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Nenhures

Nenhures

26
Nov24

Sobre a "Desconstruir o Colonialismo"... (2)

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Escrevi, com tamanho repúdio que até repulsa, sobre a exposição "Desconstruir o Colonialismo. Descontruir o Imaginário". É uma espécie de "pôr a cabeça no cepo" pois são cerca de 50 autores envolvidos, e todos tenderão a defender o seu objecto. Gente graduada e qualificada, desde a sua Comissão Executiva, encabeçada pela prestigiada historiadora Isabel Castro Henriques, a uma vasta Comissão Científica - da qual, como exemplo, saliento a investigadora da faculdade de Medicina Isabel do Carmo, que assim descubro especialista da história colonial portuguesa, presumo que nas suas áreas de referência Endocrinologia, Diabetes e Nutrição - ainda que estes assuntos não sejam abordados na exposição, nem nem tão pouco as questões da velha "Medicina Tropical". Juntos a um farto enquadramento institucional, o ISEG, o Ministério da Cultura através do Museu Nacional de Etnologia e a Comissão Comemorativa dos 50 Anos do 25 de Abril. Para além de um poderoso rol de patrocinadores: Gulbenkian, FCT, FLAD, Comissão Nacional da UNESCO, UCCLA, ISEG, Universidade de Lisboa...
 
"Zezé, queres pedir um financiamento para algum projecto?", logo disparou um amigo ao ler-me, provocando um unânime coro de sonoras gargalhadas entre os que nos rodeavam!
 
Tendo transcrito o postal no meu mural de Facebook aí recebi pedidos de melhores esclarecimentos, provenientes de duas investigadoras estrangeiras - uma norueguesa, outra brasileira - que fizeram longas pesquisas em Moçambique. Presumindo que elas não visitarão a exposição - apesar de estar programada a sua permanência no Museu de Etnologia durante um ano e de estar anunciada a sua itinerância -, respondi-lhes esmiuçando as causas do meu profundo desagrado com esta iniciativa estatal. Nisso alonguei-me nos argumentos e apresentei detalhes ilustrativos. Coloco-os aqui, retocados: 
 
1.  "Desconstruir (o jargão obrigatório) o Colonialismo"? "Descolonizar o Imaginário"? É normal, salutar, que durante as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e das independências das antigas colónias, se regresse a essa temática. Se celebre o fim do anacrónico império, se dissequem as suas características. Deixo ligação a um postal meu, "Passado Colonial", escrito há meses irritado com um conjunto de dislates que uma antropóloga vinda dos EUA disseminou na Gulbenkian entre os professores do ensino secundário. Ou seja, não trato de fazer a apologia do colonialismo, nem a sua higienização. Mas refuto o aldrabismo como ideologia do agit-prop académico.
 

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 (Painel com o rol de patrocinadores da exposição)
 
2. Como logo referi o problema não é o catálogo. Este contém 30 textos, decerto que desiguais, que apenas acompanham. Autores haverá que se defenderão dizendo que os conteúdos dos seus breves textos (cerca de 5 páginas cada) serão mais equilibrados do que os resumos expostos, e que também sofrerão a exiguidade de espaço textual disponível para resumirem as suas longas e complexas reflexões sobre matérias dos quais são especialistas. Poderão até - admito como hipótese - afirmar que as resenhas afixadas algo deturpam os seus textos. Serão "explicações" impertinentes. Pois o que conta é o conteúdo da exposição, o que é divulgado e "patente ao público" (e estará durante um ano). E que eles subscrevem, na sua totalidade.
 
Mas mais ainda, e também o referi, o problema fundamental não é a pobre execução do objecto-exposição físico. Ainda que seja pertinente questionar as razões daquilo. O Museu tem orçamento para actividades. E o rol de patrocinadores é enorme. O que aconteceu para os painéis (ou estandartes, se se quiser) serem tão descuidados? Não falo do catálogo, pois esse apenas acompanha (não tem grande impressão mas escapa). O que aconteceu na produção? Quais os critérios para a sua adjudicação?
 

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Pois a impressão dos painéis é descuidada, deixando-os de imagens pouco perceptíveis ou mesmo imperceptíveis. E a revisão, por superficial que fosse, aparenta ter inexistido. Por exemplo, esta fotografia de um grupo de mulheres em São Tomé no início de XX aparece em três diferentes painéis com erros crassos de atribuição (neste como "grupo de funcionários superiores da companhia de Moçambique, na Beira", noutro como "residência do administrador de Ribaué"). E, em termos textuais, é notável que o ror de académicos prestigiados subscreva uma exposição desta temática que informa, e o repete, que a independência da Guiné-Bissau foi unilateralmente proclamada em ... 1974. 
 
3. A esta pobreza "física" já associei a pobreza conceptual da exposição, apenas aqui recordo o anacronismo de consociar uma vasta dissertação textual sobre o colonialismo português a um conjunto de peças, como se de bric-a-brac, uma deriva oitocentista para ser simpático. Pensando que assim aos "africanos", "colonizados", se faz "falar" através dos seus artefactos. Como se o "imaginário" lisboeta, e dos seus arredores, se desconstrua com aquele "artesanato",  como se os colonizados sejam a máscara mapiko, a peça de Reinata - para quem não conheça deixo um texto meu sobre ela. E aquelas restantes peças avulsas..., num efectivo potlatch de primitivismo serôdio.
 
 

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4. O relevante nem sequer é o tema do enquadramento e funções requeridas ao Museu Nacional de Etnologia. Mas sim como esta exposição demonstra ser o contexto político nacional determinante intelectualmente na actividade de núcleos da academia portuguesa, em especial nestas áreas da história colonial. Convocando os profissionais para produzirem - ou se associarem, placidamente - discursos tão politicamente empenhados que panfletários, tudo a coberto do "simbólico" científico e institucional. Isto exemplifica-se com um dos últimos painéis que sumariza o fundo ideológico e o objectivo político desta tarefa. Enceta por um indiscutido "Na sociedade portuguesa, que se caracteriza por um racismo sistémico..." e segue num pedagogismo empenhado "Torna-se necessário proceder à alteração da forma de pensar o passado colonial para que, através da descolonização das mentes, se possa combater o racismo de forma mais eficaz.". Será que as pessoas não percebem o atrevimento - a "lata", em calão - na produção estatal de textos destes?
 

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É evidente que estes panfletos académicos, sob blindagem "académica", têm repercussão em alguma imprensa "gauchiste" de implantação nacional, e também para isso são produzidos. Em última análise, servem para os minoritários partidos de extracção comunista conduzirem a forma actual ("decolonial", peroram) de "luta de classes", a "luta de "etnias" e "raças", como agora se estipula. É a actividade dos "intelectuais orgânicos" e dos "publicistas" para transformarem a "etnia"/"raça"-em si em "etnia"/"raça"-para si. De facto, é isto este projecto de "Descolonização do Imaginário"... Com a história colonial portuguesa tendo como corolário a manifestação a propósito da morte de um cidadão norte-americano, convocada por grupos de extrema-esquerda, então mais ou menos na órbita do partido LIVRE.
 
