, ser óbvio que não havia no país (e alhures) alguém mais adequado do que Rui Pereira para tal tarefa. E assim veio a acontecer, tendo ele feito a tão importante introdução à reedição de "Os Macondes", a qual infelizmente se restringiu ao primeiro volume, pois descontinuada devido à extinção da CNCDP. Alongo-me neste episódio para salientar o que então tanto me impressionou, aquilo de Rui Pereira - mesmo sabendo desde o início da existência do projecto de reedição de uma obra que lhe era fundamental e tão querida - não ter tido, "intramuros" ou por interposta via, qualquer estratégia para que lhe fosse atribuído um trabalho que tanto lhe interessaria, intelectual e estatutariamente. Uma postura peculiar, para além de exemplar.
Alguns anos depois, em 2003, surgiu a febre bloguística no país. E ele abriu o seu Companhia de Moçambique (publicado entre Julho de 2003 a 2005, e que teve um breve ressuscitar em 2009-2010). Dedicado exclusivamente à história de Moçambique (e contactável por um endereço electrónico de nome "Chinde", a povoação no delta do Zambeze, nisso denotando o seu recatado carinho, até identitário, pelo país), o blog continha uma belíssima e cuidada dimensão iconográfica - centrada na filatelia colonial -, mas seguia absolutamente desprovido dessa "nostalgia colonial", quantas vezes impregnada de saudosismo revanchista, que inunda(va) os sítios digitais que se dedica(va)m ao memorialismo "africanista". E referia-se ainda, em concisos textos, sem derivas ensaísticas ou polemistas, a várias dimensões do regime colonial, algumas das quais agora - 20 anos depois - são publicamente abordadas de modo tonitruante e menos sedimentado: as heterogéneas características do colonialismo português, a refutação da especificidade "luso-tropical", a relevância do comércio escravista, etc. E apesar dessa peculiaridade temática, do seu (aparente) afastamento da reflexão política - essa tão dominante no bloguismo nacional -, e da discrição do seu autor, o Companhia... tornou-se um blog bastante procurado e presença recorrente nas interacções daquele meio (em especial nas então célebres e requestadas "colunas de links").
Nessa época o nosso escasso e esparso diálogo algo se reacendeu, enquanto membros da chamada "blogosfera", feito de raras mensagens e ocasionais comentários - nos quais ele mostrava continuar atento a Moçambique. Como quando comigo resmungou por ter eu ecoado no meu ma-schamba as opiniões expressas num livro de William Minter, o norte-americano compagnon de route da Frelimo, cujas perspectivas considerava ele (e bem) serem enviesadas, na senda de algum marxismo anglófono dos anos 60s, demasiado embrenhado na causa anticolonial e no vitupério antiportuguês para produzir visões lúcidas sobre os processos históricos. Um pequeníssimo detalhe, mas precioso por demonstrar a constante disciplina da sua visão analítica, imune a maximalismos militantes.
Entretanto a Comissão dos Descobrimentos fora extinta e Rui Pereira ocupara a presidência do então Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.** Em 2004 contactou-me, anunciando que nessa condição se deslocaria a Maputo inserido na visita oficial do Primeiro-Ministro Durão Barroso. Combinámos um jantar em minha casa, o qual acabaria por ser alargado a um punhado de quadros do nosso ministério da Cultura e a amigos também integrantes dessa comitiva. Foi nesse dia que me apareceu com o "tu", então já entre quarentões. E também com a oferta do excepcional "Viva o Povo Brasileiro", de Ubaldo Ribeiro, acompanhado da dedicatória verbal "para veres que há mais sítios para te encantares", um "o mundo é muito grande!" que era uma evidente (e lúcida) convocatória para que me descentrasse eu de Moçambique, que tanto me monopolizava.
