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Nenhures

Nenhures

15
Fev25

Uma morte, lá no Porto

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Bertrand.pt - Golpe de Estádio

Corrupção, espancamento de jornalistas, tráfico, falsificação de apostas desportivas, um sem fim de crimes e ignomínia. Quase tudo disso escrito há pelo menos 30 anos. Mas ainda assim consagrado por tantos, desde esse comentador televisivo que os portuenses elegeram para seu autarca, até ao proto-delfim de Guterres que a escória PS nos quis impingir. Até mesmo, imagine-se, pelo general Eanes (e nós que tanto esforço fizemos para esquecer o comendador Gomes...).
 
O idoso morreu. Findou o padecimento. Mas enoja este coiro de elogios ao escroque. Sinal do país que somos.

31
Jan25

Marianne Faithfull

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(Marianne Faithfull - Broken English Live)

Eram mesmo outros tempos, tínhamos muito menos informações. À Marianne Faithfull cheguei na adolescência apenas por apanhar este LP "Broken English" - comprado na do Apolo 70?, na loja de discos baratos da Baixa? - que teria ouvido num ápice na rádio. Não sabia quem era ela, o enorme pedigree rock que tinha - sabia lá eu que teria sido a musa da canção da minha vida, a "You Can’t Always Get What You Want" dos Stones, sabia lá eu do implícito desta "Broken English"... Ficou-me ela para sempre. E ainda mais quando fui crescendo e sabendo quem era ela.
 
Morreu agora. Lembro-a não como a beldade do panteão rock. Mas como esta matrona imensa... intensa.

13
Dez24

Morreu Noel Langa

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noel langa.jpg

Acabo de saber que morreu agora, aos 86 anos, o meu bom amigo Noel Langa - aqui ao centro, entre Estevão Mucavele e Malangatana, numa fotografia já com um quarto de século.
 
Um pouco antes dessa época o Noel animara a sua casa, transformando-a em verdadeiro centro cultural. A minha primeira saída nocturna em Maputo, no início de 1995, foi quando me levaram até lá para ouvir jazz. Eu não fazia a mínima ideia de quem era o proprietário, o tão afável homem atrás do balcão. Nem em que zona estava: a Munhuana - o velho "Bairro Indígena", como o Noel ainda dizia, e do qual era símbolo, vim a sabê-lo anos depois, quando regressei à cidade e o conheci. Ficando então a saber que o Noel era também também dono de uma pintura extravasando uma espécie própria de candura - que nada é sinónimo de "naiveté".
 

noel.jpg

Deu-me a sua amizade, que agradeci reconhecido. Várias vezes visitei a sua casa - como aquando desta fotografia -, mantida como local de animação cultural, porta aberta aos jovens, mas já desactivada a parte noctívaga. Normalmente indo com Ídasse, nosso grande amigo comum. Às vezes levando grupos de visitantes, ali a encantarem-se. Outras vezes só nós mesmos, para a conversa...
 
A última vez que fui a Moçambique coincidiu com o seu 79 aniversário. Lá me agreguei ao convívio na Munhuana - um belo almoço, chiguinha, cacana e o seu celebrado "Bacalhau à Gomes de Cá", símbolo do seu repousado, de ternurento, e dulcíssimo humor.
 
O Noel viveu em paz. Que melhor se pode dizer de alguém?
 
Adenda
 

Uma entrevista concedida pelo Noel Langa ao Jorge Dias:

(Palavra do Artista - Noel Langa)

25
Out24

Canções românticas

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Então agora gostas do Marco Paulo?, perguntam-me por mensagem os (quase)censores Não tanto das suas canções. Mas gosto da sua figura, por ser popular e pelos enxovalhos que recebeu ao longo da carreira. Que - e com teor bem pior - perduraram para além daqueles 70s e inícios de 80s quando todos os músicos portugueses (os do rock, acima de tudo) eram destratados em público - à excepção, claro, dos "de intervenção" - coisa que minguou com o êxito do Rui Veloso.
 