5. Mais do que tudo, "Descolonizar o Imaginário" pode e deve começar por perceber que é uma falsidade o que estes intelectuais apregoam, que a sociedade portuguesa vive como um reflexo deste império, que estes cinquenta anos de democracia (grosso modo o equivalente ao tempo de efectivo colonialismo em África) mantiveram intactas as representações sociais, as mundividências portuguesas (ou, mais ainda, as existentes em Portugal). Ou seja, que o "imaginário" actual é similar, reflexo simples, do pretérito. Refracta o passado, claro. Mas não da forma mecanicista que esta exposição - e tanta propaganda política - o diz. (Por outras palavras, se há décadas vigorava o "marxismo" vulgar, mecanicista, agora vigora o "identitarismo" mecanicista, simplório).
 
E ainda mais, se é para "Descolonizar o Imaginário" então também será o âmbito de o fazer em relação aos imaginários africanos, sair do facilitismo dos registos que vigoram sobre a época, convocando as múltiplas leituras do colonialismo que então existiam. Implica isso menosprezar as palavras de Amílcar Cabral (evocado na exposição) ou de Mário Pinto de Andrade (que é ouvido na exposição)? Não. Mas qual a razão de não se ouvir/ler, por exemplo, Domingos Arouca? Ou ouvir, analisar, as múltiplas considerações de então e posteriores sobre o regime colonial? Estou a fazer a apologia do colonialismo? Ou estou a dizer que se trata de uma exposição no Museu Nacional de Etnologia, um trabalho congregando dezenas de académicos, no 50º aniversário do fim do regime colonial? Isso sim, seria dissecar as representações que temos sobre as múltiplas realidades coloniais, fazendo-as dialogar com discursos variados (e não com o panegírico de algumas, orlado com "arte" bonita).
 
6. Para além de outras dimensões criticáveis a exposição tem, na sua parte textual, dois grandes problemas. Que passarão despercebidos - e isso é o pior - ao "grande público", àqueles que desconhecem as temáticas. Mas reconhecer esses problemas reclama a vontade do espectador. Ou seja, são subjectivos. Um é a incompetência intelectual - que para ser reconhecida exige uma "dessacralização" textual, um afastamento de um texto afixado numa instituição museológica que vem com autoria de dezenas de "Senhores Professores". Quantos de nós, vulgares de Lineu, interrogaremos aquilo? 
 
Começo por aquilo que digo incompetência. Vários painéis atacam o "luso-tropicalismo", fazendo-o de modo básico e esquecendo as constituintes históricas da composição desse ideário, bem como sobrevalorizando-o, até contraditoriamente. Numa dessas investidas escreve-se "Em Lourenço Marques ... os jovens sentiam-se parte dessa "terra nova", apesar de serem brancos, negros, indianos ou mestiços - ou tudo ao mesmo tempo, como a mais brilhante poetisa do tempo, Noémia de Sousa. Como resposta, em Lisboa, a assustada elite colonial inventou o "luso-tropicalismo"...".
 
Sobre isto eu vou ser um pouco egocêntrico, até porque sei que os autores desta parcela cresceram em Moçambique e poderiam escudar a resenha que lhes foi feita do texto nessa empiria própria. Ora deste grupo de jovens, entre os que mais se vieram a celebrizar, eu conheci - superficialmente - Virgílio de Lemos, e tive o privilégio de induzir a publicação de dois dos seus livros. Conheci bem mais, com verdadeira amizade de visitas mútuas, o José Craveirinha - e também induzi a publicação de um dos seus livros. E ainda mais o Ricardo Rangel. Ora presumo (pois conheci-o menos) que o Virgílio e tenho a absoluta certeza que do Zé Craveirinha e o Ricardo - eles tão dados à impiedosa ironia - se ririam, mesmo, se fossemos ver esta exposição e lessem esta formulação.
 
Outro detalhe, que é hiper-significante mesmo que as pessoas nem atentem (o que demonstra o estado de sonambulismo ainda que activista). O repetitivo e frágil ataque ao "luso-tropicalismo" culmina na crítica da "lusofonia". O painel é pobre, o texto é naturalmente curto e, em meu entender, esquece outras componentes da sua formação. Mas tem o mérito de recordar, e bem, Alfredo Margarido que num opúsculo disse de modo suficiente o que era necessário dizer sobre a tralha. Eu nada sou paladino da "lusofonia", um ideário incompetente e frágil. Ainda por cima sofri-o, quando era a ideologia do lumpen do funcionalismo público socialista. Um dia até escrevi um enorme ditirambo contra aquilo.
 
Mas há dois pontos esquecidos nesta exposição:
 
1) a lusofonia já não é, trinta anos depois do seu vozear, uma ideologia dominante nos aparelhos de Estado. Pois é um discurso político tão incompetente que foi sendo engavetado, e isso não transparece na exposição, desesperadamente à procura da perenidade das representações - ou seja, agarrando-se à ideia, "denunciando-a", de que se antes dominava o "luso-tropicalismo" hoje domina a "lusofonia";
 
e pior ainda, 2) esse ideário da "lusofonia" teve em Portugal uma consagração estatal: o Acordo Ortográfico de 1990, o qual tendo sido ratificado por um governo do PSD teve origem num agrupamento luso-brasileiro de intelectuais maçónico-socialistas da velha guarda ("republicanos", passe o grande anacronismo). O AO90 é a grafia da "lusofonia" desejada por esses sectores da velha "nostalgia colonial", no fundo actualizando o projecto salazarista dos 1960s de uma futura "comunidade de Estados de língua portuguesa", unidos pela língua e... sentimentos.
 
Eu não escrevo com o AO90 não por preguiça em actualizar-me. Mas porque sempre o repudiei dado ser símbolo e patético instrumento desse projecto político estuporado que é a "lusofonia". Justiça seja feita, o autor que aborda esta temática da "lusofonia" é Diogo Ramada Curto. Um intelectual robusto - e muito temido, pois é muito truculento na imprensa, distribui bordoadas a eito. E o qual, ainda que sendo o actual director da Biblioteca Nacional, não escreve sob essa tal grafia lusófona. Mas muitos dos outros autores lá vão grafo-lusofonamente ordeiros.
 
Dir-me-ão que isto é um pormenor. Não é! Neste contexto de intelectuais especialistas, embrenhadíssimos no "denuncionismo" "activista" isto é um pormaior, denotativo da ligeireza agit-prop.
 

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7. O outro problema, que é o fundamental, é o viés. Alguns nunca o reconhecerão, aceitarão as palavras doutas. E outros apreciarão, considerarão uma boa acção, um bom "activismo", para a "causa". 
 
A este viés panfletário, recordo, é preciso querer reconhecer. E sublinho que está no "pacote" inteiro, gritado. Escolho alguns exemplos, apenas avulsas ilustrações.
 
