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Nenhures

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Não sou muito dado a livros, quase nada às novidades e ainda menos às coisas e causas da literatura portuguesa. E vivi 20 anos fora. Por tudo isto nada percebo destas polémicas literárias, trâmites que associava a um "Chiado" bem recuado, lido no liceu da vida - e nessa candura bem me surpreendera há poucos meses ao saber que o bom do António Cabrita, vindo de Maputo "a banhos", acabara rojado à calçada portuguesa em plena Av. de Roma ao procurar ele (no seu intrínseco civismo) apartar uma contenda entre poetas e críticos algo excêntricos aos escaparates. Bisonho episódio que me alertara para que nesta era de podcasts e tik toks ainda há, a sul do Trancão, quem se exalte em torno de livros... Mas tudo isso se me escapa, pois a última polémica livresca de que me lembro foi sobre este "A Tragédia da Rua das Flores", então confrontando-se os veementes avessos à publicação do calhamaço rascunho e os acalorados defensores da sua imprescindibilidade, tudo isso quando o meu pai teria mais ou menos a minha idade de agora... (e quem o lerá hoje em dia?).
 
Vem-me isto ao teclado diante do actual debate entre os autores, e respectivos amigos e adeptos, das duas recentes biografias de Pessoa, uma dita de pendor "académico", outras vocacionada para ser "popular". A surpresa para mim é tetra (que não tétrica...): 1) que os autores se zanguem em público, e de modo tão desabrido, tanto que até dá para demissões nos "jornais de referência"; 2) algumas das matérias que provocam dissenso - entre as quais avulta a relevante temática sobre se Pessoa frequentaria prostíbulos femininos, era dado aos "prazeres helénicos" ou teria morrido virgem. Isto para além de ser tópico de debate o tamanho do seu membro viril; 3) que tanta gente compre (e até mesmo leia) biografias, já 12 mil da "académica" e a "popular" para lá caminhará!... - mas isso é coisa do meu gosto, avesso que vou a tal molde, para o qual não tenho paciência; 4) o tamanho das tais muito compradas biografias, ao que consta cartapácios de 1200 páginas (a "académica") e quase 1000 (a "popular")! Tanto há para dizer... Enfim, nada tenho contra quem escreve, quem lê, nem mesmo contra quem discute o que escreveu ou leu. Apenas me surpreendo.
 
 
 

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Os meus amigos (os reais) - e alguns dos que vão tendo paciência para me aturar in-blog - sabem da minha resmunguice de décadas, desgostosa, com o jornal "Público". Em tempos idos devido ao ror de asneiras que nele se botava sobre Moçambique. Depois também devido ao patetismo histriónico da célula bloquista identitarista que lá pulula, feita de académicos e jornalistas necrófagos do já decomposto império, gente demagoga, atrevida e - pior do que tudo - convencida de si-mesma. 

Em suma, não uso ler o periódico. Exceptuava quando o café "Arcadas" dos Olivais vigorava: sendo eu cliente habitual o "sô" João, sportinguista como deve ser, fazia-me acompanhar a bica matinal com o empréstimo do "Record" e por vezes considerava adequado recomendar-me a leitura do Tavares daquele dia, por particularmente acerado face ao estado da nação... Mas agora, falecido o nosso recanto, entretanto comprado por um qualquer "empreendedor" chinês, nem isso. Mas vou ler - masoquista - quando vejo referências a mais uma patacoada "africanista" que por lá tenha florido.

 

 

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Do Manguito e Outros Gestos na Obra de Rafael Bordalo Pinheiro, de Isabel Galhano Rodrigues e João Alpuim Botelho, edição do Museu Bordalo Pinheiro, 2022.

Rafael Bordalo Pinheiro é muito invocado, dito "fundador da caricatura nacional" - para além de minudências cronológicas que lhe encontram "antecessores" - respeitado, amado até, como "cidadão pleno e libertário" e nisso precioso "coleccionador de fraquezas" (como disse João Paulo Cotrim), dessas que lhes eram coevas e as quais dizemos ainda actuantes nesta nossa (gasta) Pátria.