A evolução do tratamento dado a Marco Paulo, paulatinamente tornado mais "respeitável", denota não só a real evolução cultural do país mas mais mostra como esta evolução veio do "povo" (sempre dito ignorante) e não da pequenota-burguesia, feroz de preconceitos e de arrogância censória, que julga "pedagógica".
 
Se gosto de cantores românticos? Sim, claro, amo Sinatra. E ouvi dezenas de vezes esta cançoneta romântica, verdadeira súmula da coisa: imaginando-me o velhote atrevido (jamais sugar-daddy, atenção...), o velhote atrevido, dizia, enleado com a bela jovem desvanecida? Antes e hoje, ainda mais no agora mesmo!? Não confesso tal coisa, apenas deixo a dúvida...
 
E avanço até que esta versão tem uma dimensão sociológica. Esmiucei-a tanto que até escrevi sobre o assunto: muitos saberão que sou dos Olivais, e sobre isso me repito. "O que é isso dos Olivais?", perguntarão. A resposta está aqui, nesta canção romântica: "Olivais" é o meneio e a onomatopeia que o velhote xunga ("pimba" também se disse) dedica aos exactos 2'35'' à tão bela jovem encantada.
 
Aqui entre nós, rapaziada, quem não gostará de canções românticas? Se estas assim, vividas assim...?
 
Viva Marco Paulo. E os seus colegas...

24
Out24

Marco Paulo

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As reações à morte de Marco Paulo - SIC Notícias

 

[Marco Paulo - Maravilhoso coração]

Desprezado pelos gentrificados - e de que maneiras soezes o foi, vilipendiado por ser quem era e por ser de quem era. Pois amado, verdadeiramente, pelo povo. Cantou, deu-se, até ao fim, muito após a voz lhe doer. Morreu hoje o Marco Paulo. Decerto, tanto assim o surgiu durante décadas, um "maravilhoso coração". E um excelente cantor romântico.

29
Ago24

Uma década após Eduardo White

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De manhã recebo no telefone o programa do simpósio realizado hoje na AEMO, dedicado ao Eduardo White. "Já passaram dez anos?!!!", assusto-me. E sim, logo comprovo, cumpriu-se há cinco dias a década após a morte, inesperada, do Dino, do White. Era a minha última semana em Moçambique, senti-a também como um malvado epílogo.

Os especialistas falarão da sua obra - alguns estão hoje a falar... Que haja leitores. Eu apenas deixo ligação, memória, do texto que nesses dias sobre ele balbuciei no "Canal de Moçambique".  E lembro-me agora mesmo, em sorriso saudoso diante da triste coincidência, do tão difícil Eduardo a entrar-me restaurante adentro, barafustando comigo e com os nossos imensos convidados, mais de oitenta - a Inês fazia 40 anos -, a propósito de... nada, ladeado pelo atrapalhadíssimo sorriso do Jaime. "Estás a desatinar Eduardo!... Comigo não, pá!", respondi-lhe. E assim logo me deu as costas, seguindo a resmungar com o mundo alhures, o que lhe era nitidamente urgente. Até a um qualquer outro uísque que nos sentou juntos. Mas já não.

(O Eduardo White foi companhia no ma-schamba, e também para lá enviando alguns textos).

27
Ago24

Jaime Santos

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jaime.jpg

Morreu o Jaime Santos. Quando fui para Maputo uma das surpresas que tive foi a apetência que ali reinava por saraus de poesia - coisa então algo em desuso por cá. Logo à chegada me deparei com vários. O trio de declamadores que mais ouvi era composto pelo bom do Calane da Silva - que também já foi -, a minha querida Ana Magaia, e o Jaime. Todos eram bastante enfáticos, mas isso mais me surpreendia nele, naquela sua força fragilíssima, de onde lhe viria tudo aquilo? Era um homem peculiar, logo ombreámos, "olhe que o Jaime é um tipo difícil", avisavam-me os mais desatentos àquela sua infinita doçura, às vezes mal disfarçada. "E não sou eu também?", resmungava-lhes... E dizia-lhe disso, ele gargalhava, naquela sua casquinada tão própria.
 
