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Nenhures

Nenhures

05
Out23

O Prémio Nobel da Literatura 2023

jpt

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Amanhã será anunciado o Prémio Nobel da Literatura. Pouco importam as constantes críticas aos critérios de nomeação e de selecção final, pois esta honraria adquiriu tal repercussão mediática que se tornou um verdadeiro solstício literário. E sendo vivido nesta extremada mundividência concorrencial, o ritual não induz um generalizado potlatch (esbanjo festivo) leitor, uma época de febre colectiva de corrida aos tantos escritores, mas mais se tornou numa celebração olímpica, o mero laurear de um campeão de torneio. Assim implicitamente consagrando a Academia premiadora como dotada de uma prerrogativa universal, qual um bando de suecos panópticos.

Mundo afora imensos letrados torcem pelos seus "campeões", opinam, criticam - bem ao invés do que acontece nas premiações congéneres, cujos meandros são deixados aos especialistas, aos oficiais dos ofícios... Também por isso o furor crítico que sempre recai sobre os anúncios, entre as invectivas dos adeptos desiludidos, esses que julgam ser o seu apreço por alguns escritores já suficiente para adquirirem o estatuto de "connaisseurs" - e por mim falo, que também sigo "leitor de bancada", opinando/torcendo apesar de leitor medíocre da literatura contemporânea, que dos premiados em XXI apenas lera 7, rejubilando com as atribuições a Naipaul, a Coetzee e Vargas Llosa, sorrindo às "Crónicas" de Dylan ainda que percebendo que não seria por isso, indiferentando-me com Pamuk, surpreendendo-me com Handke, resmungando com Modiano. E, mais relevante ainda, desconhecendo tantos, quase todos, dos variados outros "finalistas" todos os anos propalados como "favoritos" pelas casas de apostas. Mas mesmo assim todos os inícios de Outubro me encontro no "espero que...", e já foram duas décadas de um (algo patriótico) "Lobo Antunes ou então...".

Mas as críticas às decisões vêm também devido às causas que se presumem conduzir às premiações. Muitos clamam que as escolhas obedecem a critérios extra-literários, de índole política. Ululando contra o dito "politicamente correcto", quando a glória recai sobre autores provenientes de sítios, geográficos e linguístico-culturais "excêntricos" (já agora, como Portugal, direi) - que é argumento que saltará de imediato se o verdadeiro veterano Ngugi wa Thiong'o for finalmente premiado -, num verdadeiro reflexo do mero "quem é esse tipo?", o qual nada mais significa estar o leitor contestatário não só ufano das suas digressões na Feira do Livro local, da arrumação das suas estantes domésticas e mui convicto da sua abrangente sapiência no assunto.

E mais críticas contra os tais critérios "políticos" assomam quando alguns dos galardoados são locutores de posições ideológicas, até mesmo com participação política - de imediato pontapeados pelos desiludidos "apostadores" se estes sentados noutras "barricadas de sofá", que logo os reduzem a propagandistas de "más causas". E temos em casa própria exemplo bem notório disso, com tantos ainda hoje, um quarto de século depois, e já morto o homem, a desmerecerem Saramago não só por "escrever sem pontuação" como por ser do PCP...

Ora nessas ladainhas, de gente clamando a exigência de critérios exclusivamente literários - como se a Academia Sueca fosse um nosso órgão electivo municipal ou nacional -, expurgados de tudo o que não seja "génio", esquece-se que o Nobel da Literatura foi mesmo criado para homenagear o talento literário que pugne por ideários, mais ou menos sistematizados em ideologias, uma espécie de humanitarismo fabiano. Algo que colmatasse a exagerada utilização da dinamite, talvez... Ou seja, no âmago do Nobel literário está inscrita a opção por "políticos", pela divulgação de um qualquer ideal benfazejo. Dito de melhor ou mais actual forma, pelo expressar de um olhar "crítico" sobre o devir que vai vindo.

