A piedade
Começo o confinamento - que afinal não o é tamanha a confusão portuguesa, percebi-o depois - com um regresso ao Bartleby de Melville. 30 anos depois da última leitura, dizem-me os gatafunhos que deixara no livro. O mesmo impacto com este "I would prefer not to" a tudo e todos, aparentemente sem sentido, sem razão, aquela apneia no langor, o sem rumo nada errante da vida da era d'agora mas mais ainda deste por ora ... E depois a desapiedade:
“As minhas primeiras emoções haviam sido de pura melancolia e da mais sincera piedade; mas à medida que o desamparo de Bartleby crescia e se desenvolvia na minha imaginação, essa mesma melancolia transformou-se em medo, aquela piedade em repulsa. Tão verdadeiro ele é, e tão terrível também, que até certo ponto o pensamento ou o espectáculo de miséria ganha o melhor dos nossos sentimentos; mas, em certos casos especiais, para além desse limite, não. Erram quantos afirmam que tal se deve, invariavelmente, ao egoísmo inerente ao coração humano. Antes tem a origem num certo desânimo, incapaz de remediar um mal excessivo e orgânico. Para um ser sensível, a piedade é, não raras vezes, sofrimento. E quando finalmente entende que uma tal piedade não pode levar a uma efectiva ajuda, o senso comum obriga o espírito a ver-se livre dela.”