Andei agora aqui vasculhando as prateleiras mais esconsas, onde guardei as coisas da "cultura", catálogos e preçários, folhas de sala, biografias, sei lá mais o quê, do que fui vendo por lá. Procurando materiais com ele, para ilustrar este meu adeus (sou ateu, não uso os insuportáveis RIPs e DEPs, "paz à sua alma", "um dia estaremos juntos..." e quejandas superstições). Mas nada encontro, tamanha a profusão de pastas, não seja por isso... Entre tantos dias mais avulsos lembro-me de uma sessão mais composta, "produção" mesmo, que fez com a Ana Magaia sobre Pessoa & Heterónimos, uma realização muitíssimo bem conseguida. Era para seguir até à Beira, ele próprio não quis, demasiado descrente naquele dia. Teria encantado....
 
Com o passar dos anos fui-me retirando das coisas da "cultura". Nisso vendo-o menos. Mas encontrava-o, quase sempre, quando ia a uma livraria - eram pouquíssimas em Maputo. Nelas - mais na Escolar Editora, seu poiso habitual - ele abancava a ler, tinha "carta branca" devida ao leitor compulsivo e - sempre - pouco abonado que era. Às vezes interrompia o livro para me explicar o que lia. Outras pausava um pouco mais para irmos beber um copo - "vinho" - ao estaminé mais próximo. Outras vezes mal me ligava, embrenhadíssimo num qualquer texto...
 
Esta fotografia que partilho, tirada do mural de Facebook do Tomas Cumbana (e talvez da sua autoria), muito provavelmente será da última vez que o vi declamar, com o mundo irado dentro dele, no funeral do Alexandria, o escultor inacreditavelmente linchado por uma turba desaustinada.
 
Mesmo cá de tão longe, e provavelmente nisso para sempre, "isto" sem o Jaime fica mais deserto.

19
Ago24

O Barbeiro do Alain Delon

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delon.jpg

In illo tempore fugi de Direito, primeiro, e de Sociologia, depois, e fui estudar Antropologia. Um erro, crasso (desaconselho-o às novas gerações - não por causa dos saberes disciplinares acumulados, esses louváveis...). Tal se deveu à complacência dos meus pais, crentes de que eu, de facto então petiz, mesmo se barbado, saberia do melhor para o meu destino.
 
No final da licenciatura (que cumpri de modo trôpego, arrastado e sofrido) tinha de concluir uma disciplina, mal leccionada - sei do que falo, pois vim a leccionar tal coisa, anos depois e alhures, fazendo-o de modo muito melhor e ainda assim mal. Para esse êxito era necessário escrever um trabalho e apresentá-lo oralmente. Era uma "história de vida", coisa então muito em voga, fruto do sucesso de "Os filhos de Sanchez" do célebre O. Lewis e, menos, do anterior "Juan Perez Jolote, biografia de um tzotzil", do mexicano Arciniega. A ideia, nada má de per se, era que da "história de vida" (que não da biografia) de alguém se induziam os feixes constitutivos / constrangedores de determinado contexto histórico.
 
A colegada, impregnada de "sensibilidade etnográfica" - ainda que à bolina naquele Portugal "europeu" que tornou a velha etnografia em meros "salvados", sem que nenhum dos funcionários públicos doutorais a avisasse disso - correu a buscar um qualquer vizinho vulto típico, pitoresco, que lhes contasse a sua "história". Já não me lembro, mas presumo que tenham saído do armazém a velha criada, o pescador curtido pelo Sol, um oleiro ou amolador, etc.. Eu, "do grupo dos Olivais" - como ainda hoje me apresentam - disse uns palavrões, peludos e líquidos, sobre isso de andar a estudar durante os melhores anos da vida para depois ir à procura do "típico". Em monólogo mudo insultei colegas e professores. E fui entrevistar o meu querido barbeiro.
 