Enfim, tudo isto dito, e apesar de nunca ter lido os nomes agora mais favoritos, aqui fica o meu desejo - até porque a minha opção (algo patriótica, repito) Lobo Antunes já não consta dos premiáveis - de que este ano Salman Rushdie seja premiado. Pela grandeza da da sua obra, claro. Pelo impacto mundial até extra-literário que isso teria. Pelo recente vil atentado que sofreu. Pela afronta que os fundamentalistas religiosos e os timoratos relativistas coniventes sofreriam (e sobre esses escrevi o "A propósito do ataque a Salman Rushdie").

E também pela sua intransigente defesa da liberdade de expressão e da integridade artística, opondo-se à vilania esquerdista, dita "woke", esse tétrico movimento do expurgar as obras literárias do passado e de censurar as do presente em nome de putativas "sensibilidades" e "boas causas" actuais. 

E para quem possa pensar que este paleio subalterniza os escritos em relação ao seu escritor, coisa de mera actualidade, "espuma dos dias" a dever ser apartada de uma sacra "literatura", deixo um texto - já com 41 anos !! - do grande V.S. Pritchett a receber o então neófito Rushdie e o seu fulgurante "Os Filhos da Meia-Noite". Apenas para sublinhar, mesmo, que o autor tem muito mais do que a tal "actualidade"...

23
Ago23

Borges

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6 cordas.jpg

"Para as 6 cordas", um pequeno conjunto de canções (milongas) de Jorge Luís Borges. Nunca o lera, escondido que me estava num dos tomos das suas Obras Completas, o II (publicado pela Teorema, 1998). Precioso...

Por exemplo: "Como é seu hábito, o Sol / brilha e morre, morre ardente / E no pátio, como ontem, / Há uma lua esplendente, / Mas o tempo, que não pára, / Todas as coisas ofende - / acabaram-se os valentes / E não deixaram semente (...) - Não se aflija. Na memória / Do tempo ainda não presente / Também todos nós seremos / Os primeiros resistentes, / O ruim será generoso / E o frouxo será valente : / Não há coisa igual à morte / Para melhorar a gente."

09
Fev23

O fanatismo

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Roman Sanguszko, príncipe.

"This looks like mere fanaticism. But fanaticism is human. Man has adored ferocious divinities. There is ferocity in every passion, even in love itself. The religion of undying hope resembles the mad cult of despair, of death, of annihilation. The difference lies in the moral motive springing from the secret needs and the unexpressed aspiration of the believers. It is only to vain men that all is vanity; and all is deception only to those who have never been sincere with themselves".

(Joseph Conrad, Prince Roman, Selected Short Stories, Wordsworth, 1997, 218)

(antes deixado aqui)

08
Fev23

Rushdie Comes Again

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(Fotografia de Richard Burbridge)

Na The New Yorker um grande artigo - "The Defiance of Salman Rushdie", escrito por David Remnick - sobre o regresso de Rushdie, debilitado mas recuperado do fanático atentado que sofreu há meses.... Encontro-o na página da revista no Twitter, na qual a este propósito abundam os comentários pejados da sanha assassina dos fascistas idólatras da superstição, uma coisa pavorosa.
 
(Uma viscosa aberração que é também "muito cá de casa". Pois não propôs há tão pouco tempo o PS de Costa um candidato ao Tribunal Constitucional, antigo governante de Guterres, íntimo correligionário de Sócrates, que como deputado dizia no parlamento serem os terroristas islamitas iguais aos artistas ditos iconoclastas - e isso diante do silêncio geringôncico, que para esse indivíduo não houve escrutínio"woke" nem "causas" libertárias?).

03
Fev23

O Patriotismo

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"...patriotism - a somewhat discredited sentiment, because the delicacy of our humanitarians regards it as a relic of barbarism ... It requires a certain greatness of soul to interpret patriotism worthily - or else a sincerity of feeling denied to the vulgar refinement of modern thought which cannot understand the august simplicity of a sentiment proceeding from the very nature of things and men". 

(Joseph Conrad, Prince Roman, Selected Short Stories, Wordsworth, 1997, p. 206).

