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Nenhures

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(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

Passam hoje exactamente cinco anos sobre a segunda vaga dos incêndios de 2017 no distrito de Viseu, entre o concelho de Tondela e seus limítrofes, devastando a "Beira Alta", dessa vez causando mais de 40 mortos, a somar aos mais de 60 que haviam perecido durante o Verão anterior. Logo depois o meu amigo Miguel Valle de Figueiredo percorreu aquela região, que bem conhece pois os seus ascendentes dali eram oriundos, e durante três meses calcorreou mato, lugares, aldeias, vilas, encarou a gente que ali teima, desta ouvindo do horror de então e da violência posterior, advinda da arrogância burocrática de quem vem podendo - a memória desse trabalho foi publicada na "National Geographic", com texto de Gonçalo Pereira Rosa.

Nisso fotografou as "cinzas" promovidas pela fúria dos elementos, o desnorte nacional e a incúria estatal,. Enquanto uns, urbanos, se menearam vaidosos insanos, lamentando-se "de não ter tirado férias" ou, pelo contrário, "iam de férias" e pediam para "não os fazerem rir" a propósito destes e doutros assassinos fogos, e se gabavam de se preparar para as "cheias de inverno", inaugurando casas refeitas com dinheiro alheio, apregoando ter revolucionado as florestas como nunca desde a Idade Média, e se faziam entrevistar em quartel de bombeiros, o Miguel foi para aquele lá, verdadeiros "salvados" de um país que insiste em desistir de o querer ser por via do apreço que vota aos tocos que julga gente, e até elegível.

Dessas suas andanças, vindas do seu fervor de fotógrafo e do seu dever de cidadão, produziu um manancial iconográfico, uma verdadeiro arquivo para alimentar uma memória social do acontecido, deste sofrido que a história recente do país se mancomunou para gerar. E organizou a exposição "Cinzas" - paisagens, pois o pudor impeliu-o a evitar mostrar os retratos feitos dos violentados , 42 fotografias. A qual teve itinerância nacional. 

Agora, para assinalar os cinco anos sobre aquele momento a exposição é hoje mesmo, 15.10.2022, reapresentada em Tondela, no seu Quartel dos Bombeiros Voluntários, - concelho então tão devastado (só nele arderam mais de 400 casas, 219 das quais primeiras habitações). Será muito pedagógico ir lá ver o horror e desperdício que o mvf vagorosa e condoidamente captou. Para que não o esqueçamos. Mas também para que tomemos consciência de que, como diz agora o fotógrafo, "5 anos sobre o terrível incêndio que devastou grande parte da Beira Alta e, como se viu depois em Monchique ou mais recentemente na Serra da Estrela, independentemente de tudo (i.e. alterações climáticas), pouco se aprendeu, ou melhor, o que se aprendeu não serviu de muito na prevenção destas tragédias."

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

 

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(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

Soube aqui que no actual calendário laico, o vigente, ontem foi o Dia da Fotografia. Eu, "grumpy old thing", como ainda agora me definiu uma querida e tão bela amiga - devido, ainda que presuma que não em exclusivo, a este postal -, preferiria que fosse o Dia dos Fotógrafos, os desse ofício abalroado por todos nós, pataratas munidos de instrumentos avalizados e olhares descalibrados.

Também por isso, mas não só, celebro o dia partilhando esta fotografia feita (sublinhe-se o "feita" enfrentando-se esta era do "tirada") pelo meu amigo Miguel Valle de Figueiredo , oficial graduado do ofício, e nisso uma lente sem cedências, aqui a olhar na ilha Reunião.

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Apesar de ter uma Bertrand à porta de casa tornou-se-me raro entrar em livrarias. Não compro livros, atafulhadas que me estão as estantes e desatafulhada que está a carteira. E, também, porque perdi o hábito de me demorar a cobiçar capas, coisa até malquista durante aquele doentio período de racionamento de clientes, entradas contabilizadas com gente até impaciente à espera da sua vez. Mas há dias passei por um escaparate e lá vi uma recente edição do "Cristo com Carabina ao Ombro" de Ryszard Kapuscinski, autor muito louvado, do qual li vários livros com algum agrado mas que, ainda assim, sempre me parece um pouco sobrevalorizado (botei mais ou menos isso aqui). Ainda assim folheei o livro - penso que já se pode, terá deixado de ser considerada uma acção voluntária de disseminação viral -, uma colectânea que ecoa andanças do autor repórter por paragens em momentos revolucionários. E notei que o final é um curto capítulo dedicado a Moçambique, notas da época da independência. Li-as ali mesmo, em apressada diagonal. Poderão ter interesse para quem nada saiba daquele período no país mas são, em si mesmas, algo desinteressantes.

Mas ainda a devolver o livro ao escaparate uma qualquer associação de ideias recordou-me um livro de Sebastião Salgado, o qual, na sua tamanha diferença, algo se assemelha com aquele. Trata-se de um opúsculo, quase "de bolso", o Um Fotógrafo de Abril”. Foi uma publicação da Caminho, integrando uma interessante colecção de pequenos livros que a editora realizou em 1999, destinada às comemorações do quarto de século do 25 de Abril. O livro tem exactamente 25 fotografias - algumas algo prejudicadas pelo pequeno suporte, pois apresentadas em dupla página e algo coarctadas pela dobra (como uma magnífica imagem de militares manifestando-se no Porto em Setembro de 1975, que merecia melhor apresentação).

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14 dessas fotografias foram feitas em Portugal, após a revolução de 1974, incidindo sobre manifestações políticas, festas religiosas e a reforma agrária. Deixo aqui duas, excelentes e imensamente significativas da complexidade do país (e muito prejudicadas pela reprodução que delas faço): dois militantes na sede do PCP em Aljustrel, e um casal em peregrinação em Lamego, ambas de Setembro de 1975. 

