Um imigrante em Moçambique
(Em Inhambane, há já alguns anos)
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(Em Inhambane, há já alguns anos)
A semana do Império (2): um texto de 2002, a ecoar os alfarrabistas de rua em Maputo. E a notar como a viçosa "lusofonia" ecoava, "à sua maneira", o defunto "lusotropicalismo". Não, não é a mesma coisa: pois actores, locutores e objectivos são diferentes.
Ontem mesmo, arrastando em Lisboa este tempo que por cá me resta, enfrentei aquele início de alfarrábio, ali postado entre o café Luanda e o café Polana, a avenida assim a agigantar-se em mapa cor-de-rosa. E descobri esta jóia, os poemas de Jorge Ferreira em “Saudade Macua”, um pequeno livro de 1969 e que então ganhou o Prémio Camilo Pessanha, atribuído pela Agência Geral do Ultramar e acredito que muito merecidamente.
Sou mero leitor, nada especialista em literatura, serão as minhas opiniões sobre os méritos deste livro apenas senso comum. Mas não posso deixar de realçar a obra, talvez até retirá-la do esquecimento, desmerecido, tão percursora ela é das sensibilidades e noções de hoje, a abrangente lusofonia. Pois nela se corporiza (antevê?) este sentimento lusófono que vem unindo portugueses e seus irmãos de outros continentes, não só a história que nos une, como ainda a comunhão que a habita nos correres dos tempos. Veja-se como Ferreira antecipa estas décadas do hoje em dia, Estados talvez apartados pelos ventos da política, povos unidos pela língua e pelo sentir, por tantos interesses comuns. Repito, a revisitar, este hoje esquecido poeta:
"O Branco da Terras"
Oliverra é o branco da terras’
Oliverra é nossa pai
gente conhece
gente entende
a nosso amigos’Oliverra
machamba de s’Oliverra
é sempre bom
chi..s’Oliverra
branco tem feitiço!
S’Óliverra usa chapéu
sol é muito quentee
s’Oliverra tem careca.”
Ah, tanta harmonia nesses dias, tanta harmonia para hoje.
(Jorge Ferreira, Saudade Macua, Agência Geral do Ultramar, 11)
(Metangula)
"On disputa um peu sur la multiplicité des langues, et on convint que, sans l'aventure de la tour de Babel, toute la terre aurait parlé le français (...) car [on] supposait qu'un homme qui n'était pas né en France n'avait pas le sens commun"
(Voltaire, L´Ingénu, 1767)
Noite! Finda a semana de chuvadas junto a exaustão do burguês envelhecido, que já se desconforta no mato, ao vazio que me esperaria nas ruas lamacentas da vila. Rôo a galinha do jantar e logo me afundo diante da RTP-África, ali deixada como respeitosa simpatia para comigo. A ela não me nego, pois aos outros sempre parece estranho aquele que recusa um pouco da sua longínqua terra, como se a ela devesse algo e não quisesse que lho recordassem.
Assim acomodado deparo com o inesperado símbolo do Instituto Camões, patrocinando um qualquer programa que aí vem. Apenas alguns segundos, mas anormalmente longos em TV. E quão estranha é a nossa mente, aqui junto ao Malawi e à vista dum antigo patrão de imediato se me associam ideias, mais rápidas do que o dizê-las. Sinto como o mundo muda, como se me mudou, eis-me agora, ainda que por alguma preguiça arredia ao “banho macua”, sujo, enlameado e, para mais, pouco abonado. Também um bocado liberto, é certo, mas não entrei em valorações. Apenas sensações.
Ao mesmo tempo a surpresa do inédito leva-me a um abrupto e mudo resmungo, um “que raio é isto? Só podem ser coisas da lusofonia …!”, logo confirmado nas imagens. Já estou a sorrir quando surge, como não podia deixar de ser, algo chamado “Contos Tradicionais da Lusofonia”, e hoje nem de propósito é um “Conto Tradicional Tsonga”. Iberos de Gaza, presumo eu!
