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Nenhures

Nenhures

29
Set24

A ler Stefan Zweig

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Dois pequenos livros, preciosos, de Stefan Zweig, um escritor que fora algo desvalorizado - cá em casa os meus pais haviam remetido vários dos seus livros para a arrecadação, onde se acumulavam pilhas dos menos apetecíveis e/ou mais esquecíveis. Abarcando-o nessa despromoção, porventura por questões de gosto ou de desatenção. Ou mesmo apenas por falta de espaço nas estantes... De qualquer forma, o interesse no escritor foi revitalizado - e algumas (re)edições surgiram -,  um pouco na sequência do filme que lhe foi dedicado, o "Adeus Europa".

Li agora "Uma História de Xadrez" (Relógio d'Água, 2017, 72 pp., tradução de Ana Falcão Bastos), uma publicação já póstuma (de 1943). É um dissecar das constituintes da mente, na sua diversidade e na diversidade das formas como é construída. Pois a trama é o combate entre um génio xadrezístico silvestre, um rural inculto predestinado, e um refinado vienense (daquela "Viena" que foi centro de civilização) que se fez xadrezista por sobrevivência. Mas o substrato é a ascensão do Anschluss, a adesão austríaca ao nazismo. Numa descrição que tem imorredoira actualidade, mesmo que o diga eu sem preocupações escatológicas: "Mas os nacionais-socialistas, muito antes de equiparem os seus exércitos contra o mundo, começaram a organizar em todos os países vizinhos, um outro exército igualmente perigoso e bem treinado, a legião dos desfavorecidos, dos humilhados, dos ofendidos. As suas chamadas "células" estavam instaladas em cada repartição e em cada empresa, e os seus informadores e espiões encontravam-se por toda a parte..." (p. 34). 

E também "Foi Ele?" (Assírio & Alvim, 2023, 64 pp, tradução e - incisivo - posfácio de Francisco de Nolasco Santos), escrito já no exílio e publicado em 1942. A trama, facial, é a de uma sobreprotecção amorosa a um cão, assim crescendo tornando-se mastim, energúmeno. É quase uma evidência encontrar no texto a metáfora, tão actual na era da escrita da obra, sobre a ascensão da besta nazi, acarinhada no seu germinar até se tornar incontrolável, assassina. Mas lendo-a nos tempos de agora ocorre-me uma leitura com menor pendor metonímico. Pois no texto encontrando como se um augúrio sobre os efeitos desta disseminada transferência afectiva para os "animais" (os de estimação, claro), esta "petização" que grassa. Uma verdadeira monomania, já com efeitos políticos. E, decerto, com implicações psicossociais.

25
Ago24

Uma semana jubilosa

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Por mais rusticidade, até altaneira em modo desprendido, que vá eu encenando sigo vaidoso, como tantos outros, a maioria desses, diga-se... E, pior ainda, mimalho. Como tal foi-me jubilosa esta semana que agora termina. Num tão assim que rara, mesmo. Narro-a para que não me reduzam a resmungão, dado ao azedume, amargurado pela vida, desatento às benesses que me recobrem.
 
Começou-me no texto do amigo Pedro Correia, o maior elogio - se explícito, másculo e público, ressalvo - que alguma vez recebi, louvando o meu "Torna-Viagem" em tais moldes que, como lhe disse, até me causou um frémito de estar já com "os pés para ... o forno", dados os laivos de eulogia que ali... temi. Nisso empurrou o livro. Este quase invisível (edição de autor, desconhecido, numa plataforma digital em impressão por encomenda). O amigo Pedro Morais, homem da banda desenhada, avisara-me de início, "editado assim se venderes 50 é livro de platina!". Eu esperava impingir 100, a utopia era 150... Mas agora, com este elogio chegou às 175 vendas! Digo-me, a mim-mesmo pois, se chegar às 200 encomendarei chamuças de diferentes origens para uma "prova cega".
 
