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Nenhures

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Hoje, terça-feira 21 de fevereiro, às 18:30, será a apresentação do livro “Chãos e Outras Arritmias" do escritor moçambicano Francisco Guita Júnior. Acontecerá na "Ler Devagar", em Lisboa.

Em 1997 fui viver para Maputo e - tanto por razões profissionais como por questões urbanísticas, dado que naquela época a burguesia estava muito concentrada, nisso atreita ao convívio, pois ainda não tendo migrado para as zonas suburbanas como veio a acontecer nas décadas subsequentes - logo conheci muitas pessoas pertencentes aos meios académico e artístico. Foi um período, lembro-o bem, encantador. E talvez também encantatório... Não trato aqui de fazer um - nisso sendo até piroso - rol de personalidades conhecidas, mas apenas de tentar partilhar algum desse tal encanto, o de um (ainda) jovem de 32 anos, mergulhado no país, e podendo ter longas e intensas conversas com alguns dos mais-velhos, até já míticos, como Craveirinha, Malangatana, José Mucavele, Kalungano, Shikani, José Luís Cabaço, Rangel, Kok Nam, acompanhar o Mutumbela Gogo, e imensas vezes partilhar mesas (formais ou informais) com os das gerações mais novas - como o meu querido e apaixonante Ídasse, Nelson Saúte em grande produtividade (continuo a pensar que tinha, pois então o mostrou, e terá tudo para ser um excepcional romancista), White em era de extremo apuro poético, o extraordinário Noa ou o incansável Sopa, etc.

Mas recordo também que nesses anos finais de XX foram dois os núcleos que realmente me atraíram - e nesta memória aparto o contexto da dança (contemporânea) que só depois vim a conhecer. Um então inicial movimento artístico, o "Arte Feliz" - encabeçado por Bento Carlos Mukeswane e Gemuce, que haviam sido formados em Kiev (o Jorge Dias, só conheci depois, pois estava no Brasil) - embrião do Movimento de Arte Contemporânea que viria a animar a década seguinte. E um (literalmente) excêntrico momento literário sediado em Inhambane, o "Xiphefo", um óbvio movimento de geração então já algo fenecendo após uma década fervilhante, cujos nomes mais constantes eram Kadir, Guita Jr e o Danilo Parbato - este já residente em Maputo. E bem me lembro do meu espanto (o tal encanto) ao conhecer a Inhambane desse tempo, naquele ainda pós-guerra, e ao imaginar aqueles rapazes da minha idade ali mergulhados desde os terríveis meados de 1980s nas aventuras poéticas. E de pensar "quem me dera trabalhar em Inhambane", mas não por quaisquer razões turísticas... Não só mas também pela qualidade e entusiasmo daquele grupo de poetas.

Décadas passaram e desse movimento ao que eu saiba é o Guita Jr. que continua a publicar, num ritmo algo pausado. Hoje apresentará em Lisboa o seu último livro, este "Chãos e Outras Arritmias". Isto de viver recuado, algo distante do centro, tem coisas boas (a paz possível, a maior de todas). Mas tem também o outro lado, o de perder momentos, vislumbres. E livros... Enfim, fica o aviso para os que se interessem - hoje é feriado, é até mais fácil percorrer o trânsito da capital. E se for(es) daqui, deste blog, e se chegar(es) até ao (consuetudinário) autógrafo final faz/ça-me o favor, diz/ga ao Guita Jr. que um tal de Zé Teixeira lhe manda um abraço.

rui-knopfli-1932-1997-ecoo-inteiro-a-forca-do-meu-

Em geral convém ser moderado nos elogios, pois em não o sendo quando apregoamos um qualquer apreço pouco impacto isso terá, resumido pelo fastio alheio num "lá está este...". Mas ainda que assim seja apregoo agora que este documentário "Rui Knopfli - I'm really the underground" (realização de Ricardo Clara Couto, argumento de Nuno Costa Santos) - que acabo de ver na RTP2 - é muito bom, mesmo muito bom. Excelente! E não só pelo tom e encenação, apuradíssimos - e com protagonismo cénico dado a um rádio igual ao que herdei da minha avó materna e que vim a fazer transitar para um dos seus bisnetos, pormenor que me deliciou mas que é bem secundário neste meu encanto... Pois este vem, repito-me, da excelência e pertinência do documentário.
 