 

 

Neste Fevereiro cumpre-se um ano de guerra na Europa. A qual vem implicando um enorme esforço assente no "patriotismo", o ucraniano. E é interessante ver como na Europa, e por cá, a extrema-direita "soberanista" logo se tombou por simpatias pela força imperial agressora contra o que sempre diz defender, as tais nações, nisso confluindo com a esquerda comunista, esta que sempre se reclama de avessa aos "impérios". Sendo os democratas, mais ou menos confederativos, os grandes apoiantes desse esforço patriótico. De como a realidade bem mostra a falácia das demagogias.

01
Fev23

O inverno ucraniano

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"It was the dead of winter. The great lawn in front was as pure and smooth as an Alpine snowfield, a white and feathery level sparkling under the sun as if sprinkled with diamond-dust, declining gently to the lake - a long, sinuous piece of frozen water looking bluish and more solid than the earth. A cold brilliant sun glided low above and undulating horizon of great folds of snow in which the villages of Ukrainian peasants remained out of sight, like clusters of boats hidden in the hollows of a running sea."

(Joseph Conrad, Prince Roman, Selected Short Stories, Wordsworth, 1997, pp. 207-208)

- Sobre o britânico Joseph Conrad e polaco Józef Korzeniowski, e nisso também sobre suas ideias relativamente à Rússia, ver este interessante artigo, muito recorrendo à sua correspondência: "Conrad and European Politics", de Sylvère Monod

(Deixara esta citação há muitos anos no ma-schamba)

02
Dez22

Colibri Noir, n.º 1

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Em Maputo, hoje às 17.30 no Instituto Guimarães Rosa, será apresentado o n.º 1 da revista literária Colibri Noir. Trata-se de um ambicioso projecto da industriosa parelha (que é também casal) Teresa Noronha & António Cabrita. Os quais logo anunciam ao que vêm com esta realização, no propósito de afirmarem que "só o invisível (o que ainda não foi designado) traz qualidades ao sensível, é a sua anti-matéria, só a consciência do que está longe dá valor ao que nos é próximo e ainda não atingiu o seu realce. (...) estes cadernos mostrarão o que compõe morfologicamente o “corpo subtil” (outros lhe chamarão espírito) e lhes alimenta leituras e descobertas, as gratificações que lhes nutrem o afecto ou as consternações.". Para isso contam com os textos daqueles "Que gostam de andar ao relento e de sondar com a sua língua bifurcada ventos e poros alheios. A língua bifurcada de quem sonda outros níveis de realidade, o inaparente sob as aparências, o que possa desvelar o cerne."
 
Com esse desígnio o plantel deste primeiro cometimento é heterogéneo. Vem encimado por capa e algumas ilustrações de Idasse - e nisso invocará a memória, 4 décadas passadas, da lendária revista "Charrua", fulcral entroncamento no país literário. Mostra-se aberta a pequenos ensaios (Saer sobre Emily Dickinson), apresenta alguns "novos" poetas moçambicanos - novos porque nunca os li, entenda-se - David Bene, Mélio Tinga, Venâncio Calisto, e escritores estrangeiros, alguns nas palavras originais, pois portugueses ou brasileiros, outros traduzidos. Entre eles com as coincidências da presença do agora falecido Christian Bobin e da recém-Nobel Ernaux. Enfim, esta Colibri Noir é uma pérola, excêntrica no agreste terreno de publicações literárias nacionais. Mas sê-lo-ia, pérola, noutro sítio qualquer.
 
Por isto tudo, e muito para além da mera simpatia para com o "projecto" - para com a realização, melhor dizendo - será de lá ir, hoje, às tais 17.30. E comprar um ou mais exemplares, para ler, oferecer, emprestar. E, mais do que tudo, viabilizar - economica e afectivamente.
 
Olho para o convite que recebi e não deixo de sorrir. Pois só poetas militantes organizariam tal apresentação coincidindo com o Portugal-Gana e o Brasil-Camarões do Mundial de Futebol... Pois quantos de nós, leitores amadores e até mesmo alguns dos literatos candidatos, hesitaremos nisso do "que fazer?"... Eu, pragmático nunca-poeta, espero que o (para mim sempre) CEB por lá tenha um ecrã grande para se ir deitando o canto do olho aos jogos - e lembro, com tanto carinho, lá ter visto, entre casa cheia de gente esfuziante, a épica final do 1998, com a Inês, então minha mulher, e o tão saudoso Álvaro Neves da Silva.
 
