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Nenhures

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Amanhã será anunciado o Prémio Nobel da Literatura. Pouco importam as constantes críticas aos critérios de nomeação e de selecção final, pois esta honraria adquiriu tal repercussão mediática que se tornou um verdadeiro solstício literário. E sendo vivido nesta extremada mundividência concorrencial, o ritual não induz um generalizado potlatch (esbanjo festivo) leitor, uma época de febre colectiva de corrida aos tantos escritores, mas mais se tornou numa celebração olímpica, o mero laurear de um campeão de torneio. Assim implicitamente consagrando a Academia premiadora como dotada de uma prerrogativa universal, qual um bando de suecos panópticos.

Mundo afora imensos letrados torcem pelos seus "campeões", opinam, criticam - bem ao invés do que acontece nas premiações congéneres, cujos meandros são deixados aos especialistas, aos oficiais dos ofícios... Também por isso o furor crítico que sempre recai sobre os anúncios, entre as invectivas dos adeptos desiludidos, esses que julgam ser o seu apreço por alguns escritores já suficiente para adquirirem o estatuto de "connaisseurs" - e por mim falo, que também sigo "leitor de bancada", opinando/torcendo apesar de leitor medíocre da literatura contemporânea, que dos premiados em XXI apenas lera 7, rejubilando com as atribuições a Naipaul, a Coetzee e Vargas Llosa, sorrindo às "Crónicas" de Dylan ainda que percebendo que não seria por isso, indiferentando-me com Pamuk, surpreendendo-me com Handke, resmungando com Modiano. E, mais relevante ainda, desconhecendo tantos, quase todos, dos variados outros "finalistas" todos os anos propalados como "favoritos" pelas casas de apostas. Mas mesmo assim todos os inícios de Outubro me encontro no "espero que...", e já foram duas décadas de um (algo patriótico) "Lobo Antunes ou então...".

Mas as críticas às decisões vêm também devido às causas que se presumem conduzir às premiações. Muitos clamam que as escolhas obedecem a critérios extra-literários, de índole política. Ululando contra o dito "politicamente correcto", quando a glória recai sobre autores provenientes de sítios, geográficos e linguístico-culturais "excêntricos" (já agora, como Portugal, direi) - que é argumento que saltará de imediato se o verdadeiro veterano Ngugi wa Thiong'o for finalmente premiado -, num verdadeiro reflexo do mero "quem é esse tipo?", o qual nada mais significa estar o leitor contestatário não só ufano das suas digressões na Feira do Livro local, da arrumação das suas estantes domésticas e mui convicto da sua abrangente sapiência no assunto.

E mais críticas contra os tais critérios "políticos" assomam quando alguns dos galardoados são locutores de posições ideológicas, até mesmo com participação política - de imediato pontapeados pelos desiludidos "apostadores" se estes sentados noutras "barricadas de sofá", que logo os reduzem a propagandistas de "más causas". E temos em casa própria exemplo bem notório disso, com tantos ainda hoje, um quarto de século depois, e já morto o homem, a desmerecerem Saramago não só por "escrever sem pontuação" como por ser do PCP...

Ora nessas ladainhas, de gente clamando a exigência de critérios exclusivamente literários - como se a Academia Sueca fosse um nosso órgão electivo municipal ou nacional -, expurgados de tudo o que não seja "génio", esquece-se que o Nobel da Literatura foi mesmo criado para homenagear o talento literário que pugne por ideários, mais ou menos sistematizados em ideologias, uma espécie de humanitarismo fabiano. Algo que colmatasse a exagerada utilização da dinamite, talvez... Ou seja, no âmago do Nobel literário está inscrita a opção por "políticos", pela divulgação de um qualquer ideal benfazejo. Dito de melhor ou mais actual forma, pelo expressar de um olhar "crítico" sobre o devir que vai vindo.

Enfim, tudo isto dito, e apesar de nunca ter lido os nomes agora mais favoritos, aqui fica o meu desejo - até porque a minha opção (algo patriótica, repito) Lobo Antunes já não consta dos premiáveis - de que este ano Salman Rushdie seja premiado. Pela grandeza da da sua obra, claro. Pelo impacto mundial até extra-literário que isso teria. Pelo recente vil atentado que sofreu. Pela afronta que os fundamentalistas religiosos e os timoratos relativistas coniventes sofreriam (e sobre esses escrevi o "A propósito do ataque a Salman Rushdie").