Esse seu encanto pelo Brasil era algo já antigo, sinalizado na sua participação - subentendo que de cariz institucional - no tão interessante livro "Viagem Philosophica: Uma Redescoberta da Amazônia" (1992), a celebração dos 2 séculos da expedição amazónica do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira. Bem como na sua actuação, nesse mesmo 1992 - ano da influente Exposição de Sevilha, que foi também marco nas comemorações portuguesas -, como comissário executivo da grande exposição "Brasil nas Vésperas do Mundo Moderno", cuja comissão científica também integrara, conjuntamente com Jill Dias e Benjamim Enes Pereira. Interesse esse que viera a desembocar na realização da bem conseguida série televisiva "Avenida Brasil",*** que escrevera com Francisco José Viegas e fora apresentada pela RTP durante 2000. E o qual presumo se havia incrementado através da produção dos excelentes números da "Oceanos" - então já sob o magnífico grafismo da TVM Designers (Luís Moreira e Emílio Vilar), que lhe ficou imagem de marca - produzidos para a celebração dos 500 anos da viagem de Álvares Cabral: desde logo o especial de 1997 dedicado a "Vieira" e os cinco publicados em 1999 e 2000.****
Mas o relevante dessa viagem a Maputo foi a sua dimensão institucional. Havia já anos que organismos estatais portugueses, e até membros dos governos, se desdobravam em visitas e declarações de intenções em apoiar o Arquivo Histórico de Moçambique (AHM), o qual após a independência havia congregado a maioria dos fundos documentais existentes no país, e desde então havia subsistido com galhardia mas com condições infra-estruturais crescentemente deficitárias. Era já evidente que o AHM necessitava de novas instalações. E Rui Pereira, na sua posição de Presidente do IPLB, rompeu com a habitual retórica solidária e teve a arte de articular algumas instituições estatais portuguesas, impulsionando um apoio congregado que foi decisivo nessa transferência e, assim, na preservação da memória histórica moçambicana. Mais ainda, consciente de que as funções do IPLB eram também de actuação no apoio às redes de leitura pública da CPLP, Rui Pereira quis encetar um ambicioso programa de cooperação com as bibliotecas provinciais e distritais moçambicanas - além de dinamizar feiras do livro de grande dimensão a efectuar em capitais provinciais. Mas para esse projecto de apoio institucional as dificuldades seriam intransponíveis, dada a fragilidade das infra-estruturas moçambicanas, as quais seriam de facto incapazes de absorver os apoios materiais que ele, energicamente, se predispunha a congregar. E foi isso que lhe vim a dizer, um doloroso conselho informal quando me pediu a opinião. Todo este seu empenho, energia e criatividade no estabelecimento de uma verdadeira "cooperação cultural" com Moçambique poderá, à distância, parecer algo vulgar. Mas foi mesmo um caso raro, excepcional até, de competência no desempenho de funções públicas no âmbito da "cooperação", de ajuda pública ao desenvolvimento. E, também, de evidente e desinteresseiro apreço por Moçambique.
Foi nessa época, em 2005, que defendeu o seu doutoramento "Conhecer para dominar : o desenvolvimento do conhecimento antropológico na política colonial portuguesa em Moçambique, 1926-1959", uma continuidade da sua anterior prova académica. Fora uma investigação sobre as várias etapas da prática disciplinar na colónia, decorrida durante 18 anos pois intermediada pela azáfama de múltiplas tarefas laborais. Mas esse longo período não obscurecia o seu estatuto pioneiro, em que através da História da Antropologia nacional em Moçambique enunciava as características reais, e heterogéneas, do regime colonial português em África. Nisso desnudando as tensões entre visões assimilacionistas e segregacionistas, e de como estas se articulavam com o traço fundamental colonial, a frenética apropriação de trabalho forçado, nisso desmontando a visão "luso-tropical" ainda tão vigente - e actualizada na retórica lusófona desta II República.
E para isso fora lúcida vantagem de Rui Pereira o ter baseado a sua análise na concepção de "situação colonial" (Balandier), que lhe permitiu analisar as efectivas relações de poder que balizavam e norteavam as diferentes modalidades daquele exercício disciplinar. E com isso escapando às habituais reificações devidas às influências das visões oriundas dos "estudos culturais" - ainda que a estas não fosse nem alheado nem avesso (por exemplo o seu artigo "A remissão da arte tribal" leva como epígrafe uma citação de Edward Said) -, que tanto tendiam (e tendem) a encontrar os processos históricos como refracções de "categorias" mentais "exploratórias", credoras de vigorosas "denúncias" pelos "activistas" académicos. Assim, Rui Pereira, e enquanto demonstrava através do exercício da antropologia os traços fundamentais do colonialismo nacional, soube dizer - ao invés do histrionismo denunciatório que já então grassava alhures, e que depois veio a acampar em Portugal -, com pertinência realista: "Em vez de ser julgada como um anátema da Antropologia portuguesa, a situação colonial deve ser entendida como o processo catalisador que proporcionou um salto qualitativo ímpar aos estudos antropológicos em Portugal: a sua aplicabilidade e a sua autonomização científica e académica." (49-50).
