Há 11 anos José Capela publicou o livro "Conde de Ferreira e Cª: Traficantes de Escravos", colecção de biografias de comerciantes de escravaturas ("negreiros") do século XIX. Quando ele morreu deixei no "Canal de Moçambique" esta muito breve recensão a esse livro (e a outro que ele publicara no ano seguinte, uma verdadeira pérola: "Delfim José de Oliveira..."). Foi uma espécie de homenagem minha, pois Soares Martins (de pseudónimo Capela) fora muito importante na minha vida e tinha (e tenho) para ele uma enorme gratidão. E um grande respeito intelectual, também (mas não só) por ter passado décadas a vasculhar documentos e a publicar, sem pejo nem adornos, sobre como o comércio de escravos foi estruturante no pré-colonialismo português em Moçambique. E como isso moldou as características do subsequente regime colonial - apesar das tralhas lusotropicalistas e lusófonas que vão subsistindo, já para não falar das dulcificadas invocações dos "bons velhos tempos", que tanto misturam as normais (e respeitáveis) memórias individuais de juventude com pronunciamentos de cariz sociológico. Enfim, talvez com um bocadinho de exagero, mas cheguei aos 50 anos com a sensação de que se tive algum "maître à penser" acabou por ser ele... sem que isso possa macular a sua memória devido às atoardas que vou botando. Mas já estou a divagar, avante,
Nesse "Conde de Ferreira..." Capela deixou explícito que vários desses comerciantes de escravos regressaram do Brasil mais ou menos após a ilegalização da actividade e se integraram na sociedade do novo regime liberal (e o financiaram), usando as doações beneficientes para ascenderem socialmente. Nisso também patrocinando instituições que ainda existem (misericórdias, hospitais, etc.).
Sei agora por intermédio do historiador João Pedro Simões Marques que aconteceu o que eu esperava há já anos - os cirugiões plásticos da História descobriram o Conde de Ferreira (tão presente por esse Portugal afora, ainda que quase ninguém saiba quem foi). E o "Público" (claro) já está em ardores de expurgar as tais instituições dessa memória...
Eu continuo na minha, ao que consta na documentação da época (ainda que um pouco posterior) o malvado D. Pedro I não só castrou um aio devido aos seus ilegítimos actos sexuais (um antecessor do prof. Ventura e seus acólitos, está visto) como matou por mãos próprias uns esbirros do seu pai (e terá até comido parte do coração de um deles, a crer ou no cronista ou na colecção de cromos a que tive acesso). E apesar de tudo isso, que tanto agride os actuais valores, continua ali, plantado no centro do nosso Mosteiro de Alcobaça, como símbolo de amor, ainda por cima. Não será, mesmo, de acabar o que os franceses começaram, e rebentar-lhe com a tumba? Ou, pelo menos, retirá-la dos nossos olhos, evitar aquele elogio à memória da ditadura, da pena de morte e da castração por infidelidade amorosa (invertida ou não)?
Não sou muito dado a livros, quase nada às novidades e ainda menos às coisas e causas da literatura portuguesa. E vivi 20 anos fora. Por tudo isto nada percebo destas polémicas literárias, trâmites que associava a um "Chiado" bem recuado, lido no liceu da vida - e nessa candura bem me surpreendera há poucos meses ao saber que o bom do António Cabrita, vindo de Maputo "a banhos", acabara rojado à calçada portuguesa em plena Av. de Roma ao procurar ele (no seu intrínseco civismo) apartar uma contenda entre poetas e críticos algo excêntricos aos escaparates. Bisonho episódio que me alertara para que nesta era de podcasts e tik toks ainda há, a sul do Trancão, quem se exalte em torno de livros... Mas tudo isso se me escapa, pois a última polémica livresca de que me lembro foi sobre este "A Tragédia da Rua das Flores", então confrontando-se os veementes avessos à publicação do calhamaço rascunho e os acalorados defensores da sua imprescindibilidade, tudo isso quando o meu pai teria mais ou menos a minha idade de agora... (e quem o lerá hoje em dia?).
