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Nenhures

Nenhures

30
Mar25

A "lisboa" Literária

jpt

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Há três anos fui beber um copo de fim-de-tarde com a minha querida amiga Ana Leão, que chegara de Moçambique. Disso deixei esta croniqueta - de que gostei, tanto que a meti no pacote "Torna-Viagem" que venho impingindo. Nostálgica, até saudosista, muito resmungona. Mas também esperançosa. Pois foi o dia em que descobri a Livraria Martins na Guerra Junqueiro - era muito recente, dela não ouvira falar, desconhecia a origem, até a julguei ser coisa de "carola" livreiro mas afinal é de grupo editorial (o que é bom, garantir-lhe-á alguma sustentabilidade).
 
Não fiquei cliente - não posso comprar livros. Mas fiquei simpático. E, passados anos, ao descobrir que organiza um "podcast" Quinteto Literário ouvi duas sessões. Agora a terceira deu imensa polémica. Pois o crítico e escritor João Pedro George espalhou-se, e muito (e muito mesmo...) ao falar da escritora Madalena Sá Fernandes, e com o beneplácito do moderador do programa (que também meteu os pés pelas mãos, já agora). George já fez a sua samokritica mas quero crer que não lhe chegará para acalmar más vontades e abrenúncios.
 
George é um tipo interessante de acompanhar (ler). É uma espécie de "etnógrafo" do "campo literário" português - e como é usual entre os etnógrafos quando se abalança às suas "monografias" escreve de modo insistente, repetitivo, até cansativo, tamanha a sanha expositiva. Nesse registo lembro quando dissecou o Cotrim e quando abocanhou o Mega Ferreira - então ainda vivos -, textos relevantes pois demonstrativos do "campo cultural-político" da "lisboa" em que vivemos.
 
Neste caso borregou. Porque falou em termos descabidos de uma escritora, e isso será uma conclusão unânime. Inventa-lhe uma auto-erotização publicitária que não é verdadeira. E critica-a por divulgar os seus livros ("so what?", perguntar-se-á em bom português). Mas a matéria mais relevante é o conteúdo da sua anunciada "abordagem sociológica" à escritora.
 
Eu não conhecia Sá Fernandes até há umas semanas. Tenho uma filha de 22 anos - já agora, a Carolina, que apenas vivera em Portugal durante os confinamentos e no ano do seu primeiro mestrado, emigrou ontem, "foi lá para fora ganhar a vida" - que é uma jovem Senhora bem lida. O que é normal, pois com uma mãe leitora, um pai que também o é, ainda que anárquico, e avós leitores. Nenhum de nós, seus ancestrais, somos da "literatura" mas fomos dando "dicas". E ela desde há anos que faz o seu rumo leitor. Há dias recomendou-me uma crónica de Sá Fernandes - sobre o Café Luanda e sua avó - na qual se reviu. Eu também, simpatizei. (E é ela quem agora me chama a atenção para este "caso").
 
E julguei aquela crónica bem melhor do que inúmeros textos na imprensa de escritores renomados - "consagrados", "canónicos", indiscutíveis membros da "literatura" - que anunciam como "crónicas" meros textos de opinião política. Opiniões essas (mais ou menos justas ao olhar de cada um, isso não interessa) que são formas de construir, sedimentar, reproduzir, publicitar, a "personalidade literária" de cada autor. Uma auto-construção do "eu", do "self" literário, que parece ofender os membros daquele podcast culto da Livraria Martins. Mas, de facto, alguém ficcionista/poeta que vai para os jornais escrever (sem sequer ser pago, como agora é norma) a favor/contra ucranianos, palestinianos, vítimas dos bancos, da violência doméstica, vacinas, trump e quejandos, está-se a "construir" / "divulgar" mais do que se for almoçar à bela Serpa e se deixar fotografar. Feliz.
 
(E, lamento, mas uma pessoa com 30 anos normalmente é mais bonita - fresca, que seja - do que com 50 ou 60. Estes últimos podem ter ganho prémios literários, terem sido louvados no Público e no JL, mas estarão encanecidos, engelhados, com papadas descendentes, barrigudos, carecas. Criticar-se os mais-novos por não estarem assim? E terem o desplante de sair à rua nesses mais ou menos belos modos?)
 
Enfim, a matéria da "abordagem sociológica" deste modo exercida desperta-me dois eczemas, ambos relacionados com a velha oposição "nós"/"outros", o que bem ultrapassa os conteúdos das obras (até porque não sou especialista da "literatura"). No fundo, trata-se da tal "lisboa" a autodefinir-se. E resmungo com esses meus pruridos assim:
 
1. Abordar o trabalho de alguém segundo o paradigma "Joana Marques". Ou seja, abandalhar. Acontece que Joana Marques tem humor, esse sacrossanto álibi. E de facto esmiuça, cruel, o lumpen do entretenimento nacional, o qual incessantemente produz mundividências muito criticáveis - o outro dia ouvi-a sobre um DJ que clamava que aqueles que não seguem boas "griffes" não saem da "sopa torta", por exemplo.
 