7.1. Escolhi como primeiro a fotografia que encima o postal, tão explícita que nem é necessário comentá-la: o então famoso - e típico - Movimento Nacional Feminino é representado daquela forma, a querer-se chocarreira. "Palavras para quê?"...
 
7.2. Outro exemplo é uma ausência. Eu acompanhei a génese de um trabalho (livro e exposição) feito por Isabel Castro Henriques (coordenadora desta exposição), "Espaços e Cidades em Moçambique". Uma exposição cuja apresentação em Moçambique foi muito problemática - um dia terei de escrever essa memória. E que conduziu a uma digressão em Moçambique da sua autora - então acompanhada do seu marido, o grande intelectual Alfredo Margarido -, a qual tive o privilégio de acompanhar.
 
Ora nesse trabalho foi abordado a temática do desenvolvimento urbano - induzido pela presença portuguesa em períodos pré-colonial e colonial, e sobre a qual julgo que fez pelo menos outro livro-exposição relativo a Cabo Verde. Essa temática é completamente apagada desta exposição, por razões que são obviamente ideológicas. Entenda-se, há espaço para mostrar uma gravura da pré-colonial Tombuctu. Mas não para o rol de pequenas unidades urbanas até finais de XIX ou abordar o seu crescimento futuro. Porquê? É evidente por não ser uma temática imediatamente apreensível pelo público como "denunciável" (até poderia ser analisável desse ponto de vista, mas arrisca sempre que alguém passe por lá e deixe um "pelo menos construímos cidades", a prejudicar o efeito da cartilha).
 

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7.3. Há um painel dedicado aos "Saberes Coloniais". É aborrecido resmungar com isto, pois tenho o maior apreço pela autora do texto, e lamentarei se ficar magoada, Mas sigo. O painel apresenta desenhos sobre as "viagens filosóficas" no Amazonas de finais de XVIII. E depois restringe-se a imagens e texto sobre antropologia, enfatizando a antropologia física - predominante em Portugal até a II GM, nas suas crenças da relevância de medições populacionais, e que tinha ênfase racialista e, muitas vezes, racista - e também o trabalho de Jorge Dias, eivado de preocupações de antropologia política aplicada. Ou seja, o que resta é que os "saberes coloniais" portugueses eram racistas e controleiros.
 
É certo que a propaganda oitocentista de um grande saber acumulado em Portugal sobre África servia interesses políticos - "direitos históricos" na "partilha de África" - e era irreal. E durante XX o conhecimento sobre as colónias africanas sofreu os contrangimentos devidos às limitações do campo científico português. Mas ainda assim foi produzido um vasto saber em ciências naturais (zoologia, botânica, medicina, veterinária, etc.) e matérias técnicas. E também fazia parte do discurso colonial o enfatizar da grandeza desse saber. Mas ele existiu, foi abundante e competente. Muito tinha dinâmicas utilitaristas, muito era utilitário. Mas não era só isso - e nessa sua redução ao "utilitarismo" (colonialista) vem também outro mecanicismo, a da redução da curiosidade científica dos técnicos e investigadores portugueses aos interesses económicos e políticos. Ora nada disso é aludido. Dirão alguns "ah, mas isto é sobre o racismo!! E o colonialismo repressor!". E eu responderei que não, é - e assim está anunciado - sobre o "colonialismo". E, neste "capítulo", sobre os saberes que nele foram produzidos. Mas, claro, se se afixar em exposição alguns progressos na área da hidrologia, ou dos saberes agrários, ou seja lá o que for, isso não é imediatamente apreendido pelo visitante comum como uma malevolência portuguesa.
 
Mais, o cartaz sobre "Saberes Coloniais" começa com uma frase rutilante: "Desde o século XV houve recolha e expropriação de elementos de territórios distantes". E depois avança que só em finais de XVIII é que começa a haver verdadeira produção de saber científico (as tais "viagens filosóficas"). Fui ver o texto. A primeira fase, bombástica, não está lá assim. O chavão denunciador é o do cartaz. Eu posso perguntar-me de que serve, neste âmbito, afirmar as "expropriações" de XV. Mas mais me pergunto a que propósito é que surge no início do cartaz... É apenas (mais) um detalhe de viés.
 
7.4. No catálogo - e isto foi-me lido por uma amiga, e eu esqueci a página (não a marquei pois o livro foi-me emprestado), afirma-se que (cito de cor) os nossos países congéneres antigos colonizadores têm feita a crítica aos seus regimes coloniais (entenda-se, a "desconstrução", no jargão) e que Portugal é uma excepção. Isto é uma especulação falsária. Pois é muito duvidoso afiançar um qualquer défice nosso nessa questão face às sociedades da Bélgica ou da Holanda, para exemplos-mores de países "congéneres". Ou, para forçar a nota, que a sociedade brasileira se assume como país colonial e deixe, definitivamente, de invectivar os portugueses que partiram há dois séculos. Ou que a Espanha, congénere hermana, se tenha expurgado das suas malevolências ultramarinas... Sim, os wokes britânicos abateram uma ou outra estátua, tiraram o Hume do nome de uma praça e quejandas ilusionices. Mas, francamente, é um desplante uma afirmação daquelas.
 

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7.5. Para último exemplo de viés - e tantos outros tão explícitos há. Este está logo à entrada, num dos primeiros painéis, e é bom pois assim ninguém poderá dizer que "foi ao engano". A intenção de induzir uma associação de ideias, uma homologia, é evidente. Em cima está uma estação de viagem científica (eu não uso o termo "exploratória" para evitar a sua ambivalência semântica, que seria logo apropriada por quem leia de modo enviesado), a estação "Luciano Cordeiro" estabelecida por Henrique Dias de Carvalho, provavelmente em finais da década de 1880s ou no início de 1890s. Em baixo está uma gravura, ilustrando o transporte de escravos, agregados por um instrumento que desconheço o nome (golilha?) - "algemados" pelo pescoço.
 
É evidente que se está ali a proclamar a homologia entre as expedições científicas coloniais e o trânsito escravista, apagando duas dimensões: o progressivo abolicionismo internacional e português, e a integração da cientificidade nesse rumo. E afirmar isto não é esquecer a continuidade ilegal (e disfarçada) de tráfico escravista durante o último quartel de XIX e mesmo XX adentro, neste caso em particular para São Tomé e Príncipe.
 
Mas nesta construção painelística, como se com souplesse, está condensado o programa ideológico desta exposição: o regime colonial é a perenidade linear do escravismo, sem tirar nem pôr. E ali consagrado pelo afixar de Silva Porto, o pombeiro oitocentista que cruzou Angola - sem uma palavra sobre o facto de ter sido ele uma enorme excepção.
 
Tudo isto, condensado num mero painel, demonstra, com evidência para quem queira perceber, outro vector estruturante da exposição: a inexistência de uma abordagem às dinâmicas africanas. Sim, surgem os manipanços, as cadeiras de chefe, os "artefactos"... Sim há um ou outro painel aludindo às "resistências". Mas nada mais. Pois em havendo-as se poderia reduzir o impacto do panfleto "denunciatório", pensam - decerto - estes autores.
 
