O Sequestro da Minha Mãe
(A Mãe de Franz Marc, 1902)
A minha mãe Marília tem 94 anos. Há pouco mais de uma década que vive numa "residência". Foi ela e o meu pai António que nos anunciaram a sua opção de assim continuarem, suprema forma de consciência e, mais do que tudo, coragem. Alguns anos depois o meu pai morreu. Ela seguiu, continua. Cada vez mais só, desaparecida a sua geração, familiares, amigos, colegas, até alunas. Valem-lhe os bons cuidados "residenciais". E a estremosa filha, genro e noras. E tanto também o meu mano-velho, que o Atlântico apenas fisicamente aparta. Não tanto o meu angustiado descuido. E alguns lampejos de netos e bisnetos, em família carregada de emigrantes.
Desde Março que dela nos apartámos, em precauções até anteriores às normas estatais. Pois família informada e racional, e também de médicos, de gente nada negacionista dos cuidados face à gravidade disto que passamos. Depois, meses passados, já na alvorada do Verão, passámos a ter direito a visitá-la. Um visitante por semana, meia hora apenas, no exterior das instalações, no aprazível jardim. E em grupos íamos vê-la, alguns apenas à "paliçada" do jardim, saudávamos, a mostrarmo-nos, e falávamos breves minutos. Depois um de nós entrava para o breve período, conversando sob as árvores e junto ao lago onde tartarugas fazem as vezes da fauna bravia.
Há mais de dois meses surgiu um surto de Covid-19 na residência. Infecções em vários funcionários e em metade dos residentes, estes octogenários e nonagenários. Mas não na minha mãe. As visitas foram canceladas, mesmo aos residentes que não haviam sido infectados. Como é óbvio sem qualquer razão sanitária para a estes se lhes vedar as visitas, nos moldes sanitários vigentes. Mas compreendemos a angústia da instituição e a escassez de recursos humanos que adveio - e mesmo sabendo nós, até profissionalmente, que este isolamento nos idosos acelera, e muito, os síndromes demenciais.
Os residentes foram recolocados, apartando os infectados dos outros. E confinados aos aposentos. A minha mãe - pela primeira vez desde os seus tempos de estudante - passou a partilhar um quarto com uma "vizinha". Lamentou-se-me um pouco, dessa partilha de espaço e de ao quarto estar confinada. Bisneta de militar, neta e sobrinha-neta de militares, filha e sobrinha de militares - de oficiais da Flandres a cadetes do 28 de Maio, tantos depois coronéis que in illo tempore o meu pai, algo civilista, dizia que aqueles almoços de família lhe faziam pensar que estava na Grécia -, irmã de militar, mãe de militar, mãe, sogra, tia de vários mobilizados para as "guerras d'África", diante desse seu lamento, eu, o benjamim estapafúrdio apesar de já neste estado, mobilizei-a para a guerra: "Mãe, a senhora ao seu lado não é sua colega ou vizinha, é uma camarada, isso não é um quarto é uma camarata! Esta é a sua campanha, a guerra contra os Covid-19!". Numa réstia de força riu-se, de lá, num "é isso, filho, esta é a minha guerra!". Mas à minha irmã confessou-lhe, em visceral ironia, "aqui fechada no quarto estou a cumprir uma pena?".
Entretanto passaram meses, nenhum dos residentes infectados adoeceu. E cumpridas foram as sucessivas rondas de testes requeridas. E há já três semanas que não há qualquer razão para que se impeçam as visitas. A não ser as delongas burocráticas - dizem-me que as autorizações da Administração da Saúde, uma qualquer absurda "desinfecção do edifício", sei lá o que mais. Entenda-se bem, a única razão para que não possamos visitar a minha mãe é o pânico institucional, a histeria. E a modorra burocrática. Uma mescla que é apenas crueldade. Inconsciente crueldade. E assim está a minha mãe sequestrada! Apenas isso, tudo isso. E, tão audivelmente, a definhar. Tão dolorosamente a definhar.
"Escreve", dizem-me, autorizam-me ... "escreves sobre tudo, escreve sobre isto", sobre o sequestro da minha mãe. E, decerto, o das mães e pais de tantos outros. Há semanas que o ensaio. Mas que dizer?, pois quando o começo só ouço Brel, o Brel do meu pai que me faz falta, o Brel do meu pai com a minha mãe. Porque ele cantou tudo isto, nisso dizendo o que era necessário. E cantou que fossemos homens. Sede-o, sejamo-lo. Conscientes mas sem esta absurda, disparatada, crueldade.
(Les Deux Fauteuils, original de 1953)