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Nenhures

Nenhures

05
Jan25

A minha mãe

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A minha mãe, Marília, teria feito hoje - e também ontem e anteontem - 98 anos. Nascera durante a meia-noite de 3 para 4, os pais tiveram uma decisão "neutral" e registaram-na a 5. Eram assim, sempre, três dias de celebrações. E continua um pouco assim, no entre-família da qual ficara matriarca, agora que já passam 4 anos desde a sua morte.
 
É sempre difícil falar dos pais. Mais do que tudo porque não os vasculhamos, há um "evitamento" geracional (como dizem os antropólogos). E porque tendemos ao sentimentalismo. Felizmente...
 
Nasceu em Mafra. Pois filha de militar - o meu avô foi um tenente do 28 de Maio. E sobrinha de vários, todos terminados em coronéis - dizia-se na família que isso se devia a terem sido "anglófilos" na II GM, assim descurados na ascensão ao generalato. Lembro-me de em miúdo ouvir o meu pai dizer dos almoços de família que pareciam a Grécia, então sob o "regime dos coronéis". O meu avô era o benjamim, o único que não fora à Flandres. Família transmontana, sua mãe de Gimonde, às faldas de Bragança, seu pai de Mogadouro - minha mãe ufana de ser da família, dizia, o velho posto de capitão-mor (um "régulo", viria eu a dizer...). Quando fomos conhecer Trás-os-Montes, em 2013, parámos em Mogadouro - terra que tem o encanto do castelo não ter sido reconstruído. A Carolina, nos seus 11 anos, logo trouxe uma pedra das cercanias da ruína para oferecer à sua ciosa avó...
 
Casou jovem. E partiu para a Beira, enviuvando muito cedo, já com três filhos. Regressou a Lisboa, a casa dos pais, com sua prole. O que decerto lhe foi traumático. Nesse rumo não se licenciara. Veio a estudar línguas, também em Inglaterra. Era verdadeiramente bilingue - lembro-me de em São Martinho do Porto várias vezes turistas franceses se surpreenderem, genuinamente, por ela não o ser, julgavam-na compatriota casada com português. Foi secretária. Julgo que ascendeu a secretária de Ferreira Dias, então relevante presidente da CRGE (a actual EDP), período no qual conheceu o meu pai, engenheiro da casa. Lamento um pouco - mas são coisas que não se perguntam, muito menos aos pais - nunca ter sabido qual o rumo do meu pai, o ainda jovem, e pelos vistos atrevido, engenheiro a rondar a secretária das chefias...
 
Depois, já nos anos 60s, transitou para a docência. Durante décadas no INP. Mais tarde acumulando com várias instituições de formação. Disso resultaram várias publicações técnicas, as últimas publicadas pela Universidade Aberta, ela já septuagenária. Pois continuou a trabalhar até muito tarde: lembro-me do meu pai lhe dizer, algo enfastiado, "tenho 80 anos, a partir de agora não vamos de carro para o Porto, vamos de comboio", isto nas suas idas para palestras e acções de formação.
 
A minha mãe era blasé, muito mesmo. "Mãeee...", arrastava eu, para lhe cercear o rumo. Aos 90 anos, já muito débil, foi operada em São José, para lhe tirarem a vesícula - "tem 50% de hipóteses de morrer na operação" disse-me a médica-chefe das Urgências, uma bela e ríspida coronela que depois do nosso embate inicial já me tratava como (quase)igual... Aquele serviço parecia "a guerra da Crimeia", como eu lhe disse, quando já éramos amigos. Tempos depois a minha mãe, que ali padecera um pouco, foi entrevistada por um trio médico, queriam a opinião dos pacientes sobre os cuidados recebidos. Foi o último grande show que dela assisti: o médico encarregado, já sexagenário, deliciado, os outros dois estupefactos. Pois a velhinha, na sua cadeira de rodas, louvava os serviços sob o mote "são magníficos, coitados, que mais se pode esperar desta gente?", aliás o mote era mesmo um "que mais se pode esperar deste mundo?". E ficaram os dois, diante da impaciência dos médicos júniores, quase uma hora a falar de ... Racine, Shakespeare, Stratford-upon-Avon, sei lá mais o quê... Ele, repito, encantado com a evidente excentricidade, habituado que estará à ladainha dos queixumes. "Como é que correu?", perguntaram-me depois os meus irmãos, preocupados com a saúde da mãe... "Nem acreditam!!", ria-me eu...
 
Tão blasé que nos 1970s fora sondada, anunciou, pelo seu colega no INP, Henrique Barrilaro Ruas (do qual vim a ser aluno, boa sorte a minha), para integrar uma lista eleitoral do PPM - o excelente PPM de então, entenda-se. "Não aceitei, claro. O que diria o teu pai!!", ria-se, antevendo a reacção do Camarada Pimentel, cunhalista ortodoxo... Para além dos resmungos da meia-idade gostaram-se até ao fim: "os teus pais são namorados", dizia-me a minha mulher, essa que quando nos juntámos causou junto deles a minha despromoção a genro.
 