Eu gosto muito da poesia de Knopfli, talvez pelo seu classicismo (como ali resume Francisco José Viegas - um dos entrevistados, junto à filha e à neta do poeta, e a Pedro Mexia, Eugénio Lisboa, Vasco Rosa, João Francisco Vilhena e ao já mais-velho Luís Carlos Patraquim, todos com deveras interessantes contributos), nisso sem lânguidos meneios oitocentistas nem poses crípticas de formalismos (pós-)modernos, bem ritmada ("jazzística" dela diz Eugénio Lisboa) e sem a deriva das metacitações, onanismo poético que me é insuportável.. E porque, poeta de Moçambique, isento dos sempre habituais tons "curio", essas "cores" ocres, esses linguajares "apoetizados" de "indigenismos" e, pior do que tudo, os malvados sentimentos "profundos" e "humanitários" tão ditos como "líricos", que fazem as delícias dos leitores africanófilos e dos "tops" de literatura "lite" premiável... E, ainda por cima, sem se conspurcar por gota que seja de "causas".
 
E gosto, adoro, a inteligente pertinência que teve ("atropelado pela História", muito bem dele diz Mexia), rara no seu mundo. Um dia usei-lhe um poema como epígrafe de um texto meu: "Feita de lavras / em pousio e esperança adiada / pertencemos todos a esta áfrica lusitana / que pelas outras se expandiria. Por estas / andámos perdidos, ignorando então / que a passagem obrigava ao regresso.", poema em fim de vida - mas dolorosa presciência já presente no seu inaugural "O País dos Outros" de 1959 - em apenas seis versos explicando o XX português, esse dos "portugueses em transição" (como diz Lisboa) num "paraíso a prazo" (Patraquim) que tão poucos dos seu contemporâneos pressentiram, sentiram e compreenderam e que ainda alguns, não tão poucos assim, insistem em incompreender. E no dia em que me fiz vir embora de Moçambique, irremediável passo mal dado, exigindo-me sozinho no rumo para o aeroporto deixei dito, lembrando-o, "Não sou o Knopfli, o Kok já morreu ["Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon / e olha-me obliquamente nos olhos: Não voltas mais? Digo-lhe só que não"], escreveu o poeta narrando-se em Mavalane à saída," quando indo-se da independência] - ele então expulso, partindo para um exílio perpétuo. E, como se viu e o sentiu ele, desabrigado, apesar do amparo pragmático que recebeu do país e do Estado.
 
Hoje à noite ao ver o belo documentário lembrei-me de quando Knopfli ressurgiu, no ano em que viria a morrer, com o terminal "O Monhé das Cobras", naquela década em que tinha visitado Moçambique, sendo surpreendido pelo acolhimento de escritores e leitores - na época muito dinamizado pelos seus admiradores Nelson Saúte e Francisco Noa, já então intelectuais centrais no país. O regresso em livro do "velho" poeta era marcante - e porque me deu para isso encomendei algumas dezenas (5? 10?) de exemplares, que era o que podia, para distribuir pelas bibliotecas e leitores do país. Decerto que terão sido lidos, justifico-me... E lembro também a excitação tida, coisa de um ano depois, aquando da publicação por António Sopa da pequena pérola bífida, a colecção de crónicas de José Craveirinha e Rui Knopfli chamada ""Contacto e outras Crónicas" (Craveirinha) + "A Seca e outros textos" (Knopfli), textos ditos "menores" mas riquíssimos...
 
Mas isso são memórias minhas, o relevante agora é ver o documentário. E o melhor é perceber que este não se fica (como temi) no Knopfli de Inhambane a Lourenço Marques, como é costume nas (ainda assim algo raras) invocações do poeta. Pois se ele veio a dizer que "daí nunca mais saí" o filme percorre um pouco do seu "exílio" londrino, o seu descabimento alhures. Ficou apenas por remexer aquele "Ilha de Próspero", sempre incensado mas que é, de facto, a grande fronteira do poeta, apesar de tudo homem do seu tempo - pois o macuti, a "Ilha" mesmo, onde vive quem de lá é e quem para lá vai, era-lhe externo, foi-lhe impenetrável, e é isso coisa que os dos estudos "culturais" e "literários" nunca conseguem perceber... Mas não seja por isso, pois o filme é mesmo (bi-repito-o) muito bom. E porque termina com este seu magnífico "Cântico Negro" - ensinem-no aos jovens, nas escolas e universidades, desempreguem os sacristãos de pacotilha que para aqui andam:
 