Exemplifico: num dos livros de José Capela (José Soares Martins) li há muitos anos um trecho impressionante. Uma página de diário de um austríaco (?), escrita em 1850. Estava em Quelimane e assistiu à chegada de uma pequena caravana de escravos, agregados deste modo (a tal golilha?). Acontecera que o navio negreiro já havia zarpado. Então os comerciantes abandonaram os escravos à sua sorte, e partiram. Mas não os libertaram, deixaram-nos agregados pelo pescoço. Ninguém os socorreu, e escrevia o estupefacto austríaco que eles cirandavam pela cidadezita, exauridos, esfomeados, sedentos, alguns deles já cadáveres, assim arrastados pelos outros. É uma imagem tétrica, uma ilustração extraordinária, crudelíssima, do que foi a realidade do comércio escravista.
 
Mas mais, na Quelimane de então existiriam - especulo - cinquenta portugueses, talvez alguns mais. Para além de alguns goeses (entenda-se, católicos, com cidadania... no conceito de aquele tempo). Indivíduos decerto que na sua maioria ou mesmo totalidade envolvidos no comércio de escravaturas. Esses portugueses ali residentes eram contemporâneos de Almeida Garrett, de Alexandre Herculano, Camilo já escrevia e estrear-se-ia em livro no ano seguinte. E nenhum foi partir as algemas daqueles desgraçados. Isto é terrível.
 
Acontece também que quem tinha produzido aqueles escravos - os tinha capturado e transportado, pago as portagens do caminho -, e sofrera a desilusão de não os ter vendido, e os deixara naquele estado desgraçado, eram ... africanos. E durante séculos assim foi. E como isso demonstra todo um mundo de dinâmicas africanas que é completamente apagado neste exposição - "artefactos" bonitos à parte.
 
Outro exemplo disso? Lá está Mouzinho grande, quase solitário, prendendo Ngungunyane, glorificado em figura portuguesa de então. Mas nem uma palavra (ou imagem) sobre as teias de alianças (naquele caso de última hora, mas em tantas outros sítios mais trabalhadas) ou de interacções construídas. Ao longo de séculos.
 
8. Nos nossos países "congéneres" (França, por exemplo) há literatura actual que aborda, sem complexos e sem higienizações, estas enormes teias de dinâmicas, africanas, nas suas consociações e oposições com as europeias, asiáticas, americanas. Antes do colonialismo. Durante o colonialismo. Nesse labor se "desconstroem os imaginários". Não com este panfletarismo. Serôdio. Medíocre. Inaceitável no Museu Nacional de Etnologia. No Estado.

22
Nov24

"Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário", no Museu de Etnologia

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Visitei ontem, detalhadamente, esta exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário", apresentada no Museu de Etnologia (ao estádio do Restelo). A exposição é constituída por painéis de textos e iconografia, que condensam 30 artigos, cada um de diferente autoria. São apresentados num catálogo, com 342 páginas, vendido a 40 euros. Foi-me emprestado. Entre os seus autores, na maioria historiadores, há muitos que li ao longo de anos, vários conheço pessoalmente, e de alguns sou amigo (pelo menos até lerem este postal...).
 
Deixo já a minha impressão (sabendo que diante dela muitos apenas confirmarão que eu sou um reaccionário do piorio, neocolono até e, pior do que tudo, um verme neoliberal). Como catarse da ira que (ainda) sinto.
 
Os textos invectivam, grosseiramente - de modo básico de tão simplista que é, e sob desonesto viés, tamanho que censório -, a presença e posterior ocupação portuguesa. Num patético discurso anticolonial, que nem anacrónico é pois tão medíocre resta. Ou melhor, rasteja, num lamaçal ideológico "bon chic bon genre". E que evidencia uma estuporada vontade "pedagógica" - distraída do facto de não estarmos já em Paris 1964 ou Lisboa 1974... Constituem 7 "fascículos", partes se se quiser ter boa vontade, com temas repetidos, de estrutura descuidada.
 
Os painéis estão pessimamente impressos - apesar da longa lista de patrocinadores... A disposição é pobre (a exposição quer-se concêntrica mas isso é inicialmente imperceptível, é preciso chegar alguém para nos informar, nem sinalética souberam colocar para obstar à amontoada montagem). Na iconografia associada abundam os erros de legendagem (por exemplo, uma fotografia está presente em três painéis com legendas diferentes, uma outra duas, etc.) - mas isso até é o menos diante dos constantes disparates apostos nos textos. Quase culmina com a transmissão de vídeos musicais do actual afro-pimba, com os habituais traseiros femininos em destaque, uma coisa ridícula.
 
É também acompanhada de um conjunto de artefactos africanos, mobiliário nobiliárquico, alfaias agrícolas e, claro, os lendários "manipanços" - grosso modo desde uma (boa) peça da Reinata, as obrigatórias caraças de mapiko, passando por outras esculturas do Mali (??!!, o que estarão a fazer ali?) até à penúltima da exposição, uma porta Dogon (!!??, o que estará ali a fazer?) . O motivo desta associação escapou-se-me, mas presumo que para além do "ai, é tão gira esta peça, temos de a mostrar!", queiram no seu conjunto mostrar aos visitantes que os "pretinhos", perdão, os "afroascendentes" também tinham agricultura, chefes e, imagine-se, religião. E que, claro, sabiam trabalhar a madeira... E até tinham talento para isso. ("Atenção, também eram capazes de fazer olaria....").
 
Quanto ao livro, como é óbvio não pude ainda ler o calhamaço (342 páginas, repito). Mas no metro corri a ler o artigo de João Pina-Cabral e Joana Pereira Leite sobre o ocaso colonial em Moçambique. Apenas para ver se lá estava o disparate, demagógico de ignorante, espetado no resumo posto no painel respectivo (da autoria deles?). Não está, pelo menos de forma explícita. Mas, de qualquer forma, o que ali está pendurado envergonhará qualquer autor.
 
E estamos nós em 2024. Isto seria desesperante se não fosse ridículo. O ridículo da academia portuguesa.
 
Como qualquer antropólogo português sabe - ainda que nem todos o digam em público, mas todos o dizem em privado - o Museu de Etnologia (ao estádio do Restelo) foi há décadas entregue a uma Comissão Liquidatária, gerida por Joaquim Pais de Brito, a qual cumpriu o seu trabalho com denodo e eficiência. O mausoléu posterior tem sido gerido com a competência adequada.
 
Agora, em más horas, foram as cinzas remexidas. Ao que parece esta tralha estará "patente ao público" durante um ano. Como saberão os meus "amigos-FB" e leitores de blog - pelo menos os que (me) visitam de vez em quando - a minha filha e a minha irmã proíbem-me de usar o calão. Por isso escrevi este texto longo. A substituir o rol de palavrões peludos que fui dizendo ao longo das horas que ali desperdicei.