Mas, na realidade, Bordalo é-nos algo desconhecido, até mesmo obscuro. Um pouco como aquele avoengo presente em tantas famílias, evocado em convívios sazonais através de episódios que se querem risonhos ou verdadeiros exempla, historietas mais ou menos inventadas acontecidas nos Dembos e Angónias, entre os seringueiros amazónicos, baleeiros atlânticos, filões de volfrâmios ou, também, naqueles das andanças "a salto", tudo isso sem que nós, a sobrinhada, de facto perceba quem foram tais estranhos aventureiros "tios-avôs" e o que lhes foi acontecendo e como se fizeram acontecer.

Muito desse afastamento se deve a que as obras de Bordalo eram contextualmente enraizadas, raras as personagens por ele criadas - e estas sempre simbólicas -, pois se tratava de um universo centrado na vida política e social portuguesa do fim do século XIX. E, sendo aqueles quadros quase sempre de uma rica encenação, pela pluralidade de elementos expostos, a sua fruição convoca vários níveis de leitura, apelando a um conhecimento mais amplo, seja das personalidades caricaturadas seja dos contextos de cada uma das investidas de Bordalo Pinheiro. Digo-o também por mim, herdeiro de três volumes da "Pontos nos ii" oriundos de bisavô paterno, cuja leitura exige uma nada apressada decifração.

E é devido a essa distância para com o mundo de Bordalo Pinheiro, encapuçada pela aparente similitude das invectivas aos poderes que dele queremos recuperar, que são preciosos os livros a ele dedicados, pela descodificação daqueles contextos, afinal mais diferentes deste hoje do que poderá parecer a leituras de mera adesão. Através deles poderemos perceber bem melhor as suas obras, e, sem juizos anacrónicos (auto)punitivos - como esses que tanto estão na moda -, fruir do verdadeiro encanto que a compreensão permite. Por exemplo, apreender a profusão das suas referências a África e às putativas colónias portuguesas percebendo-o também como "Romântico, positivista e mação, agarrado às colónias como a um simbólico pé-de-meia, boémio, sexista, sentimental e altivo, cioso da dignidade nacional, intuitivo e de repentes, Raphael Bordallo Pinheiro é de facto "o português tal e qual"", como, há mais de três décadas, escreveu Ângela Guimarães em "Bordallo: Face a um Mundo em Turbilhão"*, uma investigação dedicada à refracção no autor da mentalidade colonial e dos anseios africanistas da época, algo que Guimarães cumpriu sem se desviar por bacocos dislates punitivos mas sim olhando Bordalo como uma voz trangressora no seu tempo. Ou essa reedição aquando do centenário da sua morte (2005), com textos de João Paulo Cotrim, do "Álbum de Glórias", que é preciosa para a identificação de inúmeras personalidades caricaturadas e, também, por fazer reviver a prosa de Bordalo e seus corrosivos colaboradores (em particular a de Guilherme Azevedo e a de Ramalho Ortigão).

Enfim, várias obras têm sido dedicadas ao autor. Mas ainda assim é muito atractiva esta nova colecção que o Museu Bordalo Pinheiro começou agora a publicar, pequenos volumes (de pequenas tiragens, 250 exemplares) com incursões temáticas àquelas obras. Comecei por este Do Manguito e Outros Gestos na Obra de Rafael Bordalo Pinheiro, de Isabel Galhano Rodrigues e João Alpuim Botelho, apresentado este mês. O qual comporta uma bem conseguida mescla entre a importância da gestualidade como comunicação não-verbal intra-comunitária e a a genealogia do carismático "Zé Povinho", "[Essa] criança que tem hoje perto de cinquenta anos de idade! (...) Nele concorrem em conjunto todas as partes que nos enlevam e encantam no bom menino - casta inocência, temor de Deus, obediência a seus mestres, humildade, nariz por assoar, dor de barriga às segundas-feiras e santíssima ignorância. Aos carinhosos desvelos de sua extremosa mãe, a Carta, e de seu galhofeiro pai, o Parlamentarismo, se deve o estado miraculoso de infantilidade que tão vantajosamente recomenda este vulto à simpatia e ao espanto de todo o mundo" (Ramalho Ortigão, dito João Ribaixo no "Álbum de Glórias"), descrição bem apropriada a um "Zé Povinho" que Bordalo, apesar da simpatia que lhe votava, invectivava por não se erguer como Povo, preguiça que considerava desamor à Pátria.