Cago na juventude e na contestação
e também me cago em Jean-Luc Godard.
Minha alma é um gabinete secreto
e murado à prova de som
e de Mao-Tsé-Tung. Pelas paredes
nem uma só gravura de Lichtenstein
ou Warhol. Nas prateleiras
entre livros bafientos e descoloridos
não encontrareis decerto os nomes
de Marcuse e Cohn-Bendit. Nebulosos
volumes de qualquer filósofo
maldito, vários poetas graves
e solenes, recrutados entre chineses
do período T´ang, isabelinos,
arcaicos, renascentistas, protonotários
– esses abundam. De pop apenas
o saltar da rolha na garrafa
de verdasco. Porque eu teimo,
recuso e não alinho. Sou só.
Não parcialmente, mas rigorosamente
Só, anomalia desértica em plena leiva.
Não entro na forma, não acerto o passo,
não submeto a dureza agreste do que escrevo
ao sabor da maioria. Prefiro as minorias.
De alguns. De poucos. De um só se necessário
for. Tenho esperança porém; um dia
compreendereis o significado profundo da minha
originalidade: I am really the Underground.

convite colibri.png

Em Maputo, hoje às 17.30 no Instituto Guimarães Rosa, será apresentado o n.º 1 da revista literária Colibri Noir. Trata-se de um ambicioso projecto da industriosa parelha (que é também casal) Teresa Noronha & António Cabrita. Os quais logo anunciam ao que vêm com esta realização, no propósito de afirmarem que "só o invisível (o que ainda não foi designado) traz qualidades ao sensível, é a sua anti-matéria, só a consciência do que está longe dá valor ao que nos é próximo e ainda não atingiu o seu realce. (...) estes cadernos mostrarão o que compõe morfologicamente o “corpo subtil” (outros lhe chamarão espírito) e lhes alimenta leituras e descobertas, as gratificações que lhes nutrem o afecto ou as consternações.". Para isso contam com os textos daqueles "Que gostam de andar ao relento e de sondar com a sua língua bifurcada ventos e poros alheios. A língua bifurcada de quem sonda outros níveis de realidade, o inaparente sob as aparências, o que possa desvelar o cerne."
 
Com esse desígnio o plantel deste primeiro cometimento é heterogéneo. Vem encimado por capa e algumas ilustrações de Idasse - e nisso invocará a memória, 4 décadas passadas, da lendária revista "Charrua", fulcral entroncamento no país literário. Mostra-se aberta a pequenos ensaios (Saer sobre Emily Dickinson), apresenta alguns "novos" poetas moçambicanos - novos porque nunca os li, entenda-se - David Bene, Mélio Tinga, Venâncio Calisto, e escritores estrangeiros, alguns nas palavras originais, pois portugueses ou brasileiros, outros traduzidos. Entre eles com as coincidências da presença do agora falecido Christian Bobin e da recém-Nobel Ernaux. Enfim, esta Colibri Noir é uma pérola, excêntrica no agreste terreno de publicações literárias nacionais. Mas sê-lo-ia, pérola, noutro sítio qualquer.
 
Por isto tudo, e muito para além da mera simpatia para com o "projecto" - para com a realização, melhor dizendo - será de lá ir, hoje, às tais 17.30. E comprar um ou mais exemplares, para ler, oferecer, emprestar. E, mais do que tudo, viabilizar - economica e afectivamente.
 
Olho para o convite que recebi e não deixo de sorrir. Pois só poetas militantes organizariam tal apresentação coincidindo com o Portugal-Gana e o Brasil-Camarões do Mundial de Futebol... Pois quantos de nós, leitores amadores e até mesmo alguns dos literatos candidatos, hesitaremos nisso do "que fazer?"... Eu, pragmático nunca-poeta, espero que o (para mim sempre) CEB por lá tenha um ecrã grande para se ir deitando o canto do olho aos jogos - e lembro, com tanto carinho, lá ter visto, entre casa cheia de gente esfuziante, a épica final do 1998, com a Inês, então minha mulher, e o tão saudoso Álvaro Neves da Silva.
 