Mas é impertinente abandalhar uma escritora, pacífica, apenas porque se considera que escreve segundo os modelos da "escrita criativa", porque (!!!) não corresponde visualmente às angústias que (d)escreve. Francamente, esta é a tal "lisboa" - "eu sou escritor e crítico" diz George, como tal pertence à "literatura". Já Sá Fernandes é gozada por ter o desplante de dizer "entrei na literatura". Isto é mesmo a tal "lisboa" desbragada, a cagança...
 
2. O segundo ponto, meu eczema mais grave, pois é o que mais me irrita. Sá Fernandes é invectivada - "sabe como se mexer neste mundo de hoje" - por usar as "redes sociais" para se divulgar (a tik-tok, a instagram, se fosse há alguns anos seria no FB ou mesmo, antes, nos blogs, estes lugares de ilegitimidade...). Ao lado de George e do moderador (que aventa ser a escritora uma "destruidora de casamentos", uma "boca" tétrica), está uma outra escritora, Ana Bárbara Pedrosa, da qual não li livros. Algo arredada do tom cáustico sobre a escritora, mas aproveitando para dissertar sobre a tal "construção" de "personalidades literárias" através do manuseamento da imagem nas redes sociais. Ou seja, as "redes sociais" (a exposição pública, entenda-se) e a conjugação com outros escritores são vistas como fenómenos "ilegitimadores" ou, pelo menos, apoucam...
 
É esta "lisboa" de novo. Desconhecia Pedrosa até há pouco. Há meses, numa alvorada, alguns amigos de Maputo avisaram-me de um texto dela, publicado (claro) no "Público". Passado algum tempo insistiu e publicou outro na "Sábado". Enviaram-me esses amigos a ligação ao primeiro texto acompanhada de questões, a mais simpática das quais era "quem é esta gaja?".
 
Ambos os textos são "crónicas" de viagem, quase como se reportagens, dedicados à situação política moçambicana. Poupo nos adjectivos: são ignorantes. E absolutamente cagões. E uma verdadeira encenação, uma produção de "personalidade literária" - a escritora empenhada chegada ao país "em crise" (ou, se se preferir, "a África"), que logo percorre (enfim, a capital...) e que logo tudo percebe e sobre isso perora, ciosa opinativa. A clarividência "on the road"...
 
Ou seja, para George e para o moderador, uma jovem escritora que escreve como ensinam na "escrita criativa" e se divulga porque se sabe mexer nas "redes sociais" digitais não "faz parte" e é achincalhável. Mas uma jovem escritora que se mexe bem nas "redes sociais" da "lisboa", a "secção africanista" do "Público" (sobre a qual é melhor nem discorrer) ou quejandos jornais, a "rede social" "activista", e decerto que em "sites" decoloniais, etc.? Essa já "faz parte". Pois "é das nossas".
 
Não fosse eu ateu e diria que os espíritos do Cotrim e do Mega Ferreira - que bem mereceram ser escalpados, já agora - se estariam a rir. Pois, de facto, "les beaux esprits se rencontrent".

26
Fev25

Um egolátrico nos Correios

jpt

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Sempre gostei dos "Correios" - talvez efeitos de uma infância feliz, muito composta pelas estadas em São Martinho do Porto, onde tínhamos casa, junto ao mercado, já no início da subida para o Facho. Durante as quais ia eu, petiz ufano, a acompanhar os meus pais nas habituais, obrigatórias mesmo, idas aos "Correios" - sitos junto à baía, após a célebre "Rua dos Cafés" (de facto Vasco da Gama). Iam eles lá para... telefonar aos meus avós, todos já septuagenários! Tão diferentes eram esses tempos. Depois era obrigatório sentarmo-nos no café (o do "Careca", opção de classe do meu pai...). Onde eu tinha direito, desde a mais tenra idade, a um "garoto" (como se chamava então ao actual café pingado). Bebida que me fazia sentir imensamente "crescido".
 
Terá sido o recordar de todo esse mimo que me levou a tanto apreciar este velho - e então já algo anacrónico, mas resistente (na época, ainda que já em XXI, ainda não se dizia "resiliente") - marco dos CTT, colocado no campus da Universidade Eduardo Mondlane, ali diante do edifício onde reside o Departamento de Arqueologia e Antropologia, no qual leccionei durante 15 anos. Tanto dele gostava que lhe dediquei um postal de blog há já... 19 anos! Caramba!
 
Enfim, estas memórias "postais" vêm a este propósito: como aqui bastante tenho referido, há meses que autopubliquei um livro sobre as minhas andanças. Vale o que vale, mas diverti-me a escrevê-lo. O qual se vende através do sistema de "impressão por encomenda" por... via postal. E nisso colheu muitos mais leitores do que esperava eu.
 
Há dias - e tanto para deixar de incomodar os interlocutores com o assunto como para aproveitar uma (pequena) promoção da plataforma editorial - perguntei "nas redes" se haveria ainda algum interessado, mais renitente a estes passos de aquisição via internet. Pois se houvesse uma dezena trataria eu da encomenda e sua distribuição... postal. Pagam-me, dão-me a respectiva morada, eu trato do resto.
 