E bem acondicionado se apresenta o dito, ali adaptado por um “poeta laureado”, antigo nome daqueles que depois, e até há pouco, se tornaram em desejados “intelectuais orgânicos”. Títulos aos quais, no entanto, continuo a preferir o de “escravo grego”, o cujo sempre me aparece com a cara do James Mason, sem que eu perceba bem porquê! Ainda para mais porque é imagem nada condizente com a figura incomodada e algo desalinhada que conheci em tempos a este ilustre autor e adaptador. Mas como criticá-lo, eu que já andei a organizar festivais da Francofonia? Puta fina ele, de esquina serei eu próprio.
Adianto-me e venho cá para fora fumar, a noite não será estrelada mas pelo menos não chove, e fico-me a matutar neste lusófono absurdo. Que é um absurdo desejado, procurado, planificado. Não será ele tão evidente que baste narrá-lo para afirmá-lo? Ou será assim tão subtil que outros não o vejam como tal? Enquanto se me acaba o cigarro ocorrem-me fragmentos passados de lusofonia, que deixo correr sem requebros de formas, para não contrapôr a essa hipotética subtileza uma qualquer outra.
Há uns anos foram publicados em Portugal os resultados do censo moçambicano. Logo me telefonou para Maputo uma angustiada jornalista inquirindo a minha opinião sobre o facto de apenas, e sublinhava o apenas, 6% das pessoas afirmarem o português como língua primeira. Fui-lhe dizendo que tal me custava a acreditar, palavras que a sossegaram lá no outro bocal, breve calmaria antecâmara do espanto quando fui continuando, que talvez fossem exagerados os números, porventura alguns teriam reclamado o português como natal sem o terem, como um bem de prestígio social. Timbre alterado, tendendo então para o agudo, murmurou, aflita, a radiofónica voz “Então em que língua falam as pessoas? Em inglês?”. Ah, uma menina que nem nos antigos gregos, ouvindo de soslaio o brabrabra dos bárbaros vizinhos. Adiante.
Passado um ano, o já referido Camões editou uma revista dedicada à cultura moçambicana, a qual aqui foi lançada com grande pompa, no seio de grande iniciativa e de inúmeras personalidades autorais, uma imperial embaixada de lusófonos inteligentes. Para nela ser incluída encomendou uma entrevista alusiva ao então Ministro da Cultura local, o qual logo aproveitou para reafirmar, com veemência de ministro, a bantofonia do seu país e da(s) cultura(s) que o gera(m) e vive(m). A afirmação, em si mesmo óbvia – analisemos depois em que consiste a bantofonia, s.f.f. – assumiu, no entanto, estatuto de indizível em lusas terras. Decerto que devido a esse atrevimento, e apesar da sacrossanta democracia, volatizou-se a citada entrevista. Censura? No nosso Estado?Adiante.
Passou-se mais um ano. Como manda a tradição, uma Universidade moçambicana organizou na abertura do seu ano lectivo uma Oração de Sapiência, da qual se encarregou um eminente catedrático brasileiro. Este, aproveitando a sala repleta, lançou-se numa violenta catilinária contra o capitalismo globalo-americano e seu economicista fascismo social, e, satisfeito, terminou sublinhando o seu enorme reconforto pela esperança na resistência moçambicana. Dela estava já seguro pois nessas 24 horas de estadia tinha encontrado em Maputo uma “vigorosa latinidade”. Ninguém se riu. Adiante.