Enfim, já divago... Do que se trata é da possibilidade de ir ver a apresentação do Colibri Noir. E de o comprar. E de o patrocinar. Que, pela amostra dada, mais do que justifica. Avante!

Fui ver o "Nhinguitimo" de Licínio Azevedo, curta-metragem refractando o conto de Luís Bernardo Honwana, ontem projectada no DocLisboa. Uma pequena pérola - e pequena porque são apenas 20 e tal minutos! Adoro, literalmente adoro, o conto - que, como poucos, tem a arte de em breves páginas ser uma súmula da História mas sem a isso se restringir, pois desprovida de panfletarismos. E muito gostei do filme. Vou velho, alquebrado, desprovido, notei-o com as lágrimas que me brotaram na breve cena romântica - essa que há anos, eu vigoroso, me teria feito sorrir, talvez até cáustico...
 
Mas nada desse meu encantamento me fará esquecer a dor sofrida, ali no escuro da sala da Cinemateca Nacional. Explico-me, desvendando-me, assim deixando-me nu diante dos amigos-FB. Como tantos tive os meus devaneios de vida: em miúdo sonhei-me Hector Casimiro Yazalde, o "Chirola", e logo depois Rui Manuel Trindade Jordão, eternos ídolos. Amadureci e quis-me Dexter, o Gordon, seu sax e desengonço. Mais tarde, já adulto e mais lido, ambicionei-me qual Sir Edmund, Leach esse mesmo, mente privilegiada em andanças únicas. Nada disso cumpri, e menos ainda me aproximei. Mas sobrevivi, não desiludido, fiel a um realismo realista nunca hiper, apenas convicto, resignado coriáceo na aprendizagem recebida em casa: "o mais difícil na vida é habituarmo-nos à nossa mediocridade". Restou-me, a partir dos 30 anos de homem feito, um mero sonho, o de ser cantineiro no cinema, figurante que fosse - cheguei a oferecer-me para tal a uma simpática realizadora patrícia durante uns camarões no célebre "Costa do Sol", algo recebido com evidente desprezo... Ciente desse meu (legítimo) anseio um dia uma querida amiga enviou-me um par das camisas que eu lhe dissera tanto desejar, estas de alças e rendilhadas, deixando perpassar o pelame, obrigatório adereço deste meu alter ego... Este mesmo que eu, há coisa de um ano, aqui convosco partilhei, invocando o referido "Nhinguitimo".
 
Pois hoje vi o filme. E encontrei o António Cabrita a representar o cantineiro - (e vai bem o sacana) -, roubando-me o derradeiro sonho de vida. E, talvez pior do que tudo, apresenta-se ali de camisa de linho branca, manga comprida, bem composta, e ainda por cima impoluta, sem nódoa de vinho ou de gordura e muito menos do encardido suor.
 
Enfim, não me queixo do que me decorreu neste já longo percurso, mais rico até do que terei merecido. Mas agora, depois de hoje, deste filme, deste ocaso, nenhum sonho, nenhuma ambição, me resta. Maldita camisa de linho. Imaculada, repito-o...
 
(Postal para o meu mural de Facebook)

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Há algum tempo a Teresa Noronha publicou este Tornado. Disseram-mo muito interessante. E vi resumirem-no como um rescaldo sofrido, autobiográfico, da perda de um irmão suicida. Ou também um outro rescaldo sofrido, até jeremiada, sobre o processo nacional moçambicano. Fui ler. Percebi outra coisa, que é um texto sobre buya nwana, esse "buya nwana" que é "tudo o que está para lá ou para cá das palavras e que repousa nos olhos e no colo" (p. 76)... de alguém, digo eu. E de como a autora, a Teresa, vive(u) isso, esse magma, e o decidiu narrar.
 
Acabo de saber que lhe foi atribuído o Prémio PEN Club Português 2022 para Narrativa. Motivo que será suficiente para que quem não tenha lido o livro o procure e, pelo menos, o folheie. Ou mesmo o compre e leia, que bem se justifica...

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