Ora vem esta sopesada mescla a propósito do célebre gesto do manguito, o qual sempre associamos, no nosso real afastamento à obra de Bordalo Pinheiro, a uma prática regular, desabafo até contestatário, do "Zé Povinho". Para depois, neste livro, percebermos que, afinal, "No que diz respeito aos gestos obscenos, Rafael Bordalo Pinheiro é muito discreto, evitando representá-los de modo explícito" (49). Ou seja, e contrariamente à nossa ideia feita, não há manguitos (literais, no sentido gestual) nas caricaturas - esse registo mais brejeiro apenas veio a surgir na cerâmica de Bordalo. E foi esta, torna-se assim evidente, que veio a moldar a nossa apreensão, a nossa memória, do trabalho gráfico do autor.

Fosse apenas por isso, por este desvendar, este livro seria já precioso. Mas há bem mais assuntos de interesse - até porque profusamente ilustrado (como não poderia deixar de ser), com explanações sobre o conteúdo de cada uma das ilustrações. E o mesmo se aplicará, presumo, aos outros exemplares desta colecção, um fio que será uma constante "reintrodução" a Rafael Bordalo Pinheiro, esse filão de entendimento sobre, 

"N'este país de compadres; / E de ministros d'estado, / E de vates trovadores, / E de tocadores do fado, / E de casas de penhores, / E de grandes orçamentos, / E de namoros aos centos, / E de parvonezes todos, / E de cem milhões de alferes, / E de homens que são mulheres, / E de eleitoraes engodos; (...)" ["Neste país de compadres e d'eleitoraes engodos", em O António Maria, 28 de Junho de 1883, reproduzido na p. 50), 

pois, se difererenças há em relação àquela época, e imensas há, as semelhanças também vigoram. E muito as incompreendemos quando não conseguimos perceber os detalhes da obra de Bordalo, na tal descodificação. Ou seja, urge ir ler os pequenos volumes desta colecção, a preço bastante acessível.

* Eu só tenho uma fotocópia de texto prévio, "O Riso e a Angústia", que não tenho a certeza de corresponder totalmente ao livro publicado em 1997.

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É uma total coincidência, devida a que há poucos dias uma querida amiga me disponibilizou uma preciosa pilha de livros. A qual encetei, desconhecendo o seu conteúdo, por este "O Último Adeus" (Adieu), pequena novela de Balzac publicada originalmente em 1830 (em edição Europa-América, tradução de João Gaspar Simões).

A trama romanesca é interessante, ainda que hoje surja algo secundária, até pelo tom de época, de hipérbole sentimental: o coronel Philippe de Sucy - veterano da campanha russa, regressado a França após seis anos na Sibéria como prisioneiro de guerra - reencontra por mero acaso a sua apaixonada, a condessa de Vandières. Esta está tresloucada, devido aos padecimentos sofridos desde que se tresmalhara durante a retirada do exército napoleónico, pois durante a batalha de Berezina enviuvara do general de Vandières e apartara-se de Sucy, que ficara prisioneiro. 

 

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Michel Vaillant foi herói da minha criancice, presença constante no Tintin semanal e também em alguns dos seus inúmeros álbuns. E na era de ouro da Fórmula 1, de Stewart e Cevert até Peterson e Villeneuve. E aquele agrado da sua visita ao país, então uma "internacionalização" que nos era rara, no seu "Rali em Portugal". Era um desvelo, mas que cedo feneceu, transposto eu para uma busca de outros grafismos e outros mundos imaginados, desligando-me daquela série que me parecia demasiado esquemática, superficial.

Mas a recente morte de Jean Graton - acontecida há exactamente um ano - recordou-me esse meu desvelo, uma memória carinhosa, de Vaillant e seu "team" e, acima de tudo, daquele eu petiz leitor. E por isso, saudosista, agora mesmo algo me dispus a reencantar-me, ao encontrar em estante alheia este "O Príncipe Branco", o qual nunca lera. E logo, nostálgico, o li, quarenta e tal anos depois do meu último Vaillant. Para minha total desilusão, pois é ainda pior do que a memória que tinha da série, mesmo péssimo. Desenho descuidado, apressado - nem os carros de corrida ali brilham. E um argumento totalmente disparatado. Ficou-me, ainda assim, o prazer, nada reduzido, de estar a ler um "Michel Vaillant". Mas apenas isso.

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