Esse era um excepcional "cabeleireiro" (como exigia ser chamado, dado que tinha formação profissional, e disso era ufano) de homens. Aos seus clientes regulares oferecia dois cortes: o da tropa - e quando segui para Mafra fez-me um pente zero à mão (!!!!), tão rapado que o mancebo alferes me veio a dizer que não era preciso tanto... uma obra de ofício mesmo espantosa; e o de casamento, coisa que algo depois fui cobrar, chegado de Maputo na antevéspera do meu feliz enlace.
 
O seu salão olivalense, de labor imparável, era também um refúgio. Ali se acoitavam os jovens depressivos do bairro, "drunfados" claro, os outros "drunfados" oficiosos, pois voluntários, alguns ex-junkies mais mansos, enfim, o colectivo dos desamparados sem mais. E mesmo amigos e vizinhos que ainda seguiam inteiros, ou isso julgavam. Crente Ba'hai, e algo prosélito, mas sem excessos, a todos acolhia e, com imensa generosidade, aconselhava. Num saber que os pobres doutos diriam de "senso comum" mas que a todos acalentava - e por isso sempre regressavam os seus ouvintes. Verdadeiras terapias de grupo...
 
Enquanto nos aparava - com a sua, de facto, magnífica técnica - perorava, incansável. Não só sobre os rumos que cada um presente naquela plateia, real congregação, deveria seguir. Mas também, e essa era tema constante, sobre a sua experiência de vida. Pois ele era um magnífico, grandiloquente, mitógrafo de si mesmo. E o que mais me fascinava era o facto daquela sucessão de mirabolantes episódios ser contada e recontada sem falhas, sem aquelas alterações que desvendam a ficção e, muito mais, a autoficção. De facto, ele era um talentoso mitógrafo, pois crente irredutível do mito que construía, ele-mesmo...
 
E basto credível nisso  - ainda hoje os que o frequentaram afiançam da veracidade dos detalhes então narrados: a participação na resistência armada antifascista, o mergulho na clandestinidade, a partida "a salto" para o estrangeiro, as desavenças com o (micro)movimento em que militava. E o ressurgir da "normalidade", fazendo-se cabeleireiro no Sul de França, estudando isso e estabelecendo o salão em Marselha. Tendo-se seguido a fuga daquele país, para Norte, para mais um mergulho na clandestinidade da resistência armada antifascista. Depois viera o 25 de Abril, a liberdade e o seu regresso ao país. E só então o remanso - laborioso, é certo - da vida familiar, vivida naquela religiosidade bonacheirona, até anafada, de uma imensa generosidade, esse a que nós assistíamos, acompanhávamos. Que tanto me encantava. E a tantos dos meus vizinhos, seus fiéis clientes.
 
Nesse rodopio que lhe fora o vivido narrado havia um episódio que me era mais sonante, a causa da sua fuga de Marselha, norte afora e regresso à luta antifascista clandestina. Pois o seu salão marselhês havia tido um rápido sucesso, a clientela crescera desmesuradamente. Alain Delon cedo se tornara cliente habitual. Mas esse tinha um defeito: julgava que o seu estrelato lhe concedia estatuto privilegiado. Um dia, farto das irrupções de Delon no seu salão, o cabeleireiro disse-lhe, sem rodeios: "Ó Alain, tens de ir para fila como os outros, espera a tua vez...". Claro, o actor, despeitado, mandou os seus capangas violentá-lo, tendo ele fugido, felizmente antes de ser seviciado. E nunca a história faltava, e nunca tinha versões adulteradas...
 
E talvez a lembrança dessa prazerosa, mas convicta, encarnação do Delon de Borsalino seja exemplo maior de como através do cinema a ficção se pode tornar real - verdadeiramente real. Sendo assim uma grande homenagem ao actor que agora morreu. E que fez das suas personagens parte da nossa vida, de forma tão... viva.
 