Mais um ano a correr e eis que me estreei no noroeste do país, este Niassa sempre visto como longínquo, desértico e quase inacessível, coisas da mitologia nacional. Recebido com uma hospitalidade notável, não demorei a cruzar o enorme planalto, um mato verdejante polvilhado de montanhas encimadas por cofiós brumosos, quilómetros de arvoredo e machambas, o verde castanho destas a entranhar-se no azul ameaçador de um céu carregado, um deslumbre único, um mundo a reclamar poetas que o digam. Súbito entra-se na terra batida, em contínua descida, cada vez mais curvilínea e deserta. Breves horas passadas, num cotovelo apertado, íngreme e pedregoso, todo eu estanco à primeira visão do Lago, e ali camuflado por estas montanhas um todo de água a perder de vista, abandonado numa calmaria como se fosse eterna. Ficamos parados, não sou o primeiro que o anfitrião, orgulhoso do belo no seu país, desvirginda de Lago, ele sabe bem o efeito! Depois, bem depois, reparo que lá em baixo há praia, e uma enseada, surpreendida ao fim de todo este caminho, desenhada por uma ligeira península que é vila: Metangula…
Arrancamos com vagares, e para sair do espanto pergunto o que já sei, “ali havia uma base da marinha portuguesa, não é?”, a guerra no paraíso. À óbvia confirmação adianta o meu companheiro que “diz-se por aí que vão instalar lá o centro de treinos dos fuzileiros dos PALOP!”. E eu, mau-feitio, logo a contestar “Nada!, aqui?, não acredito, neste ermo?”, mas ele resiste-me “Não sei, mas olha que se tem falado bastante, deve haver ideias para isso”. Entreolhando-o, ele de cara plácida mas agora algo distante, procuro rematar “Hum, devem ser alguns saudosistas portugueses…”. Com isto estamos já na contracurva e aí, sem qualquer pré-aviso, abandonamo-nos numa enorme gargalhada. A minha, entrecortada, demorou até à vila, e eis que regressa hoje, solitária, debaixo deste céu. Adiantar mais? Ou consigo fazer-me entender?
Mandimba, 2002
Nos tempos do blog ma-schamba fiz inúmeros postais sobre a questão “lusofonia“. A qual era - e ainda é - uma irritação minha, até porque então muito esteve na moda. E que ainda anda por aí, se calhar ainda com algum viço, apesar de já vetusta. Enfim, tanto botei que um dia me fizeram uma entrevista académica sobre o assunto, a qual me chegou sob o tema de "bloguismo e lusofonia".
Dei eco disso no postal "Olhar Academicus sobre o bloguismo", de 6.2.2011 (há quase uma década, até dói como se dissipa o tempo). Releio-o e rio-me: pois nele falei não só de bloguismo e de lusofonia, como também de como a análise dos fenómenos tanto fenece sob o "primadonismo" dos intelectuais. Passada uma década só digo, nem de propósito eu poderia ter imaginado melhor articulação argumentativa. Mas adiante ...
Na entrevista falei sobre o bloguismo moçambicano, que no país foi muito inovador quanto às expressões públicas: novos conteúdos, novas formas de escrita e novas e mais abrangentes legitimidades para opinar. Julgo que mais do que nos jornais por fax (que foram uma inovação moçambicana) e internéticos, foi nos blogs que aconteceu, desde 2005, a mais radical democratização da expressão opinativa urbana. Muito pela influência - magistral, no sentido literal - do tão saudoso Machado da Graça, através do seu Ideias Para Debate. No qual publicava textos que lhe eram enviados por mais-novos, tantos dos quais depois vieram a blogar autonomamente e, ainda depois, a estabelecerem-se em jornais e no facebook.
Mas no dia o tema central era a tal lusofonia. E sobre o que dela disse disse resumi-o no postal deste modo: "perguntou-me ainda (o guião, presumo, é minhoto) sobre o que pensava eu da minha actividade bloguista como construtora da lusofonia. Engasguei-me claro. Já aqui muito escrevi sobre a lusofonia e não me apetecia repetir, ainda que em versão digest. Pedi um off the record ao Ouri Pota [o entrevistador, também ele bloguista], no intuito de não vir a desagradar à Universidade do Minho, decerto ilustrada e educada, e disse-lhe da minha opinião: "a lusofonia, como conceito, é boa para limpar o cu". Passados uns dias arrependi-me e escrevi-lhe pedindo um in the record. Que os responsáveis da análise possam, se o Ouri Pota entender transcrever essa parte no seu relatório, levar com a minha opinião."
Passada a tal década julgo que não terá sido feito o tal in-the-record. O que deixará espaço para ofensas das primadonas quando se mete em letra "académica", em jargão, aquilo que se pensa sobre o que pensam. E estrategizam. A bem do subsídio estatal. Que é disso que se trata, da ânsia de taco oriundo do Estado lusotropical. Perdão, do lusófono. Em peditório, feito em dialecto alterglobal. Ou língua global. Que nisso vão todos iguais.
Entretanto eu botei-a, a essa tal "letra académica", sob jargão. Em texto de formato longo. Quem tiver paciência e interesse encontra-o aqui: “O Olhar Português em África (ensaio sobre a lusofonia)“.
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