Enfim, já divago... Do que se trata é da possibilidade de ir ver a apresentação do Colibri Noir. E de o comprar. E de o patrocinar. Que, pela amostra dada, mais do que justifica. Avante!

01
Dez22

Os Nobel literários

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(Postal para o Delito de Opinião)

Sobre os Prémios Nobel dividem-se as posturas do "grande público". Face aos atribuídos às ciências naturais - Física, Química, Medicina - nós-vulgo aceitamos os laureados, crendo na justeza dos critérios dos jurados especialistas e não acedemos a hipotéticos pareceres e/ou resmungos dos oficiais daqueles ofícios, publicados, se existentes, nas "revistas da especialidade". Um pouco como acontece nos "Nobel" metafóricos - Matemática, Arquitectura, Ciências Humanas, Economia, para referir os mais conhecidos -, ainda que sobre o Prémio da Economia de quando em vez se ouçam escassos ecos, devidos à celebridade prévia de algum laureado ou aos efeitos políticos que tenham tido (por exemplo, e respectivamente, Krugman e Sen).

Quanto aos outros dois verdadeiros Nobel a reacção é diversa. O Nobel da Política - dita como "Paz" para a retirar do âmbito da competência estratégica, "maquiavélica" por assim dizer, e a encaminhar para um putativo bem comum universalista - costuma levantar alguns achamentos. Mas não muitos, dado que a premiação abarca o contexto mundial e há um grande desconhecimento da política e dos agentes políticos internacionais, devido ao encarceramento geral nos telejornais generalistas (e, agora, nos podcasts que os reflectem). Para mais, o possível debate público desvanece-se pois os opinadores habituais dividem-se entre os habitantes dos sarcófagos da direita "profunda", múmias sempre avessas a quaisquer premiações benfazejas pois crentes que ressuscitarão através de um blaseísmo pomposo que julgam ser cepticismo filosófico. E os zombies esquerdistas, irredutíveis avessos a quaisquer louros atribuídos à "direita" do dr. Guillotin, o que desvanece a competência dos seus constantes ditirambos face ao evidente real.

Assim, para opinar, e livremente, sobra-nos o Nobel da Literatura, até porque todos nós, os que nos damos a ler, por pouco que seja, temos os "nossos escritores". E para isso somos competentes, pois neste "campo literário" estamos mesmo independentes da tutela dos especialistas, dos "mestres de pensamento" - é essa, aliás, a condição literária, mesmo que alguns a queiram negar. Como exemplo dessa praxis autónoma, geralmente aceite - e reclamada - lembro que quando Saramago foi premiado com o Nobel imensa gente me perguntou o que "achava" eu de tal feliz acontecimento: "porreiro" / "óptimo" respondia (consoante a cerimónia face ao interlocutor), pois que mais poderia eu dizer? E comparo com o facto de ninguém me ter questionado sobre o que tinha eu "achado" do Pritzker, quando foi atribuído a Siza Vieira e, depois, a Souto de Moura. E vou eu também assim, nessa condição de participante da "moldura humana" no estádio da Literatura mas relapso às transmissões das outras disciplinas, "técnicas": na "vitória" de Naipaul terei (quase) saído avenidas abaixo, cachecol "A Bend in the River", bandeira "In a Free State", buzinando "Mr. Biswas", gritando roufenho "Half a Life", eufórico. Enquanto no prémio outorgado a Sen - tão mais importante, até para a minha vida profissional - terei sussurrado um "boa!" e talvez um "já viste?" para a então minha mulher, também ela desenvolvimentista...