(Claro, escolhi como meu objecto de "história de vida" o maior mitógrafo que conhecia, o menos típico "informante" que tinha à mão. Porque acreditava, e ainda acredito, que era o mais significante para ser ouvido... Apresentei o trabalho final na minha última aula de licenciatura, dia grande... A assistente do regente, jovem ainda, quando expliquei as causas daquela minha opção, respondeu-me, crítica, lá do meio da sala: "isso é o contrário do que qualquer manual de investigação recomenda!"... Eu, também jovem, ripostei, até sem querer: "se eu estivesse preocupado com manuais tinha ido estudar Gestão" - coisa que, de facto, deveria ter feito, estaria agora numa prateleira algo remunerada, em teletrabalho pré-reforma. 
 
Dispensava-se de exame final se obtida uma nota de frequência bastante acessível, até medíocre. Mas tive de o ir fazer, foram implacáveis... Mesmo assim ainda hoje penso que "O Barbeiro do Alain Delon" foi o melhor texto que já escrevi.)
 
 

14
Ago24

Morreu o Mário "do B'artis"

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Artis.jpg

(Bar Artis, Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

Recém-octogenário morreu ontem o Mário Pilar, o qual sempre dizíamos Mário "do B'artis". Discreto, fez do seu bar um dos grandes pólos daquele Bairro Alto que mudou Lisboa na década de 80.  Abrira-o no início de 1983, na Diário de Notícias, mesmo no centro do que veio a ser a nova azáfama noctívaga do velho e então decadente bairro. Pouco antes estabelecera-se a discoteca "Rockhouse" também na Diário de Notícias, que cedo mudou para "Jukebox", e logo depois o celebrizado "Frágil", ali ao lado, na Atalaia. E para suporte daquilo havia apenas a vetusta "Tasca Azul", como lhe chamávamos, de seu nome "Arroz Doce", que logo gentrificou (como então não se dizia) a clientela, pois defronte ao "Frágil" e pertença da Tia Alice, irmã do Alfredo que sargentava (e sargentou durante décadas) a portaria do então novo bar-discoteca, desde cedo feito coqueluche lisboeta.

E logo o "B'artis" abriu portas. Num registo diferente dessas casas e das que vieram a pulular na área, o qual manteve durante o quarto de século de existência. Uma pequena sala sob decoração levemente bric-a-brac, com mesas fresquíssimas pois com tampos de brecha da Arrábida, música jazz gravada emitida em tom baixo, a convocar conversas, e preços nada especulativos - apetecíveis naquela era de FMI, louváveis anos depois, já na era das "vacas gordas" europeias. E servindo produtos que se tornaram clássicos locais, pois corriam quantidades do excêntrico "Favaios" e, acima de tudo, ali nos socorríamos de umas decentíssimas e sempre lembradas tostas de frango, que nos escoravam noites afora. A clientela era heterogénea, descomprometida no sentido de descomplexada. Ou seja, isenta da real pinderiquice dos modismos, de vestes, modos e ademanes, que preechiam o sacrossanto "Frágil" e adjacentes. Lembro-me de ter lá chegado, aquilo muito recente, eu ainda caloiro universitário, e ter resumido o ambiente: "é um sítio de professores do liceu", naquele sentido de gente não pintalgada de parvoíces...

O Mário era afável, sem falsos companheirismos com a clientela, e isso vinculava-nos. Rapidamente me tornei, e alguns dos meus, residente naquele curto balcão - mais tarde, num aniversário meu, um amigo chegou com um pequeno presente, tinha mandado imprimir na máquina de multibanco um pacote de cartões de visita meus: a morada era a do "B'artis"! 