16
Ago24

Biblioteca José Capela (José Soares Martins)

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Uma notícia que me enche de júbilo. Esta é a igreja de Nossa Senhora do Livramento (a dita Catedral Velha), sita na marginal do Rio Bons Sinais, erguida entre 1776-86. Com a construção do novo templo, inaugurado julgo que em 1974, e a independência - com a concomitante partida de muitos católicos e alteração das relações entre igreja católica (e outras) e Estado (e empresas) - estas instalações foram decaindo.
 
Recentemente a Associação dos Bons Sinais - dedicada à promoção sociocultural da Zambézia - conjugou esforços para reabilitar este património, tornado Centro Cultural Bons Sinais.
 
Ora, na semana próxima, dia 22 de Agosto, inaugurará em instalações adjacentes, agora construídas, a sua Biblioteca, que decerto virá a ser preciosa para a cidade. E a qual será denominada "Biblioteca José Capela (José Soares Martins)", uma homenagem muitíssimo devida ao historiador que tanto trabalhou sobre a história zambeziana. E moçambicana. E também ao exemplar cidadão que tantou pugnou por uma melhor compreensão mútua entre os nossos países.
 
O meu júbilo com a notícia não é "protocolar", formal. É mesmo real. Pois tenho para com José Capela (1932-2014) - que era o pseudónimo historiográfico de José Soares Martins - uma enorme dívida de gratidão pessoal. À qual associei uma outra, intelectual, lendo-lhe a vasta obra, que me foi preciosa para entender Moçambique, o Portugal colonial (e um pouco do Portugal actual).
 
Não as saldei, a essas dívidas, apenas tentei enunciá-las num texto que em tempos lhe dediquei: "José Capela: o escravismo em Moçambique como violência estruturante".
 
E como tal aqui venho saudar a Associação dos Bons Sinais pela belíssima e tão justifica iniciativa. E fazer votos para que Quelimane, e a Zambézia, muito fruam a nova biblioteca.
 
Adenda: antes deixara uma breve nota aquando da sua morte, em 2014.  E também uma curta recensão a dois dos seus livros (Conde de Ferreira & Ca. Traficantes de Escravos", "Delfim José de Oliveira, Diário de uma Viagem da Colónia Militar de Lisboa a Tete, 1859-1860"), e uma outra recensão ao seu "Caldas Xavier. Relatório dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1884". 

13
Ago24

Passado colonial

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(Isto não é um ensaio, e muito menos um artigo. É um desabafo. )
 
Na fotografia estou eu no Mossuril, impante quarentão ladeando o velho canhão pátrio. Não estava ali traumatizado, nem me sentia um Atlas com o peso da História aos ombros. Nem o devia estar. Nem sentir...
 
1. Para quem não saiba o Mossuril foi durante séculos um dos cais de embarque para a Ilha de Moçambique, que lhe está defronte. Esta - sempre romantizada, com laivos de poesia (há muita versalhada sobre o sítio) ou de devaneio turístico - foi sempre um entreposto, ali se carregavam as embarcações as quais seguiam Índico afora. E, como outras feitorias portuguesas em África (ditas "possessões"), sobreviveu séculos com as taxas alfandegárias e os ganhos comerciais dos... funcionários. Pois desde XVI - pelo menos - ali chegavam as caravanas vindas do interior, fronteiro ou muito distante. Trazidas por gentes várias que vieram a ser ditas macuas ("selvagens", na língua das gentes algo sualízadas do litoral, pois vistos como inferiores boçais do  mato), por ajauas, por outros. Algumas caravanas iam até ali, para Quelimane também, tal como ao Ibo, outras calcorreavam rumo a outros portos exportadores onde inexistiam portugueses, na demanda de melhores custos-benefícios.
 
Ao longo dos séculos vários foram os produtos transportados. A partir do primeiro quartel de XVIII e, acima de tudo, durante XIX o que mesmo cresceu, com enorme afinco - uma verdadeira "bolha" para falar como agora -, foi o comércio de escravos. Lá para meados de XIX isso foi ilegalizado mas continuou como "tráfico", e seguiu - assim mais lucrativo, qual bootleg da Lei Seca americana - até inícios de XX. Progressivamente mais difícil, e também mais raro, mas ainda assim numa azáfama de transportadores terrestres, vindos cada vez de mais longe, pagando portagens aos sucessivos "donos da terra" - tipo as chefaturas ekoni do interior de Cabo Delgado ou os namarrais que se chegaram à Ilha para cobrar ainda mais caro (mas a mitografia nacional veio a torná-los "heróicos", por se terem oposto à ocupação portuguesa). E uma azáfama de transportadores marítimos, árabes, suaílis, franceses, holandeses diz-se, brasileiros também e muitos. E portugueses.
 
Lá mesmo para o final, século XX já encetado, os portugueses (e julgo que também os franceses, mas assim apenas de memória não o posso afiançar) tiveram um episódio cristão bem denotativo: embarcavam-se os desgraçados, no convés estava um padre, "baptizava" as criaturas, elas "assinavam" um papel, e eram "elevadas" a cristãos trabalhadores livres, "contratados". E seguiam às ilhas índicas. (Vá lá, chamai herege a este ateu.) Depois isso acabou - dizia-se, e bem, "Britain rules the waves" e era cada vez mais difícil, pois esses não queriam mesmo tais práticas.
 
Já República feita, mandando a maçonaria e os antepassados dilectos do PS - mais os terroristas que hoje seriam do Bloco -, os portugueses adaptaram-se. E viraram-se para arregimentar gentes, enviando-as também como "contratados" para São Tomé, às roças que por lá medravam. Iam para a... vida toda. Seguiam tantos, e também recrutados para as minas sul-africanas (trabalho que dava gigantesco lucro ao... Estado, tipo os médicos cubanos de agora que pagamos a Havana, mas vivendo então bem pior), que os administradores do centro e norte contestavam tais práticas, pois faziam escassa a mão-de-obra por essas paragens, tão necessária para plantações (onde as havia) e para ... o trabalho forçado. Tudo isto está escrito, nos arquivos e em livros.
 
2. Nesse rumo foi-se instalando o colonialismo moderno, a "ocupação efectiva", de facto terminada lá pelos anos 20s. Na tal I República, trapalhona. E, depois, no Estado Novo, competente q.b., mesmo que se algo trôpego colónia adentro. O regime europeu em África foi bastante diversificado, consoante o país colonizador, os tipos de colonos chegados, as características dos colonizados. As especificidades de cada uma das colónias. Ainda assim tinha duas características básicas:
 
a) racismo: a crença na legitimidade da tutela exercida sobre os locais, pretos. Estes considerados inferiores por condição racial, assim individual e colectiva. Ou por um estado transitório, seu contexto, seu "atraso", assim também colectivo, mas possibilitando a ascensão "civilizacional" individual. Grosso modo, diferenças ditas como entre a visão segregacionista e a assimilacionista. Na administração portuguesa conviveram as duas visões, até mesmo coabitaram, desde a mais desbragada consideração da impossibilidade dos pretos ascenderem, até à crença de que "a seu tempo" evoluiriam a contento. Cerca de 1950 vingou a mais aprazível versão oficial assimilacionista - que tinha sido esfacelada desde a tal República -, aquilo de "os rapazes fazem-se". E na década de 60 - após a reforma de Adriano Moreira, imposta não pela sua magnitude mas pelos "ventos da História" - as barreiras raciais administrativas foram muito aliviadas, as sociais algo matizadas, nesgas de assimilacionismo urbano medraram.
 