Enfim, divago pois onde quero chegar é a esta mitificação do Nobel (literário). Acabamos por crer que aquele cioso conjunto de académicos suecos, decerto que imbuídos de um persistente luteranismo evangelizador mesclado com um árctico marxismo, manso e bem-posto, atribui um definitivo pódio da arte literária, qual a medalha olímpica do salto à vara do Serguei Bubka ou a Taça Jules Rimet capturada pelos brasileiros. Mas não é o caso, e isso até lhes é obrigatoriedade, são os "termos de referência" que devem cumprir. Pois estão incumbidos de premiar um escritor que promova um sentimento benfazejo - um "ideário", ligado (no tal luteranismo) a um "humanismo" (no sentido vulgar do termo, um "humanitarismo" se se preferir). Missão ecuménica que, ainda por cima, nestes tempos globais - e pós-coloniais, com muita pressão "póscolonial" - deve aspergir a multiplicidade de visões e locais, ungir nos alhures que for possível. Ser global, por assim dizer. Ou seja, o prémio vale o que vale, é simpático, mima escritores - premiados ou não -, anima livrarias e editoras, comove especialistas críticos. E convida os leitores, os mais militantes e os mais relapsos. Mas, em termos literários, não é um troféu, é uma honraria - uma menção honrosa...

Quanto à qualidade intrínseca, ao "carácter absoluto" dos premiados? A Glória?! Isso foi respondido há já 70 anos: um escritor debruçava-se então sobre o pouco relevo dado - séculos passados - a Quevedo, por quem nutria ele grande admiração. E explicou esse quase esquecimento desta forma: "Para a glória, dizia eu, não é indispensável que um escritor se mostre sentimental, mas é indispensável que a sua obra, ou alguma circunstância biográfica, estimulem o patetismo. Nem a vida nem a arte de Quevedo, reflecti, se prestam a essas ternas hipérboles cuja repetição é a glória....".

Desprovido desse patetismo, ou dos meneios próprios de a este promover, também a esse escritor não foi atribuído o Nobel, ainda que isso fosse habitual aventar. Tanto assim que acabou por concluir que "No darme el Premio Nobel se ha convertido ya en una antigua tradición escandinava. Cada año me nominan para el premio y se lo dan a otro. Ya todo eso es una especie de rito."

 

15
Nov22

Inícios

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Muito se fala dos grandes inícios das grandes obras de ficção. Nesse rol é quase obrigatório convocar o do clássico "Moby Dick" (Call me Ishmael. Some years ago—never mind how long precisely—having little or no money in my purse, and nothing particular to interest me on shore, I thought I would sail about a little and see the watery part of the world. It is a way I have of driving off the spleen and regulating the circulation.) e nisso vir até ao do já quase clássico "... Morte Anunciada" "El día que lo iban a matar, Santiago Nasar se levantó a las 5.30 de la mañana para esperar el buque en que llegaba el obispo"... Ou então um, de "Meridiano de Sangue", que bate à porta deste panteão: "See the child. He is pale and thin, he wears a thin and ragged linen shirt. He stokes the scullery fire. Outside lie dark turned fields with rags of snow and darker woods beyond that harbor yet a few last wolves. His folk are known for hewers of wood and drawers of water but in truth his father has been a schoolmaster. He lies in drink, he quotes from poets whose names are now lost. The boy crouches by the fire and watches him."

Mas talvez estas opções nos venham de um "cronocentrismo", uma atenção demasiada pelo que nos é "actual", no qual reconhecemos uma intimidade. E, claro, de uma simpatia pelas "histórias" que os ficcionistas inventam para nos encantar e, às vezes, iluminar.  Pois, se é para se falar de "princípios", de entradas, que mais impressionante haverá do que esta abertura de Séneca?:

"Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos. Convence-te de que as coisas são tal como as descrevo: uma parte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente."