De facto, o "Bairro" passou a ser o "B'artis". Claro que havia outros sítios apetecíveis. De início passava-se lá a beber um copo, ou mais, depois ia-se até ao "Lábios de Vinho", onde pontificava o Hernâni, espreitar um "Ocarina" ou outro, e subia-se ao "Frágil". Com o passar dos anos esse roteiro foi mudando mas a base, o ponto de encontro (e de fuga, também) sempre era o "B'artis". Ali se continuava a bebericar, antes de se partir à volta obrigatória. O "Frágil" foi-se tornando cansativo, crescentemente homossexual e suburbano, ia-se lá, até com fastio blasé, para se dizer que se fora, e voltava-se ao "B'artis", para depois, claro, avançar até aos "Três Pastorinhos", tornado o grande sítio, belo ambiente e excelente música. E se houvesse dinheiro (e força) seguia-se ao "Lontra" na Rua de São Bento, ou às "Caves Adão", mais tarde até aos poisos nas Escadinhas do Duque e à inicial 24 de Julho. Anos depois, ainda no Bairro Alto abriram casas apelativas, como o "Mahjong", mais coito das gentes cinéfilo-artísticas, e o "Targus", do sempiterno Hernâni, esta mais abrilhantada pelos núcleos da então viçosa publicidade e da explosiva comunicação social. Mas picava-se o ponto por lá, "viam-se as modas", e "B'artis" connosco, até porque a casa cada vez ia fechando mais tarde, e sempre cheia... Pois era ali o sítio, por estar lá o "ambiente". Sem poses, entenda-se.

Sendo ele discreto poucos lembram ter sido o Mário Pilar, casapiano desde sempre, que cativou o palacete do Casa Pia Atlético Clube para aquelas loucas "Noites Longas", que durante cerca de três anos agitaram - e mudaram - a noite lisboeta, não só alongando-a até às alvoradas como também miscigenando os convivas, como nunca antes naquela ainda velha e provinciana cidade. Mais tarde, já na Lisboa Capital de Cultura de 1994 ao Mário Pilar surgiu-lhe mais uma iniciativa de conjugação, metendo-se a empurrar as Noites de Jazz no Café Luso, esse seu vizinho, pondo o tradicionalista mundo do fado a dar espaço aos melhores músicos de jazz nacionais. Então uma quase heresia...

Desde finais dos 1980s, o Mário Pilar foi-se para a Comporta e investiu o fruto do seu industrioso e incansável labor em casas no Possanco e Brejos da Carregueira, pensando numa explosão turística por aquelas zonas. As quais se tornaram o seu mimo. E orgulho. Um precursor, como é agora evidente, sorrimos nós ao lembrá-lo. Atento. Em 2007 decidiu-se a fechar o "B'Artis", trespassando-o (ainda lá está, com o mesmo nome mas outro perfil). Há alguns anos, pouco antes do COVID, fui jantar nas cercanias do Largo do Caldas, estava à porta do restaurante a fumar e passou ele - vivia ali perto. À minha mesa estava gente da "velha guarda", também antigos residentes do balcão do "B'Artis", levei-o até lá. Foi uma festa, horas de conversa, ele notoriamente agradado com o rosário de memórias ali percorridas, e com o agrado, genuíno, que mantínhamos pelo seu bar. Contou-nos da sua vida, fruindo então de uma velhice saudável e bem-disposta. Viajava imenso, pelo Oriente, Japão e isso, chegara há pouco do Irão, preparava-se para partir para a Coreia do Norte (!), naquelas viagens guiadas pelo escritor Peixoto...

"Foi na casa dele que a gente verdadeiramente se divertiu aos 20 e 30 anos", sumarizava o amigo que me telefonou ontem a anunciar a sua morte. "Quando ainda nos divertíamos!", resmunguei, pesaroso, para sua imediata concordância.

O funeral do Mário Pilar é amanhã, quinta-feira, dia 15 de Agosto. A cremação é às 14.00 horas no cemitério do Alto de São João. Lá irei, por causa de tudo isto que narrei. E talvez encontre algum antigo residente do balcão do "B'Artis". E depois da cerimónia teremos de encontrar um qualquer sítio para se beber um "Favaios".