Mas mais mimos me chegaram. A minha querida Ana, de que tanto gosto e me faz falta quando se ausenta, minha mana - "com a idade tornaste-te sentimental", há dias protestava outra amiga, telefonando de longe a combinar comigo os moldes de festa que aí vem, "sempre fui, agora não tenho é pejo de o mostrar", defendi-me -, a Ana, dizia, voltou após meses de Moçambique. Trazendo na carga - "só carreguei porque é para ti..." - uma bela oferta da também tão amiga Fátima: um grande frasco de achar de limão, confeccionado com os seculares saberes de Inhambane. Que mais pode querer um homem? "Mal arranje um portador envio-te um de achar de manga...", responde-me ela ao meu agradecimento! Matabicho de hoje? Malga de café, torrada barrada de achar...
 
Tudo isto orlo com um pouco de cultura, inesperado auto-mimo. Ando a ler os Voltaire - a reler, como se diz dos clássicos, avisou Calvino. E descubro, caído na estante atrás da fileira vigente, este "A Princesa da Babilónia", colecção de seis contos, que - a este sim - nunca lera. Comprado há vinte anos, diz lá. Muito melhor do que um livro novo é mesmo encontrar um esquecido.... E também recuperar um antigo, e nisso leio este "Vélazquez" (sic) com oito reproduções fac-simile em cores, editado em tempos bem recuados por Pierre Lafitte e Cie. Pois preparo-me, dado que ando há meses para ir à Gulbenkian ver o retrato do nosso rei Filipe III e não passa desta semana... "Não tens livros novos, aqueles da Taschen, e isso?, sobre o Velásquez?", mais as "Histórias de Arte" canónicas, carregados de ilustrações e de ensaios actuais?. Tenho, mas assim irei com o meu avô Flávio, que a este mono cá de casa, que resdescubro, comprou em 1911. Razão suficiente para me preparar deste modo, mimando-me com a ancestralidade.
 
Nisto cruzei o Tejo, rumo a almoço às portas de Almada, casa amiga sempre de boa mesa. Não sou grande admirador do comestível coelho, mas não me nego. Mas ontem, e já nestes meus 60 anos, deparo-me com o melhor coelho da minha vida - à mesa o autor reclama que o molho não ficou o espesso suficiente, adiantando razões que nem compreendo tamanha a voracidade com que mastigo. "Como se chama a receita?", pergunto, enquanto me sirvo de segunda pratada, "Coelho à sem nome", diz-me, ríspido, o talentoso artífice, que estou ali a conhecer...
 
Mas o maior dos mimos foi outro. "Pai, podes-me rever a tese?", pergunta a Carolina, e nisso estive eu, nestes dias, a reduzir-lhe as palavras - ajudando a adequá-la aos limites impostos -, a garimpar-lhe a (extensíssima) bibliografia, a comprovar-lhe a justeza sintáctica. Entregou-a na sexta-feira. Numa mescla metodológica difícil, associando Ciência Política com Economia (quantitativa, não a sociologia dita Economia Social). Debatendo as articulações entre investimento em energias renováveis, dívida externa e condicionamento político. Como estudo de caso esmiuçando o exemplo moçambicano. 22 anos, culminando o seu segundo mestrado, antes um na Nova, este agora na LSE. Deparo-me, sem espanto mas ainda assim com alguma surpresa, com um trabalho de grande robustez. E atrevendo-se a correr riscos intelectuais. Com competência e denodo. Pujança. Fica assim um pai babado, muito mimado. E como sempre a frisar: "quem sai aos seus não degenera". Pois a jovem puxou mesmo à Senhora sua mãe. Grande profissional, arguta intelectual.
 
E para esta semana já chega. Tanta coisa boa foi que vou celebrar, uma estroinice: almoçarei um crepe no chinês dos Olivais. Se alguém quiser passar por lá...

05
Ago24

Livros na mesa de cabeceira

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(Postal para uma série no Delito de Opinião)

Já o dissera na primeira série de "livros de cabeceira": este é-me "sítio de cabecear, assim de nunca trabalho. E quanto menos ando a ler mais os livros aqui apostos, alguns trazidos por mero fastio e depois aboletando-se, outros para rever só umas poucas páginas e depois esquecidos, mais aqueles vários que percorro em simultâneo, e uma ou outra escassa novidade". Ou seja, nenhum deles tem lugar cativo, alguns nem serão lidos, vieram para mera companhia, aguardando o regresso à prateleira devida.