(Séneca, Cartas a Lucílio. Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 1. Tradução J. A. Segurado e Campos)

13
Nov22

Rushdie

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Aqui deixei nota da minha preferência pelas revistas antigas, com os anos passados sobre a sua edição a depositarem uma pátina, um composto químico de carinho e ironia, sobre as grandes proclamações, inevitabilidades, sensações e novidades que nelas se anunciam, algo que me delicia como leitor retardatário. No fundo, é a produção do ambicionado "olhar distanciado", coisa que o decorrer dos tempos ajuda a florir ainda que não seja - nem de perto nem de longe - factor suficiente. Mas nem sempre é esse o fruto desta distância, há casos em que um exemplar antigo nos surprende, na sua qualidade e pertinência, num espontâneo "caramba, já faziam coisas assim naquele tempo?", óbvia distracção a confundir o pó (e odor) acumulado em meia dúzia de anos com uma evidência de eras bem transactas, qual verdadeira "escavação" na história intelectual...

Tenho a casa atafulhada dessas velhas revistas, grande parte delas legado paterno e algumas até de origem avoenga, e vou folheando-as por desfastio. Para por vezes me encantar, com peças mais excêntricas ou recuadas ou, como agora, com algo bem mais vizinho, um belíssimo produto lisboeta com apenas meia dúzia de anos. Falo do nº 144 (Inverno 2016/2017) da LER, revista com a qual durante tive uma relação de completo evitamento, abominando-lhe paginação, corpo de letra e, acima de tudo, as cores do miolo - uma malvada conspiração gráfica que a fazia verdadeiramente ilegível, e isso numa época em que eu nem sequer usava óculos. Felizmente há já bastante tempo que a  publicação sofreu uma revolução "artística", tornando-a acessível ao "povo óptico", decerto que sob o glosado lema "a revista a quem a leia..."

Pois esta LER 144 é uma preciosidade: pela panóplia das então "novidades" editoriais e os necessários debates / polémicas - e o Nobel acabara de ser atribuído a Dylan, algo que fora um abalo tectónico no "campo literário". E nas rubricas habituais, como a coluna de Eugénio Lisboa, veemente no resmungo com James Joyce (iconoclastia que vem continuando, nas suas magníficas entradas no De Rerum Natura). Ou em peças mais construídas, como um interessante artigo de Vasco Rosa sobre o início da carreira literária de Raul Brandão, enorme escritor que muito mais deveria ser lido, e cujo centenário então se comemorava, ou uma abrangente entrevista de António Araújo sobre o seu livro "Da Direita à Esquerda" (que nunca li mas que aceitarei emprestado). Tudo isto quase culminando em dois preciosos, de fundamentais, artigos: "Liberdade vs Politicamente Correcto", de Camille Paglia, e "O Firme Princípio da Liberdade" de Timothy Garton Ash. Enfim, tudo isto será suficiente para transformar esta "revista velha" em algo de muito apetecível, pelo interesse e pela actualidade. 

Mas de facto tem ainda mais: uma entrevista (de 6 páginas, realizada por Isabel Lucas) de Salman Rushdie, feita aquando da sua visita a um festival literário em Óbidos. A qual tem uma parcela comovente, na qual o escritor - então aproximando-se de septuagenário - alude ao final, em 2000, do longo período em que viveu sob protecção devido à condenação à morte emitida pelo terrorismo estatal iraniano. Dizia ele: "Ter aquele aparato de segurança durante 11 anos e de repente decidiram parar. Para mim, 48 horas depois foi como se nunca tivesse acontecido. (...) É tão maravilhoso. (...) Só penso nisso quando tenho de responder a perguntas de jornalistas. O resto do tempo estou a ter uma vida normal. (...)

Eu não sou uma metáfora. Sou uma pessoa. Não me sinto metafórico, mas muito exa[c]to, concreto. Fiquei muito cansado disso tudo, porque já não vivo mais assim. Houve um tempo em que sim, e agora, e desde há muito tempo, não. Estou muito interessado no que se passa no mundo, mas essa já não é a minha história. É a história de outras pessoas. O meu capítulo particular terminou." (pp. 104-105).

Anos passados, e face aos efeitos devastadores do brutal atentado que Rushdie veio a sofrer já este ano, estas declarações, a crença que nelas vivia, são comoventes. E servem-me também para sublinhar o meu desprezo pelos políticos da "esquerda socialista" que fazem gala em matizar o repúdio face ao terrorismo do fascismo islâmico - algo sobre o qual, metendo o nome aos bois, botei neste postal.

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Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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