E até ontem surgiram 48 interessados no meu "Torna-Viagem". 48!, fiquei estupefacto.
 
Ontem mesmo telefonei a um velho amigo, a indagar se quereria ele acompanhar-me ao lançamento do novo livro de um outro olivalense. Perguntou-me ele como ia isto do "Torna-Viagem", contei-lhe. Ripostou "estás a ver, ainda bem que alguém te convenceu a publicá-lo assim!" (fora ele, claro), um "assim" de autoedição por encomenda, sem editora, algo sempre socialmente desvalorizado. Rimo-nos. E avançou "ganhas algum taco com isto?", ao que respondi "Nada!" (tradução aproximada do inglês "Peanuts"). "És pago em ego", concluiu, sagaz. "Sim", gargalhei, sigo egolátrico, nisso por ora abonado. Para variar!
 
E, em assim sendo, para o final da próxima semana, exemplares impressos e recebidos, lá andarei eu em busca de marcos dos "Correios" a enviar livros. (E se calhar a perguntar aqui se haverá alguma boa alma, disponível para ser portador de alguns para Maputo, onde há amigos a "mandarem ir").
 
(O "Torna-Viagem" pode ser encomendado através desta ligação)
 
[Adenda: e não é que quinze minutos depois do postal já arranjei portador para Maputo?!]

23
Fev25

Leituras Correntes

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(Muitos continuam a resmungar que "não se lê", versão habitual do "tudo está perdido", chegámos "ao fim do mundo", etc., tudo também muito devido às "redes sociais". Enfim, cada cabeça sua sentença. Entretanto no Facebook estou num grupo - maioritariamente português - de leitores, o "Mostra o que estás a ler...", que conta já mais de 100 000 inscritos (!), numa actividade fervilhante dessa demonstração do que se lê. De vez em quando vou lá e deixo nota do que vou lendo. Hoje deixei esta nota das minhas leituras em curso):

Apeteceu-me reler "Lavoura Arcaica" de Raduan Nassar (Relógio d'Água), um livro de que gosto imenso - poderá ser visto como uma invocação da figura do "filho pródigo", uma visão sobre a vivência da repressão (familiar, social), um discurso sobre o autocontrole, e até etc. Eu vejo-o como uma belíssima narrativa, e Nassar é um dos meus escritores favoritos.

Estou a ler um livro de um dos meus avôs, "O Segredo do Major Thompson" de Pierre Daninos (Clássica Editora). Há cerca de 40 anos lera um antecedente, "Os Cadernos do Major Thompson" - e estou agora a gostar mais do que a memória que tenho do primeiro, talvez efeitos da minha idade, tornando-me mais ... pausado. Daninos era francês, escreve num rumo tipo André Maurois, e teve na época um enorme sucesso. São pequenas crónicas humorísticas, de uma ironia fina (e mansa, também), despretenciosa, jogando com os estereótipos nacionais. A sua criatura, o inglês Major Thompson vive em França, casado com uma francesa, e elabora sobre as características típicas dos franceses. Neste livro vai à Grã-Bretanha em familia e com amigos, e um destes, "Danainos" ele-próprio, elabora sobre as exdrúxulas características que encontra nos ingleses. É uma leitura muito simpática.

Nesta época convulsa (não o são todas?) está-me a ser útil, e prazerosa - ainda que não goste do profético título -, a leitura do "O Poder da Geografia: 10 Mapas que Revelam o Futuro do Mundo", de Tim Marshall (Desassossego). Tem uma escrita cristalina e apresenta em poucas (e sábias) páginas os contextos políticos, seus conflitos e os antecedentes destes, de regiões cruciais na cena internacional. Comecei por um trio de capítulos (Irão, Arábia Saudita, Turquia), seguirei para os dedicados à Etiópia e ao Sael, deixarei para depois os do Reino Unido e Espanha, e terminarei com a Austrália. E vou aprendendo imenso.

Esta semana deram-me o "Viagem de Inverno" de Maria Filomena Mónica (Relógio d'Água), e já quase o terminei. É uma colecção de pequenos textos de opinião e algumas crónicas, publicados na imprensa nas últimas duas décadas, todos com 2 ou 3 páginas. Arrumados por tópicos, os primeiros sobre o estado da nossa sociedade, depois como vai o país, o regime político, por aí afora. Estou a gostar muito, concorde-se ou não com as opiniões da autora, são textos cristalinos, uma espécie de tratado de Bom Senso, na abordagem a questões do nosso país. E não só...

Emprestaram-me este "A Década Prodigiosa: Crescer em Portugal nos Anos 80", de Pedro Boucherie Mendes. É uma calhamaço (650 páginas), e só o terminarei daqui a uns tempos. Mas lê-se bem, escrita escorreita. E o tema é bem adequado às leituras da gente da minha geração. Para além disso o livro está bem conseguido (ou pelo menos assim me parece, vou a 1/5 da leitura), o autor congregou bem os detalhes - e os processos - que fizeram daqueles tempos uma era tão interessante. E inovadora, em Portugal.