16
Jul24

Olivais

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pinto.jpg

(Postal para o meu mural de Facebook)
 
Nos finais dos 80s, e durante os 90s, a gente juntava-se no "Pinto" na Cidade de Lobito dos Olivais, o café atascado que fora do Sô António e da Dona Irene, os quais durante anos sempre haviam sido extremosamente gentis, paternais até, para com toda a rapaziada que ali acorria a crescer, nisso a beber como se não houvesse amanhãs, e entretanto passara a ser do Manuel Pinto - de longe, de muito longe, o mais competente, simpático e verdadeiro companheiro dono de estabelecimento que conheci nestes meus 60 anos, um "tipo do caraças" mesmo. Estar ali era uma festa - até excessiva, concedo, se vista desde este futuro.
 
A gente, aportada a adulta, a terminar cursos e a entreabrir a vida, naqueles tempos fáceis de juventude e europeias "vacas gordas", no "Pinto" nos chegámos aos "mais velhos", esses que anos antes havíamos visto de longe, cobiçando-lhes motos, carros e, sim, as namoradas, sempre lindas pois a nós inacessíveis. E, talvez mais do que tudo, a postura desprendida, vitoriosa.
 
Os piores anos do bairro haviam já passado e os nossos mais-velhos com que deparávamos eram verdadeiros sobreviventes, haviam passado incólumes as malvadas pragas. Estavam vividos, cada um à sua maneira, mas incólumes. Eram "donos da terra", do bairro Olivais mas também da nova Lisboa que germinava, do Cais do Sodré/Bairro Alto à 24 de Julho e, anos depois, às Docas. É certo, nós tínhamos já muito atrás de nós, tanto que até lhes abríamos caminhos, recantos e becos que eles desconheciam. De certa forma, reconheçamo-lo, éramos mais refinados, de outra "geração". Mas, e também por isso, sabíamos que os mais-velhos vizinhos - então já casados, quase todos pais - tinham "muito andamento" e louvávamos isso. Enfim, as nossas rotas alhures eram um pouco diversas mas em encontrando-nos era logo cumplicidade. E, quando no bairro, "estávamos juntos". No "Pinto"...
 
As décadas passaram, as rotas divergiram, e mais do que tudo o tempo apartou-nos, em tantos casos para sempre. O Filipe, uma doçura de homem - aqui no meio da fotografia - morreu este ano, ontem seria o seu aniversário. Visito-o, saudoso ainda que dele nunca tenha sido íntimo - sim, devido à memória daquela sua doçura, tão rara. Aqui, na já velha fotografia, estava rodeado pelo Morais, insigne piloto de caça, pelo Luís "Casado" (o qual casara muito cedo, e bem, assim ficou nomeado), também dito "Alain Delon" pois bonitão (e que algo se desagradava quando este puto o dizia, provocador, "Alain Velhon"). E pelo Miguel Rodrigues, a beber café, "o ilustre causídico" como o chamávamos evocando a grande personagem Ezequiel Prado, da lavra de Jorge Amado, o Miguel tão meu querido, que tantos (e mais tantas, diga-se) nos julgavam irmãos, "eu o irmão feio, ele o irmão bonito", sempre concluía eu.
 
Dos da foto já morreram quase todos. Só cá estou cá eu, que estaria na mesa da tasca, eufórico. a jogar ao "Capitão Cook" (do qual fui grande campeão). E o Beto - aqui chegado vindo do Chiveve -, à esquerda, a quem comprara eu o meu Carocha - que me substituiu o Fiat 600, que se desagregara em combate. E que comigo continua a ombrear. Temos nos aguentar, pá! Nós os dois, e mais alguns, cada vez menos, que por aí, e aqui, ainda resistem.
 
E assim bebo um copázio de água à memória do Teles, do Filipe. E um uísque à memória de todos os outros que já foram.

Bloguista

Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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