A minha mãe cultivava a família, mas não na figura típica da mãe ou avó-cuidadora. Cultuava a memória do pai - oficial e cavalheiro do seu tempo, ao que intuí. E do seu irmão mais novo - piloto de caça, sedutor, motard, repentista de carro descapotável - morto antes de eu nascer, pois o avião - recondicionado da guerra da Coreia - lhe explodiu. E adorava o seu irmão Manuel, veterinário de animais de grande porte, uma verdadeira personalidade. Teve uma filha extraordinária. E três filhos bordejando cada um à sua maneira, em busca de um bom porto. Perdeu um cedo, o Artur morreu aos 51 anos, o que muito a abalou. E um ror de netos. Entre estes tinha um particular orgulho pelo trio que obtinha (e continua a obter) particular prestígio profisssional. Mas, benjamim que sou, sei que o afecto maior lhe caía para a neta na qual tanto se reconhecia, naquilo de criar com brio e gosto três filhos (quase)sozinha. E depois vieram os bisnetos, "coitadinhos" dizia. "Porquê?, mãe!", questionava-a, "Sei lá!", resumia, na displicência de se saber já de desuso para eles.
 
Nesse apreço pela família deixou dois livros de memórias familiares. Publicados na Escher - então a editora do Vasco Santos, que também publicava os antropólogos da minha criação: Filipe Reis, Nuno Porto, Paulo Raposo e o mestre deles, Raul Iturra. "Gosto mais dos seus livros" (sempre a tratei na terceira pessoa, e ao meu pai por "tu", e ambos me tuavam, coisas...), dizia-lhe eu, com toda a franqueza.
 
Um deles é este "Receitas da Mãe" (Escher 1991), um aparente livro de culinária. Ela não era grande cozinheira - aliás, era óbvio o seu menosprezo pelo fogão, e não só por viver assoberbada de trabalho. E mesmo a sua gulodice sénior era encenada, convivencial, nicava e ecoava isso como se fosse deriva pantagruélica.
 
Deixou-nos este livro de "Receitas da Mãe" que é um depósito de memórias havidas pelos familiares, de receitas por eles vividas, acumuladas. Para que possamos imaginar quem eram os nossos avoengos, o que comiam e como andavam, um pouco do como eram... E cada receita tem uma pequena história para a enquadrar. Como esta receita de
 
"Bacalhau da Peça
 
1918 - Comido a caminho de Miranda do Douro, na noite em que mataram o Presidente Sidónio Pais. O Pai e a Mãe iam de diligência para o Vimioso; de Vimioso até Miranda do Douro seguiam a cavalo.
 
Na muda da Malaposta, em Milhão, é que comeram o tal petisco, Bacalhau da Peça. Já era noite escura. O Pai era, nesse tempo, alferes e seguia para Miranda do Douro a tomar o comando do destacamento de fronteira - era ainda o tempo da I Guerra Mundial."
 
Faz-me falta a minha mãe, é óbvio, normal. E de com ela aprender a cultivar as memórias. (E também por isso hoje procurarei uma destas "receitas da mãe" para cozinhar).

19
Dez24

Síria, via Paulo Dentinho

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Sair da Estrada de Paulo Dentinho - Livro - WOOK

É Natal, alguns compram livros para ofertar. E é também época para se ir até às estantes em busca de livros que ainda não tenham sido lidos (talvez até ofertas recebidas...). Ou para reler um ou outro, por completo ou excertos que venham à cabeça, por uma razão ou outra. Aconteceu-me agora com este "Sair da Estrada" do Paulo Dentinho - livro sobre o qual deixei um postal quando o li.

Certo, sou amigo do Paulo, vamo-nos vendo de quando em vez, normalmente refeições partilhadas em pequenos comités, dados ao escárnio e maldizer, nisso de remoermos "a questão que tenho comigo mesmo", este Portugal nossa pátria amada... E também - mais ritualmente - aos natais de cada ano, quando se junta um grupo mais alargado (e heterogéneo) de amigos e conhecidos com os quais nos cruzámos (ou não) em Moçambique, portugueses que lá vivemos e nos quais o país se entranhou, a cada um à sua maneira.

E foi lá que nos fizemos amigos - e um dos tijolos disso foi uma situação peculiar: eu já passei por algumas agruras, no meu "Sair da Estrada", que também o fui tendo. Mas nunca me acontecera, nem voltou a acontecer, estar sentado com um amigo (ele-mesmo, pois claro - então correspondente da RTP em Maputo) e virem-no ameaçar de morte: "Dentinho, aqueles ali estão a dizer que te vão matar!", os molwenes (miúdos de rua) mandados para dizer isso, e nós a levantarmo-nos da mesa para ir ver quem eram os esbirros no tal carro apontado... Isto foi uns meses antes de Carlos Cardoso ter sido assassinado, dois anos depois de Lima Félix ter sido morto, não era brincadeira. "Vai-te embora, Paulo, tens cá as filhas...", resmungava-se-lhe diante da sucessão de ameaças que recebia (aquilo dos telefonemas noite afora), e ele empertigado na sua missão de informar, renitente em sair dali: (e o problema é o Venâncio, clamam agora, um quarto de século depois e sempre para pior, os escritores alapados às benesses do partido-Estado e os visitantes de "esquerda", sorrio, cáustico...).

