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Nenhures

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21
Out23

Leituras de Sábado

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Depois de uma semana de azáfama e ansiedade, e assim de poucas leituras, acordei hoje ainda de noite. E saudando este até-que-enfim final do longo Verão, deixei-me a ler. Há algum tempo resmungara no FB que não gostara de "Caim" de Saramago, e atiraram-me pedras arrancadas ao Carmo e à Trindade, junto a gritos de "beato" e "reaccionário"... Sorrira, num "ele há cada um!", e sacara do "A Viagem do Elefante", que nunca li. Mas agora deixei-o empilhado, devido ao que me diz o meu pai, o Camarada Pimentel, comunista militante, admirador do Saramago ideólogo, do Saramago anticlerical e do Saramago escritor - do qual comprou toda a obra, que vim a herdar. Diz-me o meu pai, cerca dos seus 85 anos, ainda a uns anos da morte, eu vindo de férias a Portugal, que anda a reler os portugueses, algumas coisas da sua juventude até... "Ferreira de Castro", "a sério?", surpreendi-me eu, "não era um grande escritor mas tem coisas muitos interessantes...", afiança-me, e eu depreendo-lhe o apreço por aquelas sagas de emigrantes, desvalidos e laboriosos... "E Saramago também, umas coisas que não lera. E reli o Levantado...", e mais sorrio eu num mudo "Claro!". "Mas sabes", continua ele, "grande escritor mesmo é o Aquilino!", e está enfático no folhear de um dos livros do mestre.
 
E por isso, nesta memória, pego neste "Quando os Lobos Uivam", e recomeço a releitura, não fosse ter perdido o fio à meada nestes meses de interrupção. E na alvorada leio o extraordinário 1º capítulo, o regresso de Manuel Louvadeus à sua casa aldeã depois de longas andanças no Brasil. E nesse entretanto a apresentação do ambiente, das gentes - que é livro com personagens e não apenas "temáticas" ou "sensações" - e da trama., essa dos baldios do povo serrano que "Lisboa" quer abarcar para deles fazer "pinhal" e chamar-lhe "natureza". Tudo numa escrita esplêndida, riquíssima - tanto assim que pejada de pepitas que já nem conhecemos - e tão rija como as pessoas que retrata.
 
E livro tão actual, pois fazendo falar quem de onde "O solo era negro e sujava as mãos. A gente boa sumia-se na emigração. O que sobrenadava era o rebotalho. Pudera, tanto o lavradorzinho da arada como o cabaneiro viviam frigidos com tributos, mais escravos que os negros. Davam de comer à cáfila toda. Sustentavam o fidalgo, o ministro, o doutor, o escrivão, o padre; sustentavam o pedinte, o citote, o ladrão; desfaziam-se em maná, e ficavam nus e viviam nus que nem castanheiros depois de abanados." (29). E livro ainda mais actual, pois agora em país de tantas lérias sobre "combate ao fogo florestal" e sussurros sobre "minas de lítio". E está quase tudo no enorme Aquilino.
 
Leio apenas este capítulo, pois lerei apenas um por dia, forma de saborear. Bebo a malga de café e regresso ao único livro que tenho de João Barrento, o recente Prémio Camões, este "O Espinho de Sócrates", já de 1987 - tão recuado assim não será a melhor forma de lhe conhecer o pensamento. 4 artigos sobre temas literários, não é a minha área de interesses nem conhecimento, salto-os. Mas leio o último, o breve "Para uma sociologia das vanguardas: entre o guetto e o museu", algo mais abrangente e interessante para quem queira reflectir sobre produção artística-literária e sua recepção. Eu quis, em tempos recuados, mas já não - devia ter lido isto há muitos anos...
 
E sigo ao "Tristia" de António Cabrita, "Um Díptico e Meio" avisa o poeta ser este monumento em livro (Húmus, 2021). Que posso dizer a sua espécie de Odisseia interna por Moçambique, se bem que o Cabrita decerto arranjará outras, e várias, formas míticas para se recobrir. Avanço assim pelo que refez da sua "Piripiri Suite", provocatório título (para quem não saiba Piripiri é como se a Portugália de Maputo). E logo atento nele, retratando-se professor universitário, num "Zoologia dos fluxos: os marcadores de feltro / não chiam no quadro, enquanto a respiração / nas minhas costas me soa demasiado compassada. / No fito de os acordar deito a vasa: "hoje, o catolicismo / está para o cristianismo como eu para o Brad Pitt!".
 
Rio-me, com gargalhada solitária, como se estivesse eu diante do Cabrita em Maputo, de uísque na mão.... E digo-lhe, "vale isto mais isto, este naco, do que o Caim, porra...". Ele também se ri, vejo. Mas nisto perdi o embalo, fraco leitor de poesia que sou. E troco o volume, bojudo, por coisa que me é mais acessível, este "A Promessa da Política" de Hannah Arendt, e avanço no seu primeiro artigo, "Sócrates" - luminoso, garantem-me os meus gatafunhos e sublinhados, feitos em tempos de leitura profissional, mas do qual não tenho quaisquer notas. E vou fazê-las, ainda que saiba que agora me serão já inúteis.

Ainda estou a páginas vintes e almoço, cedo, uma maravilhosa, até poética, açorda de bacalhau, os salvados do festivo jantar de ontem. Caiu-me tão bem que vou dar uma vista de olhos pelos jornais, que o Sporting jogará e hoje há o Inglaterra-África do Sul e tenho de estar actualizado. Nesse entretanto encontro este belo artigo sobre o impacto mundial das redes sociais, e dos dísticos #booktok e #bookstagram, na leitura. E ocorre-me que será preciosa leitura para alguma gente, mais convicta de si-mesma e sempre nisso muito crítica das leituras alheias, inscrita no enorme grupo-FB Mostra o que estás a ler... Nem que seja para lerem o cabeçalho: "As redes sociais vieram tornar a leitura mais acessível e mais afastada daquela ideia académica de que o livro tem de ser uma fonte de educação em detrimento de uma fonte de entretenimento." E nisso se valorizando o fundamental, a acção de leitura, a suspensão do circundante, uma atitude - intelectual e física. E, já agora, a crença, o pacto com a plausibilidade e/ou relevância do que se enfrenta.

E tanto gosto do texto, do que ele enuncia, que venho blogar.

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O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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