São essas nesgas que sempre surgem convocadas no memorialismo dos ex-colonos, a ladainha dos actuais sexagenários e septuagenários do "eu tinha indianos e mulatos, e até negros na minha turma de Liceu", "nós lá em casa tratávamos bem os empregados", "nunca vi racismo", "os pretos andavam na rua", etc. São estes aromas benevolentes que permitem que um tipo como Rui Ramos vá em 2024 à rádio disparatar "a descolonização começou em 1961", para encanto de Maria João Avillez - essa que eu ouvi, com estes ouvidos que o forno cremará, clamar diante de uma elite moçambicana muito crítica (demasiado crítica, em meu entender) "vocês não gostam de nós?, depois de tudo o que fizemos por vocês?!!". Isto não serve para entender o real. O passado. E um bocadinho do presente.
 
b) opressão e sobreexploração: as formas de opressão eram várias e os seus conteúdos diversos. Também há muita coisa escrita - sim, sei que muita da literatura anticolonial era muito militante, antes e depois das independências, a gente torce o nariz às formas selectivas dessas narrativas e análises. Mas é preciso não querer ver os âmbitos em que desvalorizações e a proibições eram exercidas para as ignorar, ou dulcificar. E depois a sobrexploração. Dir-se-á (e bem) que em Portugal também os direitos laborais (e outros) eram escassos. Mas por ali eram diferentes: a corveia ("trabalho por papas") - para o Estado e para os privados que tivessem boas ligações com a administração - era pesadíssima. E imensa - e não é preciso ser um esquerdalho para relembrar isso, leia-se o bispo da Beira, Soares de Resende, um prelado conservador (um dos seus livros levou como título "Ordem Anticomunista"), exasperado com a apropriação continuada do trabalho  africano. E as culturas comerciais forçadas, que eram imposições muito gravosas sobre os pequenos agricultores (quase toda a gente), praticadas em muitas áreas. Entenda-se, tudo isto se associava a castigos corporais recorrentes. Que as crianças e adolescentes urbanos não viam ou, pelo menos, não percebiam - e por isso, por não saírem do seu anacrónico saudosismo, continuam a remoer espúrias negações.
 
Após 1961, as reformas legislativas alteraram os regulamentos mais impositivos e discriminatórios. Pouco depois Salazar já falava de um futuro (imaginado como algo longínquo) de "comunidade de países lusófonos", conjugação de interesses e sentimentos sedimentada pela unidade da língua portuguesa - mas ainda não lhe ocorrera a necessidade de um novo acordo ortográfico. Mas ainda que em alguns núcleos, particularmente urbanos, a situação se tivesse matizado, permitindo alguma mudança no acesso de nichos da população negra a serviços, até empregos, as formas de opressão e sobreexploração não desapareceram, pura e simplesmente. As práticas continuaram, avulsas porventura mas não apenas episódicas. Pois as categorias mentais, as concepções ordenadoras dos interrelacionamentos, mesmo sendo vividas de formas distintas tanto por colonos como por colonizados, não desaparecem num ápice (como clamam os "críticos" actuais, no histrionismo de apontarem perenidade imorredoira entre os portugueses das formas extremas do ideário colonial), nem as condições económicas casam com imediatas alterações radicais, principalmente se sob uma administração autoritária e socialmente enviesada.
 
3. E em tudo isto a repressão. Em Portugal vivemos não só o cinquentenário dos "gloriosos capitães de Abril" como continuamos a louvar a "resistência antifascista". Ora o 28 de Maio e o subsequente Estado Novo advieram da devastada e perversa I República - e 2010 podia ter-nos ensinado isso, mas não vejo ninguém na imprensa (no "Público" ou quejandos) a insistentemente exigir o ensino dos detalhes da trapalhada republicana aos petizes do secundário... E a ditadura salazarista sobreviveu décadas com a anuência de forças armadas, policiais e da... população.  Houve repressão, claro. A qual depois da II Guerra Mundial se atenuou (os tais "ventos da História"). Continua-se a ouvir falar das desgraçadas mortes de José Dias Coelho ou Catarina Eufémia (Delgado é um caso muito diverso) mas o certo é que mortandade foi escassa. Não estou a dizer que foi uma ditamole. Mas sim que tal como o tratamento dado aos presos políticos "doutores" ou "filhos de doutores" era diferente do dado aos do "povo", também a repressão em África era muito mais carregada. 
 
É 1994, meu primeiro trabalho em Moçambique, estou em casa de Namwenda, um velho régulo, chefe mwekoni, está também Kolokoha, seu congénere - ambos postos da antiga chefatura macua-meto Inkigiri, dessas que in illo tempore haviam estado metidas até aos pescoços no comércio escravista. E mais uma dúzia de homens velhos, conselheiros, cabecilhas de parentelas. Eu estou a perguntar sobre as transições agrícolas do tempo colonial até àquele presente - mas deixo a conversa, animada, divagar. Até porque o que me interessa nem são as tais mudanças, estas são só pretexto. Contam-me que "antes de ter entrado a Frelimo", durante a "guerra dos macondes", os portugueses prenderam vários chefes macuas - entre os quais Namwenda - e levaram-nos para a prisão do Ibo. De sevícias em sevícias alguns haviam morrido, outros depois foram levados para a Machava (então Lourenço Marques) e desaparecido. Eram camponeses, macuas, nada tinham a ver com a guerra de independência - todos os que tenham visto filmes de guerra, tipo "Vietname", reconhecem a situação: passam os guerrilheiros a população encolhe-se, vêm os dos exércitos regulares e acusam-nos de cumplicidade e reprimem. Mas só ali, naquele episódio, já se fizera uma mole de "José Dias Coelho".
 
A conversa segue, longa tarde. Eu sei que o gravador cerceia a liberdade alheia e por isso escrevo, frenético, o que me vão dizendo. Voltamos à agricultura, ali chegou um projecto de incentivos à cultura comercial de milho e também de tabaco. Pergunto como eram os incentivos no tempo colonial. Sobre esse "fomento" logo falam da palmatoada, e descrevem. Eu sou jovem, inexperiente, e deixo escapar um esgar, impressionado. Namwenda fala, sorrindo, e todos se riem, pergunto a Tomás Brito, meu intérprete, qual a piada. Ele responde, traduzindo: "não foi você!". E todos se riem, percebendo o que está a ser traduzido mesmo que não entendam português. Eu sorrio e penso "foda-se!", "que lição!".
 