Vou lendo o "Se Tivesse Sido Eu a Inventar Deus" de Afonso Melo (Âncora). O autor é um belíssimo cronista, e nisso não facilita. Tornando a leitura um repasto, delicioso. Antigo jornalista desportivo, romancista, culto, cada crónica é uma navegação, cruzando marés desde as da sua intimidade, passando pelo seu enciclopédico conhecimento desportivo - em especial futebolístico - sabedoria literária, esse de evidente grande leitor, ironia, até sarcasmo, tudo vivido sob uma angústia, até heróica. E isso argamassado num diálogo constante que não se apregoa erudito. Mas é mesmo o gosto de ser, que nos dá um imenso gosto de ler - devagar.

E, mergulhando na actualidade mais premente, comecei há dias outro calhamaço, "O Fim do Homem Soviético: Um Tempo de Desencanto", de Svetlana Aleksievitch (Porto Editora), a Nobel de Literatura que neste livro faz um cru relato do que foi a Rússia soviética.

Enfim, votos de boas leituras aos que por aqui passarem...

23
Fev25

Viagem de Inverno, de Maria Filomena Mónica

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Uma amiga chega ao café do bairro e dá-me este "Viagem de Inverno" (Relógio d'Água, 2024), de Maria Filomena Mónica, acompanhado de um - até displicente - "passei ali pela Bertrand e achei que gostarias deste...". Eu angustio-me num "mais um livro!", a somar à cordilheira doméstica da minha dívida de leituras. Sei que este me chega às mãos por efeito de algumas conversas naquela mesma esplanada onde a autora também foi tema - há meses li-lhe com agrado a biografia de Eça de Queirós, entre outras coisas. Beijo a querida amiga, e generosa - e é-o muito para além da oferta do livro...

À noite avanço, devagar, no livro, pequenos textos de opinião e algumas crónicas, publicados na imprensa nas últimas duas décadas, todos com 2 ou 3 páginas. Arrumados por tópicos, os primeiros sobre o estado da nossa sociedade, depois como vai o país, o regime político, por aí afora. Sorrio, face ao pertinente cristalino do que vou lendo. Não que concorde com tudo o que ali está, claro - em especial franzo o cenho diante do apreço pela círculos eleitorais uninominais que M.F.M., demasiado britanófila, defende. Mas mesmo assim sigo agradado com a incisiva inteligência, suavemente apresentada, como se "deixada cair". Tanto que digo para a almofada - e presumo que se a autora viesse a ouvir isso decerto se abespinharia - "isto devia ser o manual daquela disciplina de Educação para a Cidadania", essa mesmo que põe uns punhados de tontos a espumar... 

Mais para a frente leio, e de novo sorrio face à inteligência alheia, clarividente de nada bombástica: "Vivo em paz com a banalidade da vida democrática. Não  preciso de utopias nem considero que exista uma crise de valores" (81-82).

E chego ainda este trecho, que desconhecia, uma pérola mesmo: "Sinto-me mais afastada da gente que, em 1789, se sentou ao lado esquerdo da Assembleia Nacional reunida em Paris do que de J. S. Mill que, em 31 de Maio de 1866, virando-se para os Tories, disse no Parlamento britânico: "Não quis dizer que os Conservadores sejam geralmente estúpidos; o que pretendi afirmar foi que as pessoas estúpidas são geralmente conservadoras". (88).

E logo me lembro destes "estúpidos", imensamente estúpidos, que por ora peroram, entusiasmados com Trump, Vance, Musk... Fecho o livro, apago a luz. E durmo. Hoje lerei o resto.

21
Fev25

A propósito de um livro

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Vi ontem que a plataforma editorial Bookmundo - na qual alojei o meu livro "Torna-Viagem" (esse que só se compra através de impressão por encomenda nesta ligação) e o qual tenho aqui divulgadoestá a fazer uma promoção até meados de Março. Na qual não cobra os custos do envio postal de encomendas de 10 ou mais livros.
 
Por isso ocorreu-me perguntar nas minhas contas nas redes sociais (Facebook, Instagram e a telefónica Whatsapp) se ainda haveria interessados em comprar o livro. Interessados mas renitentes (ou desajeitados) em "comprar na internet"... E se entre eles se juntaria a tal dezena de exemplares. E - afinal! - ainda os encontrei, aos interessados, até agora já 40. Assim farei uma encomenda dessas dezenas de exemplares e depois reenviá-los-ei. 
 
E se algum visitante deste Nenhures tiver interesse no livro poderá associar-se a esta encomenda conjunta, contactando-me por mensagem (nos comentários ou no email maschamba@gmail.com), dizendo-me a morada respectiva e combinando o pagamento da encomenda. 
 
 
 

02
Fev25

De Setúbal à Graça

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Foi um sábado cheio. Dado o gentil convite que a Lígia Águas me fizera fui à biblioteca municipal de Setúbal "apresentar" o meu "Torna-Viagem". Para isso fui acompanhado por umas dúzias de amigos, os quais destemidamente cruzaram o Tejo. Começámos por visitar a bela exposição do Miguel Navas na Casa de Cultura. Depois enchemos uma ala no Adega do Zé, para um cultural almoço.
 