É-me agora uma cabeceira solteira. Neste rumo, e com o passar do tempo, primeiro os livros ganharam o direito a pernoitar no leito, até dengosos a meu lado, plácidos pois nada ciumentos face às leituras alternadas (e distraídas, tantas vezes desamorosas) que lhes faço a desoras. E depois, um ou outro deles, tornados mais íntimos, arrogam-se mesmo a ali ficarem para matabicho e até "brunch", pois na manhãs de Verão nem os incomodo em arrumações, basta-me esticar lençóis e edredom. E se viesse a haver visita, companheira - sorri o mariola que em mim ainda habita, embora fenecido -, decerto seria bibliófila, não se atrapalharia.

Dorme comigo agora o "Faca...", a memória do atentado que Rushdie sofreu em Chautauqua, oferta do meu amigo Pedro. E me lembra quando evoquei os nossos que "compreendem" os terroristas islamistas, assim seguindo avessos à liberdade de expressão ao exigirem cerimónia - de "contextualização" e "multiculturalismo" feita -, que nada seja "ofensiva" das "crenças" alheias. Rushdie lembra alguns deles, os "democratas" - políticos, académicos, mas também escritores - que contra ele se indignaram, e que depois também desconsideraram os ataques aos caricaturistas franceses (e antes aos dinamarqueses, acrescento). Tal como se insurge contra os "correctistas" que querem a falsa pureza da "língua resgatada". Diz com alguma auto-ironia, diante do mais solidário ambiente que agora o acolheu após a convalescença: "Se a fortuna me tornou uma espécie de virtuosa Barbie, amante da liberdade, o Rushdie Liberdade de Expressão, abraçarei esse destino". E, denunciando a hipocrisia culturalista, culmina em grande "O respeito pela religião" tornou-se uma frase codificada que significa "medo da religião"." As religiões, tal como todas as outras ideias, merecem crítica, sátira e, sim, o nosso intimorato desrespeito". Mas o livro tem outros rumos, mostra o homem Rushdie, nas suas ambivalências, limites e vaidades. Ri-me quando - após criticar o fim da "privacidade" devido à mania das "redes sociais", - lembra ter colocado na véspera do atentado uma fotografia ("selfie"?)... na Instagram. E mais sorri, lá mais para a frente, com a nota da sua investida no Twitter. Afinal? E desilude-me quando simula um diálogo com o "A(sno)" que o atacou, páginas pouco vibrantes e demasiado autojustificativas, além das derivas "ensaísticas" sobre a religião, carregadas de um pobre evolucionismo oitocentista.

No monte, à espera, vem o "O Outro Nome", o I-II da septologia de Jon Fosse. A Ingrid, minha tão querida que eu não via há... 28 anos, ofereceu-mo durante o delicioso dia em que estivemos em Lisboa (e, tal como ela, quantos de nós - em tempos idos - não oferecemos Saramago a estrangeiros?, ufanos do nosso Nobel?). Já o provei, notei que é registo denso, monopolizador, incompatível com outras leituras simultâneas. Será em Agosto?, ou no mais soturno Inverno? Também aguarda, mas a fazer-me ansioso, o "No Cavalo de Pau com Sancho Pança", ensaio de Aquilino Ribeiro sobre Cervantes, que me foi dado pela Marta, oriundo da biblioteca do seu pai, o meu tão saudoso amigo Aventino Teixeira. Estou a acabar o "Histoire de la Province de Santa Cruz que nous nommons le Brésil", de Pero de Gândavo, autor louvado por Camões, o nosso primeiro livro sobre o Brasil (1576 - aqui em tradução francesa oitocentista), uma verdadeira pepita que nunca lera, uma atenta prenda da minha amiga Graça. E que decerto em breve será ululado pelos "reparadores da história", pois - enquanto descreve a magnífica natureza e as gentes lá alojadas - de modo bem despreocupado apresenta a boa vida dos colonos se dotados de mera meia-dúzia de escravos, quanto mais quando tendo centenas... Também por oferta, mas como se "institucional", chegou-me o "Monitoria de Políticas Públicas e Direitos Humanos em Países de Língua Oficial Portuguesa: uma Análise Comparada", que ainda aguarda o meu... sorriso descrente. E, ao invés, diante do meu sorriso crente na pilha mora o "A Trombeta do Anjo Vingador", um dos de Dalton Trevisan que comprei na última Feira do Livro. Tal como, e há pouco chegado, o "Derradeiro Suspiro Real", do nosso José Navarro de Andrade, um romance contrafactual (a República não foi...) que só descobri depois de há pouco lhe ter lido o "Terra Firme", do qual muito gostei.