4. Ultimamente o tópico do "passado colonial" (de facto os do passados pré-colonial e colonial) tem sido sugado por um feixe de jornalistas e académicos oriundos de partidos de origens comunistas. As abordagens são panfletárias, enviesadas. As aleivosias historiográficas são constantes, as tiradas demagógicas comuns. Ora não me parece que seja necessário doirar a pílula do passado - o qual, aliás ,está patente em vários textos consistentes, e disseminados, e é interesseiro que esta gente surja repetidamente anunciando um estado de inocência da sociedade portuguesa sobre o seu passado.
 
Muito mais do que discutir as mariolices que se vão escrevendo conviria perscrutar a agenda política que tem essa minoria altissonante. De uma forma mansa poderei convocar a ideia de patriotismo de Orwell, que o disse um "conforto identitário". E o que esta extrema-esquerda identitarista deseja é romper o nosso "conforto identitário" português. Mas qual a sua agenda mais profunda, para além das pequenas benesses estatutárias (o apreço dos pares, por exemplo) e de pequenos financiamentos (os projectos, as performances, os colóquios)?
 
Cada um interprete como queira as ambições desta gente, neste seu afã de demonizar um passado que encerra numa visão que quer ser bicromática, a do mal e do bem, insensível à miríade de situações que - mesmo neste enquadramento colonialista - foram vividas. E que quer apagar os múltiplos reflexos e refracções que as variadíssimas dimensões do colonialismo tiveram e têm, em Portugal. E, mas isso então é que nada lhes interessa, nos países africanos antigas colónias.
 
O que me é relevante é não ser preciso higienizar o colonialismo, ou mesmo vasculhar em busca de um ou outro aspecto menos opressor para o poder contrapor, para perceber que estes tipos d'agora não querem entender melhor a História. Querem aldrabar - como o socratista Vale de Almeida quando clama ser Portugal um apartheid. Ou querem exercer a sua patética candura - como o (ex?)comunista Francisco Bethencourt quando vem perorar que é preciso pagar "reparações" para que as sociedades tenham um melhor  relacionamento futuro.
 
Há tempos conversava com um antigo - e excepcional - meu professor, PC "dos tempos", homem de esquerda profunda, o qual deve ter andado por esses movimentos pós-Perestroika, nem perguntei, e também ele incomodado com estas constantes patacoadas: "estes tipos sentem um défice de não terem feito a luta antifascista, anticolonialista, não tinham idade para isso, então afocinham agora nisto...", rematou. Ri-me, claro, concordando em parte, pois alguma coisa virá desse pobre entendimento autobiográfico.
 
Mas não basta como explicação global. Pois isto se faz pagar. Até a Gulbenkian, como vimos há pouco tempo, paga esta tralha.
 
(A ver se um destes dias volto ao assunto, à tal agenda política desta gente)

 

31
Mai23

O Conde de Ferreira

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Há 11 anos José Capela publicou o livro "Conde de Ferreira e Cª: Traficantes de Escravos", colecção de biografias de comerciantes de escravaturas ("negreiros") do século XIX. Quando ele morreu deixei no "Canal de Moçambique" esta muito breve recensão a esse livro (e a outro que ele publicara no ano seguinte, uma verdadeira pérola: "Delfim José de Oliveira..."). Foi uma espécie de homenagem minha, pois Soares Martins (de pseudónimo Capela) fora muito importante na minha vida e tinha (e tenho) para ele uma enorme gratidão. E um grande respeito intelectual, também (mas não só) por ter passado décadas a vasculhar documentos e a publicar, sem pejo nem adornos, sobre como o comércio de escravos foi estruturante no pré-colonialismo português em Moçambique. E como isso moldou as características do subsequente regime colonial - apesar das tralhas lusotropicalistas e lusófonas que vão subsistindo, já para não falar das dulcificadas invocações dos "bons velhos tempos", que tanto misturam as normais (e respeitáveis) memórias individuais de juventude com pronunciamentos de cariz sociológico. Enfim, talvez com um bocadinho de exagero, mas cheguei aos 50 anos com a sensação de que se tive algum "maître à penser" acabou por ser ele... sem que isso possa macular a sua memória devido às atoardas que vou botando. Mas já estou a divagar, avante,
 
Nesse "Conde de Ferreira..." Capela deixou explícito que vários desses comerciantes de escravos regressaram do Brasil mais ou menos após a ilegalização da actividade e se integraram na sociedade do novo regime liberal (e o financiaram), usando as doações beneficientes para ascenderem socialmente. Nisso também patrocinando instituições que ainda existem (misericórdias, hospitais, etc.).
 
Sei agora por intermédio do historiador João Pedro Simões Marques que aconteceu o que eu esperava há já anos - os cirugiões plásticos da História descobriram o Conde de Ferreira (tão presente por esse Portugal afora, ainda que quase ninguém saiba quem foi). E o "Público" (claro) já está em ardores de expurgar as tais instituições dessa memória...
 
Eu continuo na minha, ao que consta na documentação da época (ainda que um pouco posterior) o malvado D. Pedro I não só castrou um aio devido aos seus ilegítimos actos sexuais (um antecessor do prof. Ventura e seus acólitos, está visto) como matou por mãos próprias uns esbirros do seu pai (e terá até comido parte do coração de um deles, a crer ou no cronista ou na colecção de cromos a que tive acesso). E apesar de tudo isso, que tanto agride os actuais valores, continua ali, plantado no centro do nosso Mosteiro de Alcobaça, como símbolo de amor, ainda por cima. Não será, mesmo, de acabar o que os franceses começaram, e rebentar-lhe com a tumba? Ou, pelo menos, retirá-la dos nossos olhos, evitar aquele elogio à memória da ditadura, da pena de morte e da castração por infidelidade amorosa (invertida ou não)?

13
Mar23

Polémicas literatas

jpt

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Não sou muito dado a livros, quase nada às novidades e ainda menos às coisas e causas da literatura portuguesa. E vivi 20 anos fora. Por tudo isto nada percebo destas polémicas literárias, trâmites que associava a um "Chiado" bem recuado, lido no liceu da vida - e nessa candura bem me surpreendera há poucos meses ao saber que o bom do António Cabrita, vindo de Maputo "a banhos", acabara rojado à calçada portuguesa em plena Av. de Roma ao procurar ele (no seu intrínseco civismo) apartar uma contenda entre poetas e críticos algo excêntricos aos escaparates. Bisonho episódio que me alertara para que nesta era de podcasts e tik toks ainda há, a sul do Trancão, quem se exalte em torno de livros... Mas tudo isso se me escapa, pois a última polémica livresca de que me lembro foi sobre este "A Tragédia da Rua das Flores", então confrontando-se os veementes avessos à publicação do calhamaço rascunho e os acalorados defensores da sua imprescindibilidade, tudo isso quando o meu pai teria mais ou menos a minha idade de agora... (e quem o lerá hoje em dia?).
 