Enfim, divago... Lembrei-me do Paulo e do seu livro quando ouvi Morais Sarmento lamentar a inexistência de reportagens da RTP sobre Moçambique, apesar de lá haver uma delegação. Sabendo do que fala, o ex-ministro referiu que ou o correspondente não produz ou - e é o mais provável - as suas peças não são incluídas nos telejornais, por critérios da direcção de informação lisboeta. E lembrei-me das discussões tidas com o Dentinho, naqueles finais de XX. Em Moçambique havia apenas duas estações, a pública TVM e a RTP-África, então inicial. Lisboa estava muito ufana por ter a estação, pensava-a como se cobrindo o território nacional: pouco interessava que um antropólogo andasse pelo país e dissesse que não era captada nas capitais de distrito nem ... em várias capitais provinciais. Mas em Maputo - no "cimento" - era vista. E as reportagens do Dentinho tinham ali impacto. E provocavam resmungos locais, dado o tom espectacular que tinham. Lembro-me de com ele protestar devido a isso, pois causavam algum mal-estar entre os nossos "anfitriões": um caso célebre foi uma reportagem dele sobre o antigo zoológico da Beira, cujas abandonadas jaulas tinham sido ocupadas pela população, que nelas residia. E em Maputo a burguesia nacional contestava essa "imagem" passada no telejornal, eu (e outros compatriotas) secundávamos num "para quê?, Paulo, o fundamental é construir uma boa relação!", cheios de pruridos diplomáticos. E ele a resmungar, defendendo-se - e tinha toda a razão!, uma razão deontológica, jornalística, um zoo habitado por homens é exemplar motivo de reportagem, denotativo, demonstrativo.... -, nisso também referindo que se não forçasse "a nota", a espectacularidade, em Lisboa, na RTP, nada lhe transmitiriam, desinteressados que estavam de Moçambique. E isto foi há um quarto de século, bem antes do extremo frenesim da notícia "lite" que tanto agora predomina.

Enfim, entre o lembrar-me disto do Paulo e o ir buscar o livro foi um ápice. O seu "Sair da Estrada" é uma espécie de making of - bem humorado, numa escrita que realça o seu amor pela profissão, e sem "engajamentos" apatetados - de grandes reportagens em 13 países (insisto, escrevi este texto qual recensão). E tem um capítulo (entre as páginas 105-145) imensamente actual, pois sobre as suas andanças na Síria (2012, 2016), durante as quais (também) entrevistou Bashar al-Assad. São páginas que não só elucidam um pouco do que agora vai acontecendo como comprovam o seu olhar arguto sobre as realidades nas quais trabalha: "Vou agora (2012) para a (...Síria) no pressuposto, quanto a mim errado, de estarmos perante o colapso do regime..." (105), "Chadi fala-nos do radicalismo sunita crescente e dessa quase impossibilidade de continuarem a viver lado a lado com eles, como fizeram durante séculos" (110), "os seus receios quanto à agenda rebelde, "eles não são sírios, vêm todos dos países em volta" (118), "na Síria, para os combatentes que se reclamam do Islão Sunita, a corrente maioritária no país, ter na presidência Bashar al-Assad é uma blasfémia. Não só por ele ser alauíta, um ramo do xiismo, corrente religiosa pela qual têm um enorme desprezo, mas também por ele representar um regime laico e igualitário. Repressivo e brutal também." (120),  "o liberalismo de Bashar assenta no modelo chinês. Nem pensar em pôr em causa o partido. E o capitalismo sírio é apenas para alguns "amigos"..." (140). 

Enfim, uma pequena amostra de como o Paulo "apanhou" a Síria. Tal como "apanhou" (até ao osso) Moçambique. E tantos outros locais. 

Ou seja, é Natal. Compre-se, oferte-se, leia-se o "Sair da Estrada". (Caminho, 2021)

(Obrigado à SAPO pelo destaque dado a este postal)

13
Dez24

Morreu Noel Langa

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Acabo de saber que morreu agora, aos 86 anos, o meu bom amigo Noel Langa - aqui ao centro, entre Estevão Mucavele e Malangatana, numa fotografia já com um quarto de século.
 
Um pouco antes dessa época o Noel animara a sua casa, transformando-a em verdadeiro centro cultural. A minha primeira saída nocturna em Maputo, no início de 1995, foi quando me levaram até lá para ouvir jazz. Eu não fazia a mínima ideia de quem era o proprietário, o tão afável homem atrás do balcão. Nem em que zona estava: a Munhuana - o velho "Bairro Indígena", como o Noel ainda dizia, e do qual era símbolo, vim a sabê-lo anos depois, quando regressei à cidade e o conheci. Ficando então a saber que o Noel era também também dono de uma pintura extravasando uma espécie própria de candura - que nada é sinónimo de "naiveté".
 

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Deu-me a sua amizade, que agradeci reconhecido. Várias vezes visitei a sua casa - como aquando desta fotografia -, mantida como local de animação cultural, porta aberta aos jovens, mas já desactivada a parte noctívaga. Normalmente indo com Ídasse, nosso grande amigo comum. Às vezes levando grupos de visitantes, ali a encantarem-se. Outras vezes só nós mesmos, para a conversa...
 