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Saciados os convivas avançou-se até à sessão - enchendo a sala, e nessa reencontrando amigas que não via há trinta anos, assim emocionando-me -, na qual a Patricia Portela fez o favor de me louvar e algo provocar. Eu defendi-me como pude, tentando em atrapalhada verve reclamar o que Nerval um dia disse (ainda que depois tenha escrito coisas bem diferentes): "Como são felizes, os ingleses, por poderem escrever e ler capítulos de observação desprovidos de qualquer mistura da invenção romanesca!".
 
Depois seguiu-se uma inusitada venda de livros, um verdadeiro frenesim comercial. Pois alguns amigos haviam-me ordenado "se vais apresentar o livro tens de levar exemplares...". Assim fiz, encomendando alguns e transportando-os para o efeito. Após isso houve fragmentação da mole, alguns avançaram aos seus destinos, outros derivaram para jantarada na capital do choco. Eu e alguns outros refugiámo-nos num simpático pequeno largo entre a Luísa Todi e a Bocage, bebeu-se algo acompanhado de tremoços. Nesse entretanto um dos convivas, sorridente, disse-me "fizeste bem em pontapear a exposição sobre o colonialismo, estão a remendar aquilo" (irados resmungos que eu fiz há alguns meses) - decerto que os erros factuais, que da anacrónica sanha nunca se expurgarão. Ri-me com isso...
 
Regressei à capital, indo a jantar de sexagésimo aniversário de amiga, ocorrido no para mim desconhecido "A'Paranza", aos Anjos, um simpático restaurante mas... italiano. Era um universo mais "académico", face ao qual me recolhi, restringindo-me a fugaz investida contra a referida "anacrónica sanha decolonial", tendo obtido a rendição total sobre o assunto. Em dia festivo para mim (e não só) logo abdiquei do "sem quartel" oratório, sempre exigível nessa matéria, e retirei-me junto ao pequeno bar onde me dediquei a ensinar aos - simpaticíssimos - italianos da casa os diferentes conteúdos semânticos dos termos "saideira" e "abaladiça". Mais tarde fui recompensado com grapa(s)... Quando os comensais terminaram o longo repasto (vi passar inúmeras iguarias ... italianas) acompanhei uma amiga - que já vinha da passeata sadina - até sua casa, à Graça (um cavalheiro nunca deixa uma senhora sozinha calcorreando as noites dos bairros populares).
  
Cumprida a nobre função, ajoujado pela mochila com os remanescentes exemplares do "Torna-Viagem", esses que não havia conseguido impingir, lá pelas 2 da manhã, constatei que não tomara o pequeno-almoço e que talvez fosse conveniente acomodar-me antes de dormir. Entrei numa tasca nos baixios daquele bairro. Comi uma "sande" de presunto (apesar da tensão alta que me importuna o destino), bebericando uma imperial e olhando o grupo de felizes universitários que ali se divertiam com placidez (e com um punhado de amigas lindíssimas, não apenas jovens), nisso despertando-se-me a nostalgia, pois mesa tão similar a tantas que vivi há décadas.
 

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De súbito apareceu o Zé Maria, amigo moçambicano agora músico residente no Secret Garden LX, não poderia haver melhor conclusão para um dia de "Torna-Viagem"... Aliás, poderia, bastaria para tal que não estivessem ele e seus amigos, bem chateados - pois a eles recusava o velhote tasqueiro servir as apetitosas sandes de presunto, as quais entretanto aviava aos meus patrícios... Pois é, é que "ele" há destas coisas, a gente-nós, "brrrancos", é que nem notamos.
 
Enfim, em suma, hoje acordado fiquei a olhar para o punhado de livros que me sobraram, "raisparta, que vou fazer disto?"... Mas não seja por isso, foi mesmo um belo sábado. Obrigado aos amigos excursionistas...
 
(Para quem se possa interessar: o meu "Torna-Viagem" só se encontra no portal da plataforma editorial Bookmundo, através desta ligação: https://publishpt.bookmundo.com/books/366121 )

31
Jan25

"Zé, então e como está aquilo em Moçambique?..."

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(Venâncio Mondlane em Tete, julgo que anteontem)

"Zé / Zezé, então e como é que está aquilo em Moçambique?...", perguntam-me diariamente amigos, agora que "as coisas" de lá se afastaram um pouco dos "escaparates" da imprensa. Substituídas por questões prementes, como a do deputado ladrão de malas - repararam como o Ventura, após o seu estupor inicial, agora aparece a reclamar-se "primeiro denunciante"?; as inanerráveis malfeitorias laborais dos bloquistas - face às quais o prévio vereador Robles surge como um simpático agente prenhe de empreendedorismo; a relativa inflexão de PNS sobre imigrantes - que põe os seus camaradas a clamar contra qualquer esforço alheio de adaptação às mundividências nacionais (a "cultura portuguesa", para se falar de modo simples) e o colunista-Expresso Raposo dispara(ta)ndo um lusotropicalismo actualizado: "para semos um V Império, que é um império-cais, onde o mundo pode atracar...", sim o homem escreveu isto; mais as demissões no núcleo governamental devido a trapalhadas privadas, recentes e actuais - mas quem escolhe estes tipos?; e, acima de tudo, o drama da "linguagem de rua" do treinador Lage. Já para não falar das minudências que ocupam os espaços mortos dos telejornais e comentários, o frenesim trumpiano, aquela maçada de Gaza, e a cansativa exigência de Putin em defender o "espaço vital" da sua Mãe Rússia, para se falar como a intelectual Mortágua...