Sou fraco leitor de revistas, é um suporte que nunca me agradou. Mas gosto de revistas antigas, legado dos meus pais... As literárias são uma verdadeira delícia - o tempo passado demonstra a recorrência das hipérboles, as loas aos livros "imperdíveis" já esquecidos, às grandes "revelações" entretando desvanecidas. Mas também trazem pérolas do passado, iluminações, reminiscências. Ali, já na outra mesa (como se com carimbo "visto"), de partida segue um suplemento da "Le Magazine Littéraire", o especial "Les années Apostrophes par Bernard Pivot", de 2015, simpática homenagem a Pivot que recuperei quando este morreu.

Em monólogo resmungão ressurgiu-me o tão sábio senhor Pangloss. E lembrei-me de há muito não (re)ler o "Cândido", de Voltaire. Preguiçoso estou, fui buscá-lo na versão portuguesa. E pude reviver esse precursor dos actuais turistas, algo intrigado com os nossos costumes locais: "Após o tremor de terra que destruíra três quartos de Lisboa, os sábios do país cogitaram em que o meio mais eficaz para prevenir a ruína total da cidade consistia em dar ao povo um rico auto-de-fé. Fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espectáculo de várias pessoas queimadas a fogo lento, com grande cerimonial, era um seguro infalível para impedir a terra de tremer". E bem me rio com as suas espadeiradas, ainda que "cândidas", aos inquisidores e aos jesuítas, enquanto louva (sim!) o amor interracial - além de nos lembrar como se produzia a cana-de-açúcar que tanto adoça a vida. Pois, de facto, naquela sua correria (des)venturosa não fica pedra sobre pedra: "P: Mas então  com que  fim foi o mundo criado? R: Para nos enfurecer."

Uma (pequena) crónica por dia, ou um pouco mais, é como leio "A Bagagem do Viajante", antigos "dizeres de um fala-só" de José Saramago (o livro é de 1973), uns mais datados, outros bem menos: "não há dúvida que Portugal envelhece", concluiu ele há cinquenta anos após relatar o que o circunda, também já desagradado com os "flácidos" monumentos municipais, e notava seguirem já vetustas algumas expressões correntes, de tão pejorativas que soam. O naipe, mesmo se aqui e ali deixa perceber o que aí lhe vinha (como em "História do rei que fazia desertos"), muito mostra como se lhe transformou a escrita nas últimas décadas de vida.

Irritado (irritadíssimo, mesmo!) com umas disparatadas declarações sobre o passado português (publicitadas no "Público", claro, e que encontrei via Henrique Pereira dos Santos), retirei da estante e para aqui trouxe o belo "A Rota dos Escravos: Angola e a Rede do Comércio Negreiro", cujo texto fundamental é de Isabel Castro Henriques, o qual tem imensas (e apelativas) ilustrações. Entretanto ainda cá está o "Comme les Amours" de Javier Marías, mas engasguei-me na sua leitura, é provável que não a acabe. E, marinando na mesa, ali aportado em dia de maior negrume, a colecção "Ficções do Interlúdio" de Fernando Pessoa. Vou (re)lendo, mas com muito cuidado. Pois não me convém exagerar nisso do "O porto que sonho é sombrio e pálido..." Pois para pior já (me) basta assim.

28
Jun24

Texto sobre história de Moçambique

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Desta vez não venho vender livros, como quando há meses - e para notório fastio de alguns - fiz, ao tentar impingir o meu "Torna-Viagem". Pois agora apenas dou: um texto longo – seria maior do que um opúsculo, se eu o fizesse como tal. Há anos participei numa homenagem ao historiador José Capela - a que teve este cartaz, que encima o postal -, grande figura da história de Moçambique e de Portugal em Moçambique. E do escravismo. Depois reescrevi o texto. Agora, como o nosso presidente vem recomendando que atentemos nesses assuntos, decidi divulgá-lo - é longo, repito, e não o escrevi para ser fácil, “amigável ao utilizador” mas apenas como dele gosto. E não é, decerto, ajeitável ao uso dos “activistas” de agora. E divulgo-o também para reavivar a homenagem a Capela, homem que esteve bem à frente do seu tempo e da maioria dos (pobres) pares.