A última vez que fui a Moçambique coincidiu com o seu 79 aniversário. Lá me agreguei ao convívio na Munhuana - um belo almoço, chiguinha, cacana e o seu celebrado "Bacalhau à Gomes de Cá", símbolo do seu repousado, de ternurento, e dulcíssimo humor.
 
O Noel viveu em paz. Que melhor se pode dizer de alguém?
 
Adenda
 

Uma entrevista concedida pelo Noel Langa ao Jorge Dias:

(Palavra do Artista - Noel Langa)

24
Nov24

O Affaire Coimbra (5): o processo colocado por Boaventura Sousa Santos

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Ao longo dos anos em blog de vez em quando abordei Boaventura Sousa Santos (em particular no velho ma-schamba). E quando, recentemente, surgiram as denúncias do seu continuado assédio sexual e moral escrevi alguns postais sobre isso - intitulei-os "Affaire Coimbra" (1, 2, 4) mas não os resumirei agora. 
 
Conheci-o em Maputo em 1997. Logo o percebi como um tipo indecente. Também com as mulheres, mas sem poder afirmar ou mesmo imaginar coisas desta gravidade. Mas era-me evidente, então nos meus 30 anos, a cagança fálica do sexagenário diante das mulheres que o seguiam.
 
Lembro-me de ter sido convidado (devido às funções laborais que tinha), um ano depois, para jantar em casa de um casal amigo, por ocasião de uma sua visita. Estavam 4 casais à mesa, junto a ele e à sua (implícita evidência) namorada. E a forma boçal como ele se lhe dirigia. Pouco me interessa como os casais se tratam entre si - quantas vezes isso é refracção, até inconsciente, da sua intimidade sexual - mas aquele autoritarismo era ofensivo para os convivas. "Caramba, à mesa está a minha mulher, que é uma Senhora, e tem de assistir a esta cena?!", pensei. E entre nós, logo no carro de regresso a casa, comentámos a miserável situação.
 
Sousa Santos coordenou um projecto de investigação em Moçambique, para isso congregando o escol nacional das ciências sociais. Ao longo de anos visitou o país, e as histórias da sua irascibilidade eram recorrentes. Eu sofrera-a, com completo despropósito, "ossos do ofício" sossegou-me o embaixador meu chefe, que era um verdadeiro Senhor.
 
O velho coimbrão disparatava com tudo e (quase) todos - talvez não fiasse fino, sempre o pensei, com uma sua colaboradora que me pareceu muito estruturada, rija, tanto que décadas depois veio a ascender a biombo do famigerado Silva Pereira. Mas o resto da corte ida de Coimbra tremia, como capim.
 
O pessoal local também sofria as iras do lente coimbrão. Um dia, tive de chamar à razão um amigo, que estava imensamente indisposto devido a (mais) uma birra boaventuriana: "ouve lá", disse-lhe, "tu não estás a ver bem! Ele lá na terra dele é apenas um professor, a merda de um mero professor. Tu aqui, na tua terra, és um órgão de soberania. Põe-no em sentido! Ou julga ele que veio à "colónia"?". E o meu amigo assim o fez!!!
 
Enfim, as histórias sobre o "Boaventura" são imensas. Muito para além da vacuidade demagógica daquela tralha toda - já o escrevi em tempos: deram-me o calhamaço "Crítica da Razão Indolente", li a introdução. Aquilo é uma patacoada, de ágil retórica mas apenas isso. Escrevi emails a um punhado de colegas em Portugal, num "já leram isto? não há um antropólogo que desmonte isto?", recebendo um timorato "não te metas com o Boaventura" vindo de um sénior da disciplina.
 
A pompa "teórica" e demagogia "libertária" dos "movimentos sociais" não é agora o fundamental. Mas é evidente que essa propaganda de um "messias teórico" de movimentos políticos lhe alimentou a ideia de "império" pessoal. Pois quantas vezes me contaram a história, que talvez seja apócrifa - mas se non è vero, è ben trovato - de ser ele recebido num qualquer encontro no pobre Brasil com "investigadoras" "activistas" em êxtase, cada uma com uma letra na t-shirt, alinhando-se depois para formarem o "Boaventura". Pois o poder é erótico e a revolução libidinosa. E BSS talvez tenha aprendido isso, já quarentão, nas suas visitas solidárias à democrática e revolucionária Albânia do Enver Hoxha.
 
Enfim, tudo isto, o "Boaventura" e o seu séquito de "activistas", seria ridículo se não fosse tétrico. Há agora um punhado de mulheres que fizeram queixa dele, do seu assédio sexual e do seu assédio moral. Serão um pequeno núcleo daqueles que ele martirizou durante anos. E daqueles que ele recompensou, já agora - entenda-se, nenhum de tantos aparecerá a dizer "pois eu ganhei este emprego/trabalho porque lhe fiz isto e aquilo".
 