Enfim, com tudo isto a gente distraiu-se de Moçambique. Eles também já estavam a abusar da nossa paciência, é certo... Por isso as perguntas dos meus amigos, essa repetida "Zé / Zezé, então e como é que está aquilo em Moçambique?...", até porque interrompi a saraivada de postais sobre o assunto (os quais sublinho pela sua divulgação telefónica, para aborrecimento de alguns deles, presumo). Costumo responder que talvez seja melhor ouvirem o que dizem sobre o assunto os nossos antigos ministros, reciclados em facilitadores de negócios e até administradores das grandes empresas - "não lhes escrevas os nomes", "não te metas com esses gajos", "não ganhas nada com isso", avisam-me amigos, não tão juniores assim...

Então, e para responder a esses amigos que se foram interessando pelos destinos daquela minha Não-Pátria, resumo o que sei: o candidato Venâncio Mondlane regressou ao país e anunciou três meses sem manifestações  (deu os consuetudinários "100 dias de estado de graça" ao novo governo). O partido Frelimo nomeou um novo executivo, com tantos membros oriundos do anterior poder que aparenta ser de continuidade ("uma evolução na continuidade", como diria Marcello, o original). A mortandade entre os militantes oposicionistas nas localidades - incluindo jornalistas - terá amansado, mas não abundam as investigações sobre a responsabilidade dos desmandos sanguinários dos últimos meses. Ainda assim, de quando em vez a polícia usa de violência seguindo-se represálias populares, algo significativo em especial aquando no Sul de país, antiga zona monopólio de implantação frelimista.

Entretanto, a predisposição para entabular conversações com o oposicionista Mondlane, que fora enunciada pelo novo presidente, ainda não se concretizou, e segue o poder Frelimo na sua muito habitual postura esfíngica - "índica", como muitos referem, em particular os dirigentes socialistas portugueses quando em "visitas de Estado" e que agora se arrepiam ao ouvir falar de algumas características comuns às mundividências e práticas portuguesas (mais depressa se apanha um mariola do que um paraplégico, como é consabido...). Os velhos partidos oposicionistas, Renamo e MDM, que se haviam recusado a integrar o novo parlamento estão já a arranjar as micas, dossiers e as pastas de executivo para assumirem lugares.

Nisto Venâncio Mondlane, que se autoproclamara "presidente do povo", encetou uma digressão, uma ronda de "presidências abertas", por assim dizer... Recebo imagens de uma curta visita ao Hospital Central de Maputo, causando um enorme júbilo entre os ali situados. E de gigantescos banhos de multidão em Bobole - perto de Maputo - e em Tete, a Norte. Situações que muito denotam com quem está o povo, a quem o povo apoia. Por mais que custe aos "empreendedores" lusos. E a alguns outros.

Adenda: no sábado (dia 1 de Fevereiro, às 16 horas) estarei na biblioteca municipal de Setúbal, instituição que teve a gentileza de me convidar para falar sobre o meu livro "Torna-Viagem". E, quem sabe, pois dependendo do interesse dos que comparecerem, depois de tentar impingir a colecção de crónicas (2/3 das quais decorrem naquele país) poder-se-á falar um pouco sobre "como está aquilo em Moçambique". Se algum dos leitores do Delito de Opinião estiver nas cercanias será um prazer vê-lo por lá.

30
Jan25

Em Setúbal

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Depois de amanhã, sábado dia 1 de Fevereiro, irei a Setúbal. De manhã, ao meio-dia, junto a alguns amigos visitarei a exposição do Miguel Navas, na Casa de Cultura da cidade. Depois petiscarei, frugalmente, num qualquer sítio da simpática Luísa Todi, ou nas suas redondezas. E às 16 horas lá irei à biblioteca conversar sobre o meu livro "Torna-Viagem" (o tal que só se compra por encomenda aqui). Para me amparar nisso irá a Patrícia Portela, escritora mesmo, que me fará (espero) alguns elogios pejados de sarcasmo. E, finalmente, se houver tempo e energia, ali nas nas cercanias beber-se-á um chá (o "das cinco", mais ou menos), e falar-se-á do que ocorrer... Se alguém tiver paciente disponibilidade para se associar será muito bem-vindo.
 
E cumpre-me agradecer a gentil divulgação que o Xetúbalblog fez da sessão.