Enfim, e sem preocupações de exaustividade bibliográfica, o que encontrei (e ainda encontro) neste "Conhecer Para Dominar", é o membro pioneiro de um tridente que naquela época desmontou os mitos da "especificidade portuguesa", acompanhado pela tese de mestrado de Cláudia Castelo "O Modo Português de Estar no Mundo”. O Luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961)" (julgo que de 1998) e de doutoramento em 2005 de Cristina Nogueira da Silva, "Constitucionalismo e Império: a Cidadania no Ultramar Português", trabalhos com diferentes enfoques mas que contribuíam para o calafetar de uma visão analítica já suficiente.
Nos anos subsequentes nenhum contacto tive com ele. Desde Maputo soube que ocupava funções na câmara de Lisboa. E presumia-o algo associado a algumas iniciativas dessa autarquia de que ia tendo notícia, como aquele curioso ciclo de três exposições de colecções privadas de arte africana, a de Eduardo Nery, a de José Berardo e a de José de Guimarães, sendo que nesta última, "África, Diálogo Mestiço", foi dele a curadoria.***** Tal como foi co-curador, conjuntamente com Alexandre Pomar, da exposição "As Áfricas de Pancho Guedes: a colecção de Dori e Amâncio Guedes", no ano em que fora também apresentada a monumental "Pancho Guedes, Vitrivius Mozambicanus", fazendo daquele 2009 o ano do grande arquitecto de Maputo (Lourenço Marques), justificada homenagem em vida a que Rui Pereira teria de se associar.
Quando voltei para Portugal soube que ele havia transitado para a administração estatal. Pouco depois desse meu regresso tive de ir ao Porto. Desci na estação ferroviária de Gaia, subi a rua e entrei numa tasca para manducar. E ali mesmo vi no telejornal uma alargada notícia sobre a sua demissão de um qualquer posto, promovido que fora ao estatuto de bode expiatório. Não falava com ele há anos mas - num arremedo daquela rusticidade a que chamamos máscula, e até porque sabedor, à minha pequena escala, do que custa, diga-se o que se disser, passar por tal função - deu-me para lhe telefonar. Atendeu, até surpreendido. Disse-lhe "estou ao balcão de uma tasca de Gaia, a beber uma imperial, a comer um rissol e a ver-te ser queimado no largo do pelourinho... É só para te dar um abraço! Até breve". Ele riu-se, resmungou - estava, justificadamente, macerado - e ainda se deixou perguntar dos meus rumos, que desconhecia. Ficámos de nos encontrar, o que veio a acontecer algumas vezes - por exemplo na apresentação do "O Império da Visão", organizado por Filipa Lowndes Vicente, livro com tantos artigos e autores que a sala estava cheia, e ele emparelhou-se-me, ainda eu recém-retornado à capital do tal ex-império e nela excêntrico de has been, para me fazer um muito bem-humorado "quem é quem"...
Um dia fui com colegas - "moçambicanólogos" - à Cinemateca ver filmes laurentinos dos anos 60. No final escapámos ao fastidioso debate, ele viu-nos em fuga e associou-se. Fomos jantar a Campo de Ourique, onde ele vivia, nós os dois com a Ana Bénard da Costa, o Elísio Jossias e a Isabel Galhano Rodrigues. Foi um convívio muito divertido, talvez mesmo porque inesperado, que são assim os melhores... O Rui Pereira espicaçou-me, perguntando-me como me sentia eu por cá, ainda por cima metido em tentativas doutorais. Fui-lhe dizendo da minha angústia, após 18 anos de Moçambique onde a antropologia é outra coisa, real e realista. E como tal incapaz de me habituar aos tópicos e modos daqui, no fundo avesso àquilo a que Sherry Ortner depois tão bem veio chamar "dark anthropology", mas ainda por cima por cá vivida em registo pueril, rumo à irrelevância social da disciplina. Nessa noite eu ligara a verve, e também já muito gesticulava, ilustrando o meu desamparo com a fúria quotidiana que sentia diante dos e-mails profissionais que recebia, oriundos do centro de investigação que me acolhera, encabeçados e culminados com estes insuportáveis "Car@s" e "PrezadXs", folclorismo que tanto me arrepi(av)a. E o que ele se ria, bem como todos os outros convivas, mas esses já mais habituados ao meu arrepelar...