Às queixas o velho coimbrão resmungou umas inanidades, dizendo-se ofendido. E agora colocou um processo a 4 das queixosas: pois às residentes em Portugal exige-lhes o silêncio e a "desculpabilização", o desdizerem-se. De uma delas, a Sara Araújo, sou amigo, distante. A última vez que a vi foi há já um bom par de anos. E conto como, pois tão denotativa foi a cena... Fui a Coimbra para o seu doutoramento, em cujo júri pontificava BSS. A sessão foi na patética de anacrónica Sala dos Capelos - a qual tanto diz sobre aquela universidade, e concomitantes práticas, de docentes e... de discentes. Depois ela ofereceu um lanche num bar óptimo na cidade que estava em voga (não recordo o nome, que era qualquer coisa industrial). Estávamos ali, em alegre convívio, família, amigos e colegas quando apareceu ele, impante de chapéu. Lembro-me de ter pensado "que pavão, não sabe que numa sala se descobre a cabeça?". Tudo demonstrando a arrogância malcriada e egocêntrica do lente.
 
À Sara Araújo conheci-a para aí há vinte anos, quando jovem investigadora chegou a Maputo, na companhia de uma outra colega e amiga. Logo a percebi imensamente empenhada, inteligente, jovial. Uma miúda giríssima (vá lá, não me acusem de mansplaining...). E completamente embrenhada nas teorias boaventurianas. Sobre as quais se veio a doutorar. Com competência e brilho - o seu "oponente" foi o António Manuel Hespanha, grande intelectual, grande académico e homem decente.
 
Há poucos meses li o seu nome no rol de queixosas. Fiquei estupefacto. "Até com esta menina ele se meteu?" ("menina", sim, eu ainda tenho a imagem dela quando recém-chegada a Maputo). Destratou uma mulher que o reverenciava? Claro que exclamei o óbvio: "filhodamãe".
 
Nesta reportagem com dois episódios do canal Now (sábado 16.11. 22.30 h.) (sábado, 23.11., 22.30 h.), a Sara dá a cara, tal como outras queixosas. Conta o acontecido, o sofrido. Com coragem! "É de Homem!" dizia-se antes. "É de Mulher!!!". O que estas mulheres contam é verdadeiro. O pior nem será, digo eu, o afago mariola. Será mesmo a devastação das expectativas pessoais e profissionais, o amesquinhar do quotidiano, a angústia sobre o futuro. E, até mais, o rombo na personalidade.
 
Boaventura Sousa Santos não é o único, nem de perto nem de longe, a usar posições de poder, económico, estatutário ou intelectual, para cometer assédio sexual ou, talvez ainda mais comum, assédio moral/laboral. Mas será o mais escandaloso, pois isto é completamente ao invés de tudo o que andou a perorar durantes décadas, diante de tanto silêncio e de tamanha anuência encomiástica.
 
E o velho, nos seus 84 anos, não tem ninguém à sua volta - família, fiéis - que lhe diga "Acabou! Vai para casa, deixa de importunar os outros. As outras!". Provavelmente porque está como merece. Só! Espero que o juiz lhe diga isso.
 
(Publicado originalmente em 18.11.2024. Actualizado hoje, para incluir ligação ao segundo episódio da reportagem).

22
Out24

As ofertas

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Como é viver velho, só (e pobre)?, é o que (não) me perguntam os amigos... E sacio-lhes a curiosidade, explicitando o processo nesta "vinheta etnográfica" (expressão ademane, querida aos antropólogos mais académicos).
 
Viver assim é seguir amparado pela solidariedade benfazeja da "comunidade", esta sempre harmoniosa. E venho sendo cumulado com oferendas, mimosos actos a quererem desalquebrar-me, aliviando-me o calvário até à Mitra. Tantas são elas que cada vez mais venho ouvindo repetidos resmungos de circunvizinhos, queixas de "o Zezé está a sempre a receber prendas, a mim ninguém me dá nada...", coisa da inveja dos abonados, esses gente sempre ávida.
 
Nunca me nego a aceitar, e faço-o com júbilo, pois tendo lido o velho Marcel Mauss sei da obrigação moral em entrar no constante ciclo de dádivas e contra-dádivas (oferecer/receber/tornar a dar/ doar aos deuses). E assim não só acolho como sempre retribuo as ofertas recebidas. Em verve.
 
Hoje é dia desses, como o comprova a mesa do meu matabicho. Um delicioso feijão com óleo de palma - trazido por casal amigo, "o próximo será com feijão manteiga, como deve ser", anunciou a sua bela obreira, dotada de ascendentes saberes e sabores angolanos. Com travo suficiente para desnecessitar do recém-chegado achar de manga, sempre glorioso, transportado de Inhambane por querida (e também bela) amiga, e que veio à mesa estrear-se. Repasto acompanhado pelos livros recebidos ontem, o recente "Nas Terras do Lago Niassa", a excelente (e bem escrita, caramba) tese do camarada Elisio Jossias. E os 4 velhos volumes de Georges Dumézil, o primeiro da trilogia "Mythe et Épopée" que não tinha - "mãe, não precisas de comprar os livros, eu fotocopio-os" disse-lhe eu na Bucholz, com os outros dois tomos (então caríssimos) na mão, e a minha mãe a responder-me com aquele seu ar determinado quando o queria ter "os livros compram-se"... E o "Idées Romaines", o célebre "L'Idéologie Tripartie des Indo-Européens", e o de bolso (PUF) "Les Dieux des Indo-Europeens".
 