Vem-me isto ao teclado diante do actual debate entre os autores, e respectivos amigos e adeptos, das duas recentes biografias de Pessoa, uma dita de pendor "académico", outras vocacionada para ser "popular". A surpresa para mim é tetra (que não tétrica...): 1) que os autores se zanguem em público, e de modo tão desabrido, tanto que até dá para demissões nos "jornais de referência"; 2) algumas das matérias que provocam dissenso - entre as quais avulta a relevante temática sobre se Pessoa frequentaria prostíbulos femininos, era dado aos "prazeres helénicos" ou teria morrido virgem. Isto para além de ser tópico de debate o tamanho do seu membro viril; 3) que tanta gente compre (e até mesmo leia) biografias, já 12 mil da "académica" e a "popular" para lá caminhará!... - mas isso é coisa do meu gosto, avesso que vou a tal molde, para o qual não tenho paciência; 4) o tamanho das tais muito compradas biografias, ao que consta cartapácios de 1200 páginas (a "académica") e quase 1000 (a "popular")! Tanto há para dizer... Enfim, nada tenho contra quem escreve, quem lê, nem mesmo contra quem discute o que escreveu ou leu. Apenas me surpreendo.
 
 
 

07
Set22

Independência do Brasil

jpt

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Cumprem-se hoje 200 anos da independência do Brasil. É tonitruante o relativo silêncio, qual murmúrio, em Portugal sobre o assunto - publicações, filmes, documentários, congressos? Nem mesmo o recordar, trazendo para os escaparates, do que foi sendo bem feito sobre essa época. Razões para tal haverá, desde a pequenez (ultramontana) que ao processo ainda sente como "perda" - e que na senda deste Ventura de agora ainda chamará "terroristas" aos Tiradentes - e o patético (identitarista) que se quer "desculpar" da História, a ver se nisso pingam uns subsídios extra para as ONGs e centros de investigação que controlam.

Enfim, deixo aqui memória desta interessante "Oceanos", n. 44 (2000), com  alguns artigos interessantes sobre portugueses no Brasil independente, que foi coordenado pelo antropólogo Robert Rowland - estou a folhear/reler hoje, como celebração...

E deixo um desejo sincero aos meus (poucos) amigos e amigos-FB brasileiros. O de que daqui a 200 anos o Brasil tenha evoluído o suficiente para que os seus problemas já não sejam culpa do colonialismo português. Será difícil, pois até agora não conseguiram libertar-se disso. Mas talvez venha a ser possível...

24
Jun22

Sita

jpt

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11
Jun22

Marcel Detienne

jpt

(Marcel Detienne forain chez tous. Comparer l'incomparable, filme de Thomas Lacoste)

(Marcel Detienne, Apollon, le bel assassin de Delphes, 1995)

(Réflexions autour du comparatisme, de l'anthropologie et de l'histoire, 2009, conferência no Institut d'Études Avancées de Nantes)

(Marcel Detienne, Comment être français 1, entrevista de Sylvian Bourmeau)

 

(Marcel Detienne, Sur Claude Lévi-Strauss, entrevista de Sylvian Bourmeau)

 (Marcel Detienne, Sur l’identité nationale, entrevista de Sylvian Bourmeau)

07
Fev22

Ngungunyane, vassalo ou aliado

jpt

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Em 2021 morreram vários amigos e conhecidos, foi mesmo um ano tétrico. Em meados de Dezembro juntei-me às minhas estantes e nos tempos seguintes reli vários livros que alguns deles deixaram, não por saudosismo mas como forma de avivar a memória que deles guardarei. Um deles foi Gerhard Liesegang - que recordei aqui, aquando da sua morte -, historiador alemão com largas décadas de investigação e docência em Moçambique. 

Parte substancial do seu trabalho foi escrito em alemão. E deixou vários artigos em português e inglês publicados em revistas, e ainda alguns inéditos (e até algo formalmente dessarumados) que estão na sua página na rede academia.edu. E nisto o único livro exclusivamente seu que tenho nas minhas estantes é este Vassalagem ou Tratado de Amizade? História do Acto de Vassalagem de Ngungunyane nas Relações Externas de Gaza, publicado pelo Arquivo Histórico de Moçambique em 1986. Trata-se de um opúsculo com 36 páginas, muito provavelmente uma condensação de um excerto do seu trabalho de doutoramento. Apesar da curta dimensão é precioso, e não sei - apesar de  naquela época as tiragens dos livros terem sido muito elevadas - se ainda estará disponível no mercado livreiro.

O tema é aliciante, uma resenha das relações diplomáticas entre Gaza e Portugal, grosso modo entre 1860 e 1890, mostrando as negociações e as diferentes leituras que aconteceram nos dois lados sobre o conteúdo dos acordos instituídos. O autor recorda o acordo (ténue, direi eu) de 1861 entre a Gaza do recém-empossado Muzila e o reino português na transição entre Pedro V e Luís I, no qual aquele - imerso na guerra sucessória - acolheu apoio do poder de fogo dos caçadores de elefantes portugueses (entre os quais o célebre Diocleciano Fernandes das Neves), em troca de direitos de caça. E ainda da concessão de terra nas cercanias da então Lourenço Marques, a sul do rio Incomati. E Liesengang deixa indícios da dupla interpretação que esse inicial acordo já levantara, com os portugueses a considerarem que esse acordo indicava ter Gaza aceite uma subalternidade (como "régulo tributário"), enquanto os changanas entenderam que essa concessão de direitos de exploração fundiária implicaria uma subalternidade do entreposto de Lourenço Marques. 

Nas duas décadas seguintes as dinâmicas promovidas pelo acordo de 1861 foram-se desvanecendo. E entretanto as relações diplomáticas de Gaza foram-se pluralizando, com delegações enviadas a vários estados africanos, à novel república dos africanderes e até à Grã-Bretanha. E com a ascensão de Ngungunyane em 1884 outro acordo foi feito. O qual, como o autor demonstra, teve não só uma dupla interpretação, em Gaza e em Portugal, como mesmo uma dupla formulação. Ou seja, na corte de Mossurize o acordo estipulava uma aliança, pela qual era aceite um representante residente português, como se um embaixador, encarregue da intermediação dos assuntos com Portugal - que foi de início José Casaleiro Rodrigues, um veterano na região que fora o negociador deste acordo. Enquanto na corte de Lisboa foi consagrado outro texto - e outra percepção do seu conteúdo -, que afirmava ter o reino de Gaza aceite um estatuto de vassalagem.

Ou seja, o livro são 36 páginas interessantíssimas para entender as relações entre Portugal e as entidades políticas locais antes da "ocupação efectiva". E são, evidentemente, matéria-prima mais do que suficiente para enfrentar os mitógrafos, portugueses e moçambicanos, que continuam a propalar a léria dos "quinhentos anos de colonialismo".

Bloguista

Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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