Aqui fica a ligação ao meu: "José Capela: o escravismo em Moçambique como violência estruturante".

 

Sobre Capela antes deixara também:

- recensão a "Conde de Ferreira e Cª. Traficantes de Escravos" e "Delfim José de Oliveira, Diário de uma Viagem da Colónia Militar de Lisboa a Tete, 1859-1860", de José Capela;

- "José Soares Martins, de pseudónimo historiador José Capela", quando morreu; 

- recensão a "José Capela, "Caldas Xavier. Relatório dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1884";

 

30
Mai24

As Tâmaras Azedas de Beirute

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O Craveirinha tinha como data de aniversário o (para nós) peculiar 28 de Maio - e isso foi agora recordado. E lembrei-me da última vez que com ele falei. Estava eu na Alfredo da Costa para buscar a recém-chegada Carolina e sua mãe, levando-as para casa, nós encantados e atrapalhados naquele novo estatuto paternal. Pressentindo a azáfama que se seguiria, telefonei-lhe para Maputo ainda do corredor da maternidade, era o seu 80ª aniversário! Foram breves palavras, saudações mútuas, ele convocando a felicidade futura da pós-nascitura, eu aventando-lhe "muitos e bons". Mas não foram... Fiquei uns meses por cá, quando regressámos foi a correria esperada, a rotineira e a de recuperar o que entretanto não se havia feito. Depois soube que estava doente, encolhi-me num "não vou incomodar".
 
Hoje é o dia do "Corpo de Deus". Pouco (me) importam as questões da fé alheia, suspendo o sorriso diante destes feriados religiosos flutuantes, que sempre me parecem inspirações astronómicas em tempos ditas paganismos. Apenas recolho o que me é relevante, noto a festividade como um dia em que os crentes se congregam para convocar o bem. E no qual os incréus seguimos repousando, nisso plácidos. Mais pacíficos do que na labuta. Ou seja, é um dia para o bem no mundo.
 
E por isso me lembro do mais-velho Zé Craveirinha. Em particular de um poema dele. Não o que sinta como um cume da sua obra. E sem que partilhe do simbolismo invectivador que convoca. Explico-me, de antemão: desagrada-me a ideia de serem os judeus (ou israelitas) arvorados em "povo escolhido", nisso com responsabilidades especiais. Ou seja, que o sofrido às mãos nazis (e sob tantas outras, já agora) os obrigue a uma maior benevolência. Pelo contrário, têm o direito de serem como todos os outros povos: e assim péssimos. E os outros, nós neste caso, têm o dever de os aplacar, controlar. E também não vou perorar sobre as causas do "conflito israelo-árabe", que não faltam palavrosos sobre isso, que o anseio fetichista de "tomar partido" é pandemia vigente.
 
Mas há muito que é evidente que os israelitas perderam a tramontana: "Are you out of your fucking mind?", resmunguei em Novembro, pois resmungar é única coisa que um tipo pode fazer. E assim, neste dia para o bem, transcrevo o poema do Craveirinha, escrito no rescaldo de uma sua visita ao Líbano - e que o Nelson Saúte juntou à sua excelente antologia de poesia moçambicana "Nunca Mais é Sábado" (D. Quixote, 2004):
 
Tâmaras Azedas de Beirute
 
 
Plagiando a "blitzkrieg" dos seus saudosos tempos nazis
soldados judeus em apropriados dromedários de aço
de nefastas patas blindadas
assolam o Líbano
E MATAM!
 
Dedico a minha solidariedade aqui mesmo em Maputo.
Sirvo-me da máquina de escrever e da minha insónia
e um sobrevivente palestino na tenda metralhada
ouvindo esta mensagem certamente ficará
grato pela minha camaradagem moçambicana
mas não terá nas suas mãos crispadas
nem sequer uma espingarda a mais
contra as semíticas automáticas
do inimigo.
 
Neste papel estarei quite com a minha consciência
mas as crianças assassinadas terão outra vez vida?
E as tâmaras azedas de granadas deflagrando
serão novamente tâmaras doces
nos desfeitos lares
de Beirute?