E se estou algo comovido com o tão consistente livro do meu mais-novo, estou mesmo deliciado com estas prendas das amigas antropólogas (às antropólogas não as posso dizer "belas" senão acusam-me de "gender issues"). Quem lerá hoje Dumézil? Mas na minha era de estudante universitário foi o que mais me agradou - a par de Leach, claro, mas com este tinha também um apreço másculo, nada "póscolonial", pela sua coragem física e atrevimento intelectual.
 
Dumézil foi-me outra coisa - e se na época não conhecia as críticas "ideológicas" que lhe foram feitas agora estou-me borrifando nelas. Pois era-me encantador, inebriante: "Zé Flávio", disse-me depois, algo atrapalhada, a professora, que então me leccionava duas disciplinas, "importas-te de que te baixe um valor na nota desta e te suba na outra?". "Claro, é-me indiferente" - nessa época eu julgava que ser blasé era boa coisa - "mas porquê?". "É que não gosto de dar 20s", confessou a jovem... O que sempre sorrio nessa memória.
 
Enfim, com tudo isto, o matabicho do velhote foi soberbo. E porque estando só me posso atrever a estes desvios, comiscando o feijão com óleo de palma, debruado com o achar de manga, folheando os velhos Dumézil, decidi pecar e fui bebericar um tinto. Brindando à saúde dos ofertadores. E aos antepassados, divinos ou não, que nos protegeram. E protegem.

08
Set24

Uma década após Moçambique

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Esta fotografia pode ser - se assim se quiser - um estereótipo, nisso do "antropólogo" "branco" imiscuindo-se em "África" (como agente colonial, pós-colonial, neoliberal, marxista-leninista-maoísta, ou etc., escolha-se o epíteto agressor). Representado ao centro (imagem egocentrada, dele engrandecedora, indivíduo na sua completude) entre uma amálgama "autóctone", de gente assim desindividuada. Se assim interpretada dará para um "paper" (ainda por cima porque consta que o tipo, o tal antropólogo, é de "direita", até pior do que os outros).
 
Ou então, em alternativa analítica, pode ser vista como a fotografia de um quarentão (talvez feliz, e decerto sem o perceber) a trabalhar numa aldeia da Zambézia, muito provavelmente após entrevistar um grupo de mulheres, estas quase certamente a falar das "coisas de género" - e como urgiam e urgem essas problemáticas, pois tanto mais sofrem as mulheres (e também por isso me irritam estes euroburguesotes a reduzirem o "género", a favor ou contra, às questões de implantes e amputações de pilinhas). Sendo esta umas das múltiplas fotos feitas após as sessões, para gaúdio geral - eram os tempos em que os "celulares" com câmeras ainda não se haviam disseminado. E, como tal, não dando para o tal "paper" "póscolonial" (sem hífen), mas mera matéria de memorialismo.
 
É uma boa memória. Faz hoje (8.9.24) exactamente uma década que parti de Moçambique. Acabara de me tornar cinquentão - nisso me deprimindo. Após 18 anos no país o rumo laboral conjugal convocara o regresso ao "velho continente". E larguei o "contexto" que tão bem calçava. Na véspera da partida separei-me, nisso inflectindo para a minha "pátria amada", um inesperado (ainda maior) descalabro.
 
Sem pingo de sarcasmo recordo que aqui cheguei como milhares de compatriotas o haviam feito 40 anos antes. A situação global era muito melhor. Nem tanto a individual: sem "local de recuo", nem sequer "contentor", tamanha a despreparação em que incorrera.
 
Tal era o meu desnorte que nem me lembro bem daqueles primeiros meses, apenas laivos: um congresso africanista em Coimbra, para onde fui no dia seguinte ao regresso, pois estava inscrito, eu em frenesim absoluto, tamanho o "stress" em que vivia, e estupefacto com a mediocridade circundante. Da Ana, minha querida amiga/colega/veterana de Moçambique, me dizer ao fim daqueles dois dias de Lusa Atenas, vendo-me desampararado na sessão festiva final - e com um ou dois uísques a mais para o que naquelas minhas condições poderia aguentar - entre uns bacocos póscoloniais de jargões armados, "Zé, aqui (Portugal, entenda-se) nunca encontrarás a tua mesa de Maputo" (que ela bem conhecia), explicitando a vacuidade lusa face à densidade "de experiência feita" a que estávamos habituados.
 
E sim, o frio, abrir o roupeiro, tirar uma camisa e ao vesti-la arrepiar-me do gélida que estava. A burocracia letal, a esmagar-me. Esquerdalhas a clamarem pelo "empowerment" e a abespinharem-se quando o mais-velho lhes propunha usar "potenciar", sinal de que era eu um vero fascista. Investigadores financiados a considerarem que os problemas pátrios (ou mesmo do mundo) se condensavam no conceito "Passos Coelho". Mas, muito pior, a solidão do desamor, conjugal, e a distância filial.
 
Felizmente tive um muito competente "IARN"... A minha família, acolhendo-me como filho pródigo (que literalmente era), nisso ainda a minha mãe (que nada me perguntou sobre o meu desarrumo, sua elegância materna). E uma alargada "velha guarda", amigos que são mais do que verdadeiramente consanguíneos. Comovo-me, não pela efeméride (raisparta esta...) mas ao pensar neles. Obrigado, "camaradas e amigos".
 