Decerto que foi aquela minha catarse, em noite de bom convívio, que o conduziu ao gesto que comigo veio a ter passado algum tempo, desafiando-me para que transitasse eu para o centro de investigação onde trabalhava ele, sítio mais adulto, concordávamos. Mas então eu já percebera que para mim era demasiado tarde para ingressar num rumo de investigação, o meu tempo passara, e deixei-me recusar o companheiro convite. A vida correu, voltei a vê-lo apenas numa lição que deu aquando da jubilação do seu grande amigo Eduardo Costa Dias. Entretanto fui viver no estrangeiro. E quando regressei a Portugal soube que o Rui estava muito doente, em estado incurável.
Há uns meses um amigo convidou-me para um encontro ao fim da tarde, na esplanada vizinha que nos é habitual. Quando lá cheguei deu-me um livro, pois na véspera entrara numa livraria, vira-o e considerara "de certeza que o Zezé vai gostar disto". E era este "Conhecer Para Dominar...", uma edição de 2021 (Parsifal) que eu desconhecia, assim surpreendendo-me. Finalmente estava publicado, e já 16 anos após a sua conclusão, pois Rui Pereira não correra a publicá-lo, decerto que por ter continuado desdobrado em múltiplos afazeres. E, com a sua experiência editorial e seus vastos contactos laborais, como lhe teria sido fácil fazer publicar esta sua obra...
Comovi-me, por aquela gentileza dadivosa do meu querido amigo Manuel Bento. Mas, acima de tudo, esse seu gesto sumarizava a centralidade deste trabalho - pois não tendo ele ligações à antropologia nem às ciências sociais, nem tendo conexão com Moçambique, foi-lhe evidente o interessante pertinente presente na obra de Rui Pereira. E logo lhe reconheceu a elegância e relevância (também) ali legada. E deixar essa marca é muito mais do que quase todos nós fazemos enquanto por cá. Até daqui a bocado.
Notas:
* Deixo aqui ligação a uma sua entrevista de 1996, 3 minutos de conversa com Carlos Pinto Coelho a propósito do número dedicado à Ilha de Moçambique, na qual Rui Pereira aborda a produção da "Oceanos".
** Aqui deixo ligação a uma entrevista televisiva de 30 minutos, concedida nessa condição de presidente do IPLB.
*** Avenida Brasil - a ligação dá acesso a todos os episódios da série televisiva.
**** Oceanos nº 30/31 - "Vieira"; nº 40 -"A Formação Territorial do Brasil", com coordenação editorial de Ângela Domingues; nº 41 - "A Construção do Brasil Urbano", coordenado por Walter Rossa; nº 42 - "Viver no Brasil Colónia", coordenado por Maria Beatriz Nizza da Silva; nº 43 - "Ourivesaria Luso-Brasileira do Ciclo do Ouro e dos Diamantes", coordenado por António Filipe Pimentel; nº 44 - "Portugueses no Brasil Independente", coordenado por Robert Rowland.
A latere, será de comparar a excelência das publicações historiográficas da época sobre a relação com o Brasil (muita da qual induzida ou patrocinada pela CNCDP) com a que acontece hoje, no duplo centenário daquela independência. Bem como a pertinência do olhar analítico de então, distante da deriva de denuncionismo histórico que agora grassa. Provando que a historiografia e a sua absorção pública não percorre uma evolução unilinear...
***** Deixo ligação a filme (5'30'') sobre a inauguração da exposição "África, Diálogo Mestiço", contendo breves declarações de Rui Pereira.