Vem-me isto ao teclado diante do actual debate entre os autores, e respectivos amigos e adeptos, das duas recentes biografias de Pessoa, uma dita de pendor "académico", outras vocacionada para ser "popular". A surpresa para mim é tetra (que não tétrica...): 1) que os autores se zanguem em público, e de modo tão desabrido, tanto que até dá para demissões nos "jornais de referência"; 2) algumas das matérias que provocam dissenso - entre as quais avulta a relevante temática sobre se Pessoa frequentaria prostíbulos femininos, era dado aos "prazeres helénicos" ou teria morrido virgem. Isto para além de ser tópico de debate o tamanho do seu membro viril; 3) que tanta gente compre (e até mesmo leia) biografias, já 12 mil da "académica" e a "popular" para lá caminhará!... - mas isso é coisa do meu gosto, avesso que vou a tal molde, para o qual não tenho paciência; 4) o tamanho das tais muito compradas biografias, ao que consta cartapácios de 1200 páginas (a "académica") e quase 1000 (a "popular")! Tanto há para dizer... Enfim, nada tenho contra quem escreve, quem lê, nem mesmo contra quem discute o que escreveu ou leu. Apenas me surpreendo.
Cumprem-se hoje 200 anos da independência do Brasil. É tonitruante o relativo silêncio, qual murmúrio, em Portugal sobre o assunto - publicações, filmes, documentários, congressos? Nem mesmo o recordar, trazendo para os escaparates, do que foi sendo bem feito sobre essa época. Razões para tal haverá, desde a pequenez (ultramontana) que ao processo ainda sente como "perda" - e que na senda deste Ventura de agora ainda chamará "terroristas" aos Tiradentes - e o patético (identitarista) que se quer "desculpar" da História, a ver se nisso pingam uns subsídios extra para as ONGs e centros de investigação que controlam.
Enfim, deixo aqui memória desta interessante "Oceanos", n. 44 (2000), com alguns artigos interessantes sobre portugueses no Brasil independente, que foi coordenado pelo antropólogo Robert Rowland - estou a folhear/reler hoje, como celebração...
E deixo um desejo sincero aos meus (poucos) amigos e amigos-FB brasileiros. O de que daqui a 200 anos o Brasil tenha evoluído o suficiente para que os seus problemas já não sejam culpa do colonialismo português. Será difícil, pois até agora não conseguiram libertar-se disso. Mas talvez venha a ser possível...
SITA: A VIDA E O TEMPO DE SITA VALLES - (Trailer oficial PT)
Este documentário "Sita: a vida e o tempo de Sita Valles", é mais uma investida da realizadora Margarida Cardoso ao ocaso colonial. Ao vê-lo logo recordei o excelente "O Mar em Casablanca" de Francisco José Viegas (talvez o meu romance preferido daquele autor), que aflorou o terrível episódio. Mas, e para além dessa minha deriva, como é óbvio logo associei este recente filme a outras obras de Cardoso, o "A Costa dos Murmúrios" (com base no romance de Lídia Jorge) e, em particular, o excelente "Yvone Kane", neste caso pela patente similitude temática - e, num âmbito mais alargado dessa indagação sobre aquele período histórico também é relevante o documentário "Kuxa Kanema - o Nascimento do Cinema", debruçado sobre o inicial processo cinematográfico moçambicano (o texto começa por uma alusão aos "cinco séculos de colonialismo" mas essa derrapagem não é mácula suficiente para deslustrar o trabalho).
Não faço estas associações pela superficial nota de "género" - aquele mero reconhecimento da mulher realizadora que indaga o(s) processo(s) histórico(s) através de três personagens/personalidades mulheres, que será prisma que pouco me ilumina. Interessa-me a pertinência (e competência) da realizadora no seu vasculhar do que pode - àqueles que se refugiam na forma de incompreensão que é o espanto - aparentar ser o absurdo na história. Mas o qual é, de facto, o horrível histórico que tanto vigorou naquele período do final do colonialismo português e das alvoradas das novas nações. Como nos anteriores e posteriores períodos, noto, pois segue esse horror bem omnipresente.