E também pela sua intransigente defesa da liberdade de expressão e da integridade artística, opondo-se à vilania esquerdista, dita "woke", esse tétrico movimento do expurgar as obras literárias do passado e de censurar as do presente em nome de putativas "sensibilidades" e "boas causas" actuais. 

E para quem possa pensar que este paleio subalterniza os escritos em relação ao seu escritor, coisa de mera actualidade, "espuma dos dias" a dever ser apartada de uma sacra "literatura", deixo um texto - já com 41 anos !! - do grande V.S. Pritchett a receber o então neófito Rushdie e o seu fulgurante "Os Filhos da Meia-Noite". Apenas para sublinhar, mesmo, que o autor tem muito mais do que a tal "actualidade"...

6 cordas.jpg

"Para as 6 cordas", um pequeno conjunto de canções (milongas) de Jorge Luís Borges. Nunca o lera, escondido que me estava num dos tomos das suas Obras Completas, o II (publicado pela Teorema, 1998). Precioso...

Por exemplo: "Como é seu hábito, o Sol / brilha e morre, morre ardente / E no pátio, como ontem, / Há uma lua esplendente, / Mas o tempo, que não pára, / Todas as coisas ofende - / acabaram-se os valentes / E não deixaram semente (...) - Não se aflija. Na memória / Do tempo ainda não presente / Também todos nós seremos / Os primeiros resistentes, / O ruim será generoso / E o frouxo será valente : / Não há coisa igual à morte / Para melhorar a gente."

Roman Sanguszko, príncipe.

"This looks like mere fanaticism. But fanaticism is human. Man has adored ferocious divinities. There is ferocity in every passion, even in love itself. The religion of undying hope resembles the mad cult of despair, of death, of annihilation. The difference lies in the moral motive springing from the secret needs and the unexpressed aspiration of the believers. It is only to vain men that all is vanity; and all is deception only to those who have never been sincere with themselves".

(Joseph Conrad, Prince Roman, Selected Short Stories, Wordsworth, 1997, 218)

(antes deixado aqui)

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(Fotografia de Richard Burbridge)

Na The New Yorker um grande artigo - "The Defiance of Salman Rushdie", escrito por David Remnick - sobre o regresso de Rushdie, debilitado mas recuperado do fanático atentado que sofreu há meses.... Encontro-o na página da revista no Twitter, na qual a este propósito abundam os comentários pejados da sanha assassina dos fascistas idólatras da superstição, uma coisa pavorosa.
 
(Uma viscosa aberração que é também "muito cá de casa". Pois não propôs há tão pouco tempo o PS de Costa um candidato ao Tribunal Constitucional, antigo governante de Guterres, íntimo correligionário de Sócrates, que como deputado dizia no parlamento serem os terroristas islamitas iguais aos artistas ditos iconoclastas - e isso diante do silêncio geringôncico, que para esse indivíduo não houve escrutínio"woke" nem "causas" libertárias?).

"...patriotism - a somewhat discredited sentiment, because the delicacy of our humanitarians regards it as a relic of barbarism ... It requires a certain greatness of soul to interpret patriotism worthily - or else a sincerity of feeling denied to the vulgar refinement of modern thought which cannot understand the august simplicity of a sentiment proceeding from the very nature of things and men". 

(Joseph Conrad, Prince Roman, Selected Short Stories, Wordsworth, 1997, p. 206).

 

 

Neste Fevereiro cumpre-se um ano de guerra na Europa. A qual vem implicando um enorme esforço assente no "patriotismo", o ucraniano. E é interessante ver como na Europa, e por cá, a extrema-direita "soberanista" logo se tombou por simpatias pela força imperial agressora contra o que sempre diz defender, as tais nações, nisso confluindo com a esquerda comunista, esta que sempre se reclama de avessa aos "impérios". Sendo os democratas, mais ou menos confederativos, os grandes apoiantes desse esforço patriótico. De como a realidade bem mostra a falácia das demagogias.

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