08
Jan25

Eça de Queirós no Panteão Nacional

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1. Eça de Queirós foi mesmo um excelente escritor - ainda gosto mesmo muito do "A Ilustre Casa de Ramires", para além de outras obras. E continua a influenciar-nos imenso: basta ver a quantidade de patetas que se deixam retratar nesta pose, com a cabeça apoiada na mão, como se lhes pesasse um algo (que assim evidenciam inexistente).
 
2. A ideia de um "Panteão Nacional" como edifício que "albergue os restos mortais dos nossos mais ilustres, que se vão da lei da morte libertando " (ler isto em tom enfático, de voz cava e pausada, qual declamador de antanho, sff) é digna de ... cendrário.
 
3. A "polémica" sobre se Eça teria aceitado ou recusado o seu depósito num panteão (republicano, de cidadãos endeusados) é interessante, pois mostra como tendemos a tornar o passado num amontoado de frutas cristalizadas. Daquilo que dele li (e não sou um queiroziano, valha-me a Razão...) a este propósito retiro uma ideia: o Eça ainda jovem invectivaria esta hipótese, com o seu típico sarcasmo rutilante; o Eça quarentão aceitaria, se lhe pagassem adiantado o contrato de utilização das ossadas próprias; e um Eça sexagenário ou septuagenário - se a isso tivesse chegado - ficaria impante se lhe aventassem a possibilidade.

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4. Folclore - republicano e mercantilista - à parte, esta barulheira é uma boa causa para se ir às estantes, a (re)ler o homem. Eu saquei este "Uma Campanha Alegre" - era para ontem à noite, mas fiquei a ver o Sporting-Porto, mais um passo para alargarmos o Panteão Leonino.
 
5. Li ontem que este ano é o bicentenário de Camilo Castelo Branco (urram os camilianos, sempre avessos aos queirozianos). O que terá sido algo esquecido pelo Estado (e pela academia) - à imagem do acontecido o ano passado com a efeméride camoniana, que tanto atrapalhou os traumatizados com o "Império". Prepare-se pois mais uma gaveta endeusadora.

05
Jan25

A minha mãe

jpt

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A minha mãe, Marília, teria feito hoje - e também ontem e anteontem - 98 anos. Nascera durante a meia-noite de 3 para 4, os pais tiveram uma decisão "neutral" e registaram-na a 5. Eram assim, sempre, três dias de celebrações. E continua um pouco assim, no entre-família da qual ficara matriarca, agora que já passam 4 anos desde a sua morte.
 
É sempre difícil falar dos pais. Mais do que tudo porque não os vasculhamos, há um "evitamento" geracional (como dizem os antropólogos). E porque tendemos ao sentimentalismo. Felizmente...
 
Nasceu em Mafra. Pois filha de militar - o meu avô foi um tenente do 28 de Maio. E sobrinha de vários, todos terminados em coronéis - dizia-se na família que isso se devia a terem sido "anglófilos" na II GM, assim descurados na ascensão ao generalato. Lembro-me de em miúdo ouvir o meu pai dizer dos almoços de família que pareciam a Grécia, então sob o "regime dos coronéis". O meu avô era o benjamim, o único que não fora à Flandres. Família transmontana, sua mãe de Gimonde, às faldas de Bragança, seu pai de Mogadouro - minha mãe ufana de ser da família, dizia, o velho posto de capitão-mor (um "régulo", viria eu a dizer...). Quando fomos conhecer Trás-os-Montes, em 2013, parámos em Mogadouro - terra que tem o encanto do castelo não ter sido reconstruído. A Carolina, nos seus 11 anos, logo trouxe uma pedra das cercanias da ruína para oferecer à sua ciosa avó...
 
Casou jovem. E partiu para a Beira, enviuvando muito cedo, já com três filhos. Regressou a Lisboa, a casa dos pais, com sua prole. O que decerto lhe foi traumático. Nesse rumo não se licenciara. Veio a estudar línguas, também em Inglaterra. Era verdadeiramente bilingue - lembro-me de em São Martinho do Porto várias vezes turistas franceses se surpreenderem, genuinamente, por ela não o ser, julgavam-na compatriota casada com português. Foi secretária. Julgo que ascendeu a secretária de Ferreira Dias, então relevante presidente da CRGE (a actual EDP), período no qual conheceu o meu pai, engenheiro da casa. Lamento um pouco - mas são coisas que não se perguntam, muito menos aos pais - nunca ter sabido qual o rumo do meu pai, o ainda jovem, e pelos vistos atrevido, engenheiro a rondar a secretária das chefias...
 
Depois, já nos anos 60s, transitou para a docência. Durante décadas no INP. Mais tarde acumulando com várias instituições de formação. Disso resultaram várias publicações técnicas, as últimas publicadas pela Universidade Aberta, ela já septuagenária. Pois continuou a trabalhar até muito tarde: lembro-me do meu pai lhe dizer, algo enfastiado, "tenho 80 anos, a partir de agora não vamos de carro para o Porto, vamos de comboio", isto nas suas idas para palestras e acções de formação.
 