O ano passado os meus compadres Pedro e Catarina levaram-me à Colômbia. Descobri que ainda cá estou. Mais magro do que nesta fotografia. Mais velho, agora mesmo mais-velho sexagenário. Mas ainda digo, voltei a dizer, "avante". Obrigado Pedro, obrigado Catarina.
 
Enfim, por isso "Avante!", para mais dez anos!
 
(No dia da partida, há exactos dez anos, deixara esta despedida: A Papaia)

29
Ago24

Uma década após Eduardo White

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De manhã recebo no telefone o programa do simpósio realizado hoje na AEMO, dedicado ao Eduardo White. "Já passaram dez anos?!!!", assusto-me. E sim, logo comprovo, cumpriu-se há cinco dias a década após a morte, inesperada, do Dino, do White. Era a minha última semana em Moçambique, senti-a também como um malvado epílogo.

Os especialistas falarão da sua obra - alguns estão hoje a falar... Que haja leitores. Eu apenas deixo ligação, memória, do texto que nesses dias sobre ele balbuciei no "Canal de Moçambique".  E lembro-me agora mesmo, em sorriso saudoso diante da triste coincidência, do tão difícil Eduardo a entrar-me restaurante adentro, barafustando comigo e com os nossos imensos convidados, mais de oitenta - a Inês fazia 40 anos -, a propósito de... nada, ladeado pelo atrapalhadíssimo sorriso do Jaime. "Estás a desatinar Eduardo!... Comigo não, pá!", respondi-lhe. E assim logo me deu as costas, seguindo a resmungar com o mundo alhures, o que lhe era nitidamente urgente. Até a um qualquer outro uísque que nos sentou juntos. Mas já não.

(O Eduardo White foi companhia no ma-schamba, e também para lá enviando alguns textos).

27
Ago24

Jaime Santos

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Morreu o Jaime Santos. Quando fui para Maputo uma das surpresas que tive foi a apetência que ali reinava por saraus de poesia - coisa então algo em desuso por cá. Logo à chegada me deparei com vários. O trio de declamadores que mais ouvi era composto pelo bom do Calane da Silva - que também já foi -, a minha querida Ana Magaia, e o Jaime. Todos eram bastante enfáticos, mas isso mais me surpreendia nele, naquela sua força fragilíssima, de onde lhe viria tudo aquilo? Era um homem peculiar, logo ombreámos, "olhe que o Jaime é um tipo difícil", avisavam-me os mais desatentos àquela sua infinita doçura, às vezes mal disfarçada. "E não sou eu também?", resmungava-lhes... E dizia-lhe disso, ele gargalhava, naquela sua casquinada tão própria.
 
Andei agora aqui vasculhando as prateleiras mais esconsas, onde guardei as coisas da "cultura", catálogos e preçários, folhas de sala, biografias, sei lá mais o quê, do que fui vendo por lá. Procurando materiais com ele, para ilustrar este meu adeus (sou ateu, não uso os insuportáveis RIPs e DEPs, "paz à sua alma", "um dia estaremos juntos..." e quejandas superstições). Mas nada encontro, tamanha a profusão de pastas, não seja por isso... Entre tantos dias mais avulsos lembro-me de uma sessão mais composta, "produção" mesmo, que fez com a Ana Magaia sobre Pessoa & Heterónimos, uma realização muitíssimo bem conseguida. Era para seguir até à Beira, ele próprio não quis, demasiado descrente naquele dia. Teria encantado....
 
Com o passar dos anos fui-me retirando das coisas da "cultura". Nisso vendo-o menos. Mas encontrava-o, quase sempre, quando ia a uma livraria - eram pouquíssimas em Maputo. Nelas - mais na Escolar Editora, seu poiso habitual - ele abancava a ler, tinha "carta branca" devida ao leitor compulsivo e - sempre - pouco abonado que era. Às vezes interrompia o livro para me explicar o que lia. Outras pausava um pouco mais para irmos beber um copo - "vinho" - ao estaminé mais próximo. Outras vezes mal me ligava, embrenhadíssimo num qualquer texto...
 
Esta fotografia que partilho, tirada do mural de Facebook do Tomas Cumbana (e talvez da sua autoria), muito provavelmente será da última vez que o vi declamar, com o mundo irado dentro dele, no funeral do Alexandria, o escultor inacreditavelmente linchado por uma turba desaustinada.
 
Mesmo cá de tão longe, e provavelmente nisso para sempre, "isto" sem o Jaime fica mais deserto.

25
Ago24

Uma semana jubilosa

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Por mais rusticidade, até altaneira em modo desprendido, que vá eu encenando sigo vaidoso, como tantos outros, a maioria desses, diga-se... E, pior ainda, mimalho. Como tal foi-me jubilosa esta semana que agora termina. Num tão assim que rara, mesmo. Narro-a para que não me reduzam a resmungão, dado ao azedume, amargurado pela vida, desatento às benesses que me recobrem.
 