29
Mai24

Na abertura da Feira do Livro

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A mistura de excesso de livros em casa com a penúria orçamental, já para não falar de algum fastio com as "novidades" (sorrio diante do afã com as novas "A história da Palestina" ou "Israel", da "Rússia", dos "Fascismos", etc., pois um tipo folheia-as e constata que as velharias que tem em casa são bem mais suficientes) torna-me um window shopper na Feira do Livro, daqueles clientes que apenas atravancam os balcões sem levarem um mono que seja. Consciente disso - e até porque as barracas de "comes e bebes" têm preços inflacionados - não tenho passeado por lá.
 
Assim, nos últimos anos só tenho ido para a apresentação dos livros de amigos. Lembro as sessões do "A Cidade Suspensa" do Miguel Valle de Figueiredo (da FFMS), do "Sair da Estrada" do Paulo Dentinho (da Caminho), do "Antes Que a Gente Morra" do Nuno Quadros (na Dinalivro), do "Transcolonial" de João Pina-Cabral (ICS), sempre presumindo - e às vezes acertando - que seriam pretextos para convívio e um copo. E também me lembro de no ano passado ter lá ido para ouvir o excelente Jerónimo Pizarro - emérito editor pessoano (na Tinta-da-China) -, que acabara de conhecer em Bogotá. Ficam aí as referências aos livros, que já não sendo "novidades" bem que justificam serem procurados e levados para as casas ainda deles desprovidas. Ou ofertados.
 
Enfim, a Feira - que abre hoje - para mim agora é mais isto do que "compras". E parece-me que este ano não terei amigos por lá activos, pelo que não me parece que a visitarei. Mas nesta azáfama livreira e autoral já vi um anúncio apetecível. No dia seguinte ao final da Feira, 17, no Capitólio falará Peter Frankopan, interessantíssimo autor. É de ir (e de ler, claro).
 
(Agradeço à equipa da SAPO o destaque atribuído a este postal)

22
Mai24

A razão de falar sobre livros

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Meti-me nesta coisa de falar sobre livros que leio - ou (re)li. Em registo despretencioso, e mais do que tudo ambiciono não soar pomposo. Vou ver se tenho energia para ser perseverante nisso... O propósito, disse-o na primeira publicação, é conversar sobre livros com os "amigos" - os reais e os digitais. Já tive bons ecos disso, dois deles a pedirem-me livros emprestados, e sobre livros não há nada melhor do que... emprestá-los. Contrariamente ao que os decoradores de estantes sempre afivelam, muito ciosos de que nessa recusa simbolizam o seu apreço pelas "letras", pobres coitados. E quero ilustrar o que é esta coisa boa de se conversar sobre livros.
 
Um pouco antes disto das "redes sociais" alguns escrevíamos em blogs, tanto que até se falava de uma comunidade blogal, aquela "blogosfera". Interagia-se muito. Em debates, até em questiúnculas, em referências (os chamados "links" por aqueles que desconheciam o termo "elo"). Isso eram conversas, às vezes ombreando, outras conflituando. E nisso ouvíamos-nos (líamos-nos). Para exemplos, por questões políticas passei anos a resmungar com o senador blogal Luis Novaes Tito e por razões do meu encanto com Moçambique outros anos passei a seguir a louvar o belíssimo blog do André José. E assim (através dos tais "links", aliás "elos") ecoando-os, explicitamente... Isso perdeu-se nestas "redes sociais". Às vezes "partilha-se" algo alheio, muitas vezes "gosta-se" ("laica-se", dizem os imberbes e as ainda pré-menarcas). Mas nesse frenesim não se identifica, não se refere, não se... remete. Não se explicita aquele "vão lá ler aquele tipo". Ou seja, até paradoxalmente, a "rede social" impessoaliza-se, torna-se um mero (e extenso) rol de itens, não um agregado de gentes conversando.
 