A minha mãe era blasé, muito mesmo. "Mãeee...", arrastava eu, para lhe cercear o rumo. Aos 90 anos, já muito débil, foi operada em São José, para lhe tirarem a vesícula - "tem 50% de hipóteses de morrer na operação" disse-me a médica-chefe das Urgências, uma bela e ríspida coronela que depois do nosso embate inicial já me tratava como (quase)igual... Aquele serviço parecia "a guerra da Crimeia", como eu lhe disse, quando já éramos amigos. Tempos depois a minha mãe, que ali padecera um pouco, foi entrevistada por um trio médico, queriam a opinião dos pacientes sobre os cuidados recebidos. Foi o último grande show que dela assisti: o médico encarregado, já sexagenário, deliciado, os outros dois estupefactos. Pois a velhinha, na sua cadeira de rodas, louvava os serviços sob o mote "são magníficos, coitados, que mais se pode esperar desta gente?", aliás o mote era mesmo um "que mais se pode esperar deste mundo?". E ficaram os dois, diante da impaciência dos médicos júniores, quase uma hora a falar de ... Racine, Shakespeare, Stratford-upon-Avon, sei lá mais o quê... Ele, repito, encantado com a evidente excentricidade, habituado que estará à ladainha dos queixumes. "Como é que correu?", perguntaram-me depois os meus irmãos, preocupados com a saúde da mãe... "Nem acreditam!!", ria-me eu...
 
Tão blasé que nos 1970s fora sondada, anunciou, pelo seu colega no INP, Henrique Barrilaro Ruas (do qual vim a ser aluno, boa sorte a minha), para integrar uma lista eleitoral do PPM - o excelente PPM de então, entenda-se. "Não aceitei, claro. O que diria o teu pai!!", ria-se, antevendo a reacção do Camarada Pimentel, cunhalista ortodoxo... Para além dos resmungos da meia-idade gostaram-se até ao fim: "os teus pais são namorados", dizia-me a minha mulher, essa que quando nos juntámos causou junto deles a minha despromoção a genro.
 
A minha mãe cultivava a família, mas não na figura típica da mãe ou avó-cuidadora. Cultuava a memória do pai - oficial e cavalheiro do seu tempo, ao que intuí. E do seu irmão mais novo - piloto de caça, sedutor, motard, repentista de carro descapotável - morto antes de eu nascer, pois o avião - recondicionado da guerra da Coreia - lhe explodiu. E adorava o seu irmão Manuel, veterinário de animais de grande porte, uma verdadeira personalidade. Teve uma filha extraordinária. E três filhos bordejando cada um à sua maneira, em busca de um bom porto. Perdeu um cedo, o Artur morreu aos 51 anos, o que muito a abalou. E um ror de netos. Entre estes tinha um particular orgulho pelo trio que obtinha (e continua a obter) particular prestígio profisssional. Mas, benjamim que sou, sei que o afecto maior lhe caía para a neta na qual tanto se reconhecia, naquilo de criar com brio e gosto três filhos (quase)sozinha. E depois vieram os bisnetos, "coitadinhos" dizia. "Porquê?, mãe!", questionava-a, "Sei lá!", resumia, na displicência de se saber já de desuso para eles.
 
Nesse apreço pela família deixou dois livros de memórias familiares. Publicados na Escher - então a editora do Vasco Santos, que também publicava os antropólogos da minha criação: Filipe Reis, Nuno Porto, Paulo Raposo e o mestre deles, Raul Iturra. "Gosto mais dos seus livros" (sempre a tratei na terceira pessoa, e ao meu pai por "tu", e ambos me tuavam, coisas...), dizia-lhe eu, com toda a franqueza.
 
Um deles é este "Receitas da Mãe" (Escher 1991), um aparente livro de culinária. Ela não era grande cozinheira - aliás, era óbvio o seu menosprezo pelo fogão, e não só por viver assoberbada de trabalho. E mesmo a sua gulodice sénior era encenada, convivencial, nicava e ecoava isso como se fosse deriva pantagruélica.
 
Deixou-nos este livro de "Receitas da Mãe" que é um depósito de memórias havidas pelos familiares, de receitas por eles vividas, acumuladas. Para que possamos imaginar quem eram os nossos avoengos, o que comiam e como andavam, um pouco do como eram... E cada receita tem uma pequena história para a enquadrar. Como esta receita de
 
"Bacalhau da Peça
 
1918 - Comido a caminho de Miranda do Douro, na noite em que mataram o Presidente Sidónio Pais. O Pai e a Mãe iam de diligência para o Vimioso; de Vimioso até Miranda do Douro seguiam a cavalo.
 
Na muda da Malaposta, em Milhão, é que comeram o tal petisco, Bacalhau da Peça. Já era noite escura. O Pai era, nesse tempo, alferes e seguia para Miranda do Douro a tomar o comando do destacamento de fronteira - era ainda o tempo da I Guerra Mundial."
 
Faz-me falta a minha mãe, é óbvio, normal. E de com ela aprender a cultivar as memórias. (E também por isso hoje procurarei uma destas "receitas da mãe" para cozinhar).

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Livro Torna-Viagem

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