Apesar de ter uma Bertrand à porta de casa tornou-se-me raro entrar em livrarias. Não compro livros, atafulhadas que me estão as estantes e desatafulhada que está a carteira. E, também, porque perdi o hábito de me demorar a cobiçar capas, coisa até malquista durante aquele doentio período de racionamento de clientes, entradas contabilizadas com gente até impaciente à espera da sua vez. Mas há dias passei por um escaparate e lá vi uma recente edição do "Cristo com Carabina ao Ombro" de Ryszard Kapuscinski, autor muito louvado, do qual li vários livros com algum agrado mas que, ainda assim, sempre me parece um pouco sobrevalorizado (botei mais ou menos isso aqui). Ainda assim folheei o livro - penso que já se pode, terá deixado de ser considerada uma acção voluntária de disseminação viral -, uma colectânea que ecoa andanças do autor repórter por paragens em momentos revolucionários. E notei que o final é um curto capítulo dedicado a Moçambique, notas da época da independência. Li-as ali mesmo, em apressada diagonal. Poderão ter interesse para quem nada saiba daquele período no país mas são, em si mesmas, algo desinteressantes.
Mas ainda a devolver o livro ao escaparate uma qualquer associação de ideias recordou-me um livro de Sebastião Salgado, o qual, na sua tamanha diferença, algo se assemelha com aquele. Trata-se de um opúsculo, quase "de bolso", o “Um Fotógrafo de Abril”. Foi uma publicação da Caminho, integrando uma interessante colecção de pequenos livros que a editora realizou em 1999, destinada às comemorações do quarto de século do 25 de Abril. O livro tem exactamente 25 fotografias - algumas algo prejudicadas pelo pequeno suporte, pois apresentadas em dupla página e algo coarctadas pela dobra (como uma magnífica imagem de militares manifestando-se no Porto em Setembro de 1975, que merecia melhor apresentação).
14 dessas fotografias foram feitas em Portugal, após a revolução de 1974, incidindo sobre manifestações políticas, festas religiosas e a reforma agrária. Deixo aqui duas, excelentes e imensamente significativas da complexidade do país (e muito prejudicadas pela reprodução que delas faço): dois militantes na sede do PCP em Aljustrel, e um casal em peregrinação em Lamego, ambas de Setembro de 1975.
Outras quatro foram feitas em Angola entre Julho e Novembro de 1975. E, lá está a razão da tal associação de ideias, tem ainda sete fotografias feitas em Moçambique ainda em 1974, com a retirada de militares portugueses no Cabo Delgado, a chegada de guerrilheiros da Frelimo a Lourenço Marques, e termina com a tomada de posse de Joaquim Chissano como primeiro-ministro do governo de transição, ladeado por Mariano Matsinhe (se não estou errado), à esquerda, e Óscar Monteiro.
Enfim, o livro é uma pequena pérola. Deixo ainda mais uma (pobre) reprodução: "Retornados das colónias no aeroporto de Lisboa, Outubro de 1975". Talvez agora possamos regressar a ela e perceber o seu sub-texto. Salgado é um homem de ideologia arreigada mas é, acima de tudo, um grande olhar de fotógrafo. E foi que este funcionou, encontrando naquela amálgama de refugiados esta imagem que nos poderá denotar não só a pluralidade do universo que então se acoitava na então já não Metrópole, como também a complexidade dos processos históricos que o haviam constituído. Mas a miopia maximalista logo tudo reduziu aos tais "retornados". Nisso alisando-os, descontextualizando-os, desproblematizando-os. Desumanizando-os. Para sossego do Portugal de então. E do actual, no qual ainda reina esse preguiçoso, de culposo pois culpabilizador, olhar "distraído".