A sinopse deste documentário está disseminada, o que torna desnecessário que a repita. Apenas friso o que me ocorreu durante o longo filme (quase três horas). Por um lado, o não terem sido abordadas as diferentes facetas daquele horror, no qual morreram Sita Valles, seu marido, seu irmão e cerca de 30 mil indivíduos. Não será isso um defeito, mas uma característica que foi objectivo da realizadora, o centramento no ambiente formativo daquela militante. Valles, de uma família oriunda de Goa e da pequena-burguesia luandense - e a sua inserção social, denotando menores barreiras raciais do que as existentes no Moçambique coevo, é apenas aflorada - é recordada através de documentos pessoais, depoimentos de familiares, amigos próximos de Luanda e de seus correligionários durante o período de residência em Portugal. Não há uma única voz contrastante ou, pelo menos, afastada. Alguém a quem ela, ou suas causas e objectivos, fosse antipática. Seja de quem foi então militante do MPLA ou do PCP, seja de adversários políticos lato sensu. E assim segue ela, a sua memória, algo acarinhada, nisso até enublada. E dos seus companheiros finais - do propalado movimento de Nito Alves - nada fica, nem do seu afirmado líder.
O que fui vendo foi a formação de uma jovem progressivamente radicalizada - desde o anticolonialismo e aversão ao racismo inicial até à sua formação comunista em Portugal e, depois, o seu extremar aquando do regresso a Angola (patente num até trágico trecho de uma sua carta à família na qual ecoa a retórica oficial, em tom crítico, aquilo de que "o MPLA não é comunista"). Tratava-se de uma peculiar visão do real, que não é bem delineada nos depoimentos - talvez por nunca ter sido sistematizada pela militante - e sobre a qual algo podemos intuir através da leitura do opúsculo "África - Colonialismo e Socialismo", de algum esquematismo interpretativo, publicado nesse ano de 1977 pelo seu irmão Edgar Valles, o qual neste filme surge como fonte primordial e explicitando-se como mais moderado, e até descrente, do que a irmã.
Honestamente, ao longo do documentário - acima de tudo pela secura dos trechos das suas cartas aos seus pais, bem como pelo que se pode depreender da sua efervescência pessoal através de alguns dos testemunhos dos que lhe foram próximos -, foi-se-me criando uma imagem da militante revolucionária que até algo me envergonha de aqui deixar transparecer, face ao cruel destino que sofreu. Não é apenas a do seu radicalismo até inconsciente, coisa até passível de ser atribuída à juventude, e que não só a conduziu até à morte bem como talvez influenciado a do seu irmão. Pois o que mais me foi patente foi um irredentismo, talvez abrasivo, um fervor crente de intolerância constituído.
Ou seja, e sei o quão cruel e descabido é até este meu sentimento de espectador, se o filme ilustra um acto de horrível despotismo, massacrando pelo menos 30000 dos apoiantes do próprio regime, uma das habituais purgas das pretensas "grandes revoluções" históricas, aquilo que se me foi crescendo ao longo do documentário foi uma sensação de que se tratava de uma mulher horrível. Insuportável, pelo menos. Sim, é um sentimento que pouco me abona, face ao cruel destino de Sita Valles, assassinada grávida nos seus 20 anos. E à magnitude da malevolência daquele regime assassino. E à imoralidade daqueles - alguns dos quais tão laureados vieram a ser - que daquele processo foram cúmplices. Até exultantes, a crer em alguns relatos. Mas foi, e digo-o com pesar, o que me ocorreu ao ver "Sita".
E decerto que por isso, pelo acabrunhamento sentido face a esta minha reacção, que logo após o filme fui até à estante. E comecei a reler o "Les Dieux Ont Soif", talvez procurando justificar-me na memória desse malvado fanático revolucionário Évariste Gamelin que Anatole France nos legou. Para que não caiamos em simpatias. Pelo putativo brilho, carisma, fervor, empenho e competência organizativa deste tipo de militantes...
Adenda: deixo uma entrevista de Margarida Cardoso ao Buala, relativa ao seu trabalho durante a produção deste filme e do "Yvonne Kane".