Vem-me isto a propósito destas minhas "conversas" sobre livros, estes "estou a ler isto". O Carlos Sousa de Almeida (lá está, identifico e remeto) - que tem um bom mural no Facebook, do tão interessante que lá deixa - é gentil, elogia, e reconhece, sorridente (percebo-o), que "você gosta de fazer isso". É verdade, gosto de falar sobre livros, e faltam-me essas conversas. E, também o disse, é melhor falar do que escrever - pois na escrita tendo ao orlar ("tens/tem uma escrita rebuscada", já me escreveram 3 dos poucos incautos que compraram o meu "Torna-Viagem", esse "flop" que fica na minha "história de vida"). Ou seja, mais vale falar, sem ademanes. E sem palavrões (por mais que muitos livros mereçam pragas, devidas à forma e, acima de tudo, ao conteúdo apresentado).
 
Por que gosto eu de conversas sobre livros? É simples, pelas algumas pistas simpáticas que poderão aparecer. Mas principalmente pelas memórias ressuscitadas que acontecem. No pimeiro filme que fiz no meu mural de Facebook comentou o Acácio Manuel Maia Carreira - que eu conhecera há 30 anos quando ele era leitor do Camões em Nampula e que reencontrei agora - dizendo-me que naquele meu registo lhe apetecia reler o Calvino.
 
Sorri, iluminado. E interrompi-me, Fui à estante, até à prateleira do Calvino. E, só por causa do bom do Acácio, reli o "6 Propostas para o Próximo Milénio", um pequeno tesouro de inteligência. Cuja leitura completara no... 25 de Junho de 2001 em Xai-Xai, está lá escrito. Quando eu era imensamente feliz. E seguia, qual verdadeiro milenarista, cheio de propostas para o próximo (este) milénio. O Acácio (e o Calvino também) levaram-me assim, pela mão, até àquele jovem Zé Teixeira de quem eu, apesar de tudo, gostei. E depois, por causa da mesma influência, surgida devido à tal "conversa sobre livros", avancei para a releitura do maravilhoso "As Cidades Invisíveis" desse mesmo Calvino. Para apanhar logo na primeira página este meu veemente sublinhado, aposto em 1995!. Que transcrevo, para que se perceba o quão bom é.... falar sobre livros e assim a eles regressar:
 
"Na vida dos imperadores há um momento, que se segue ao orgulho pela vastidão ilimitada dos territórios que conquistámos, à melancolia e ao alívio de sabermos que em breve renunciaremos a conhecê-los e a compreendê-los; um sentimento como que de vazio que nos assalta uma noite com o cheiro dos elefantes depois de chover e da cinza de sândalo que arrefece nas braseiras; um vertigem que faz tremer os rios e as montanhas historiadas em fila na exuberante garupa dos planisférios, que enrola uns nos outros os despachos que nos anunciam a derrocada dos últimos exércitos inimigos de derrota em derrota, e tira o lacre dos selos dos reis de que nunca se ouviu falar e que imploram a protecção das nossas armadas que avançam em troca de tributos anuais em metais preciosos, peles curtidas e cascas de tartaruga: é o momento desesperado em que se descobre que este império que nos parecera a soma de todas as maravilhas é uma ruína sem pés nem cabeça, que a sua corrupção está demasiado gangrenada para que baste o nosso ceptro para a remediar, que o triunfo sobre os soberanos adversários nos fez herdeiros da sua longa ruína."
 
É perceptível a razão que me leva a gostar de conversar sobre livros?

16
Mai24

Sobre os livros que vou lendo (2): 25 de Abril Sempre!

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Falo destes livros:
 
1. Eduardo Gageiro, 25 Textos de Autores Portugueses Sobre Fotos de Abril (Avante, 1999);
2. Mia Couto, Vinte e Zinco (Ndjira/Caminho 1999);
3. Sebastião Salgado, Um Fotógrafo em Abril (Caminho, 1999);
4. Mário de Carvalho, Apuros de Um Pessimista em Fuga (Caminho, 1999);
5. António Borges Coelho, O 25 de Abril e o Problema da Independência Nacional (Seara Nova, 1975);
6. Alfredo Cunha, O Dia 25 de Abril de 1974: 76 Fotografias e Um Retrato (Contexto, 1999);
7. J.M. Lameiras, J.P. Paiva Boleo, J. Ramalho Santos, Uma Revolução Desenhada: o 25 de Abril e a BD (Afrontamento, 1999);
8. Adelino Gomes, José Pedro Castanheira, Os Dias Loucos do PREC (Público/Expresso, 2006).

Bloguista

Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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