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Outras quatro foram feitas em Angola entre Julho e Novembro de 1975. E, lá está a razão da tal associação de ideias, tem ainda sete fotografias feitas em Moçambique ainda em 1974, com a retirada de militares portugueses no Cabo Delgado, a chegada de guerrilheiros da Frelimo a Lourenço Marques, e termina com a tomada de posse de Joaquim Chissano como primeiro-ministro do governo de transição, ladeado por Mariano Matsinhe (se não estou errado), à esquerda, e Óscar Monteiro.

Enfim, o livro é uma pequena pérola. Deixo ainda mais uma (pobre) reprodução: "Retornados das colónias no aeroporto de Lisboa, Outubro de 1975". Talvez agora possamos regressar a ela e perceber o seu sub-texto. Salgado é um homem de ideologia arreigada mas é, acima de tudo, um grande olhar de fotógrafo. E foi que este funcionou, encontrando naquela amálgama de refugiados esta imagem que nos poderá denotar não só a pluralidade do universo que então se acoitava na então já não Metrópole, como também a complexidade dos processos históricos que o haviam constituído. Mas a miopia maximalista logo tudo reduziu aos tais "retornados". Nisso alisando-os, descontextualizando-os, desproblematizando-os. Desumanizando-os. Para sossego do Portugal de então. E do actual, no qual ainda reina esse preguiçoso, de culposo pois culpabilizador, olhar "distraído".

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Fica este dia de Natal marcado pela morte de Luís Basto, o fotógrafo de um Maputo desenquadrado, desfocado, pejado de contradições, habitado por memórias que se vão desvanecendo, até invisíveis para os olhares sem lentes, pois, como disse: "Muitos nascidos na paz não têm memória das vidas fragmentadas que inundavam a cidade como almas penadas", numa desencantada era em que "não há mais mistérios".
 
Deixo a capa deste seu pequeno álbum de bolso, da Éditions de l'Oeil, inserido numa curta série de livros dedicados a artistas moçambicanos, publicado em 2004. E deixo ainda ligação a um texto que publiquei no "Canal de Moçambique" sobre o livro "Voyage a Mozambique - Maputo", com texto de autores franceses e fotografias dele. E  recordo ainda um pequeno postal que escrevera sobre o mesmo livro e no qual reproduzira esta fotografia: o Luís Basto andava a fotografar para esse livro e encontrou-me. Quando o livro saiu vi que nele me integrara, captando-me na cadeira da minha barbearia em Maputo, ladeado pelo célebre barbeiro Zé Maria, e assim fazendo-me "cidadão" ou, melhor dizendo, "população" da cidade...
 

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(Beco da Corvinha, Lisboa)

Lisboa Deserta / Lisbon Deserted (edição bilingue) é  um livro muito característico, nisso curioso e exemplar testemunho de época. A sua autora, Maria Margarida Chaves Marques, é uma fotógrafa amadora e nele congregou uma colecção de fotografias feitas durante o primeiro confinamento lisboeta. Mas para além do excêntrico estado da cidade de então o que vive no livro é um exemplo das vivências de quem ali se acoitava. 

Luso-moçambicana - e durante décadas funcionária de organização internacional - a pandemia como que bi-confinou a autora, acantonando-a como a todos nós mas também ainda mais apartando-a de família próxima e amigos, pois estes espalhados pelo mundo, desde Maputo, onde reside, a tantos outros lugares. E assim o que aqui temos são verdadeiros postais ilustrados, enviados - via este correio de hoje que são as redes sociais - aos seus tão distantes. Torna-se qual um diário, encetado quando o encerramento doméstico se lhe tornou (e a tantos de nós) insuportável, e se permitiu aos passeios higiénicos que então nos eram autorizados ainda que não verdadeiramente recomendados: "Hoje é Domingo de Páscoa... Com um dia tão bonito lá fora, e cansada de estar fechada em casa desde 18 de Março não resisti a ir dar um passeio curtinho pelos arredores. Como é bela Lisboa, mesmo deserta e despida das suas gentes! Desejo a todos uma Páscoa Feliz", escreveu em 12 de Abril, e nisso começa o livro. E continuou passeando, fotografando nas alvoradas. No livro deixa-nos memória de quinze dias desse mês (as últimas fotos são de 27 de Abril), salpicadas de pequenas notas da sua vivência, detalhes refracções do que ia vergando a cidade, mas despojadas de reflexões abrangentes sobre todo aquele processo, num registo plácido que era a natureza dos tais velhos postais ilustrados: "Hoje acordei com a ideia fixa de ir à Manteigaria do Chiado comprar pastéis de nata para o nosso pequeno-almoço. Bati com o nariz na porta e nem imaginam a frustração. Até a célebre Manteigaria fechou!". 

Habitando a autora nas cercanias da Sé estes ecos dos seus passeios pedonais mostram a cidade antiga embrenhada no vazio humano, o Tejo e alguns laivos da Outra Banda (aquela à qual, por vezes e se bem-disposto, ainda chamo, jocoso, de Catembe, carinho saudoso que a autora decerto compreenderá), para além das praças mais monumentais. Mas, mais do que tudo, traz os recantos, becos e vielas desses velhos bairros circundantes. Todos, sempre, envolvidos no silêncio do vazio humano - com uma ou outra excepção, a que a fotógrafa foi sensível, captando a afinal incessante, ainda que reduzida, contrução civil. Actuante numa ou outra reabilitação do edificado, assim reafirmando que nada findara mas apenas nos suspendêramos.

Por tudo isto livro é uma preciosa memória.

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Lisboa Deserta / Lisbon Deserted, de Maria Margarida Chaves Marques, edição do autor, 2020.

 

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