Começou-me no texto do amigo Pedro Correia, o maior elogio - se explícito, másculo e público, ressalvo - que alguma vez recebi, louvando o meu "Torna-Viagem" em tais moldes que, como lhe disse, até me causou um frémito de estar já com "os pés para ... o forno", dados os laivos de eulogia que ali... temi. Nisso empurrou o livro. Este quase invisível (edição de autor, desconhecido, numa plataforma digital em impressão por encomenda). O amigo Pedro Morais, homem da banda desenhada, avisara-me de início, "editado assim se venderes 50 é livro de platina!". Eu esperava impingir 100, a utopia era 150... Mas agora, com este elogio chegou às 175 vendas! Digo-me, a mim-mesmo pois, se chegar às 200 encomendarei chamuças de diferentes origens para uma "prova cega".
 
Mas mais mimos me chegaram. A minha querida Ana, de que tanto gosto e me faz falta quando se ausenta, minha mana - "com a idade tornaste-te sentimental", há dias protestava outra amiga, telefonando de longe a combinar comigo os moldes de festa que aí vem, "sempre fui, agora não tenho é pejo de o mostrar", defendi-me -, a Ana, dizia, voltou após meses de Moçambique. Trazendo na carga - "só carreguei porque é para ti..." - uma bela oferta da também tão amiga Fátima: um grande frasco de achar de limão, confeccionado com os seculares saberes de Inhambane. Que mais pode querer um homem? "Mal arranje um portador envio-te um de achar de manga...", responde-me ela ao meu agradecimento! Matabicho de hoje? Malga de café, torrada barrada de achar...
 
Tudo isto orlo com um pouco de cultura, inesperado auto-mimo. Ando a ler os Voltaire - a reler, como se diz dos clássicos, avisou Calvino. E descubro, caído na estante atrás da fileira vigente, este "A Princesa da Babilónia", colecção de seis contos, que - a este sim - nunca lera. Comprado há vinte anos, diz lá. Muito melhor do que um livro novo é mesmo encontrar um esquecido.... E também recuperar um antigo, e nisso leio este "Vélazquez" (sic) com oito reproduções fac-simile em cores, editado em tempos bem recuados por Pierre Lafitte e Cie. Pois preparo-me, dado que ando há meses para ir à Gulbenkian ver o retrato do nosso rei Filipe III e não passa desta semana... "Não tens livros novos, aqueles da Taschen, e isso?, sobre o Velásquez?", mais as "Histórias de Arte" canónicas, carregados de ilustrações e de ensaios actuais?. Tenho, mas assim irei com o meu avô Flávio, que a este mono cá de casa, que resdescubro, comprou em 1911. Razão suficiente para me preparar deste modo, mimando-me com a ancestralidade.
 
Nisto cruzei o Tejo, rumo a almoço às portas de Almada, casa amiga sempre de boa mesa. Não sou grande admirador do comestível coelho, mas não me nego. Mas ontem, e já nestes meus 60 anos, deparo-me com o melhor coelho da minha vida - à mesa o autor reclama que o molho não ficou o espesso suficiente, adiantando razões que nem compreendo tamanha a voracidade com que mastigo. "Como se chama a receita?", pergunto, enquanto me sirvo de segunda pratada, "Coelho à sem nome", diz-me, ríspido, o talentoso artífice, que estou ali a conhecer...
 
Mas o maior dos mimos foi outro. "Pai, podes-me rever a tese?", pergunta a Carolina, e nisso estive eu, nestes dias, a reduzir-lhe as palavras - ajudando a adequá-la aos limites impostos -, a garimpar-lhe a (extensíssima) bibliografia, a comprovar-lhe a justeza sintáctica. Entregou-a na sexta-feira. Numa mescla metodológica difícil, associando Ciência Política com Economia (quantitativa, não a sociologia dita Economia Social). Debatendo as articulações entre investimento em energias renováveis, dívida externa e condicionamento político. Como estudo de caso esmiuçando o exemplo moçambicano. 22 anos, culminando o seu segundo mestrado, antes um na Nova, este agora na LSE. Deparo-me, sem espanto mas ainda assim com alguma surpresa, com um trabalho de grande robustez. E atrevendo-se a correr riscos intelectuais. Com competência e denodo. Pujança. Fica assim um pai babado, muito mimado. E como sempre a frisar: "quem sai aos seus não degenera". Pois a jovem puxou mesmo à Senhora sua mãe. Grande profissional, arguta intelectual.
 
E para esta semana já chega. Tanta coisa boa foi que vou celebrar, uma estroinice: almoçarei um crepe no chinês dos Olivais. Se alguém quiser passar por lá...

22
Ago24

As "Pessoas Que (Não) Menstruam"

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O diretor da Universidade de Verão do Partido Social Democrata (PSD), Carlos Coelho, discursa durante a sessão de encerramento da Universidade de Verão do partido em Castelo de Vide, 04 de setembro de 2022. NUNO VEIGA/LUSA

(Foto de Nuno Coelho, Lusa, retirada daqui)

Há duas décadas conheci em Maputo uma jovem antropóloga espanhola, competente e simpática, que ali leccionava com agrado discente e apreço colegial. Um dia, em conversa decorrida no café do "campus", aludi - e decerto que com amoroso desvelo - à "minha mulher". Ela saltou, inopinadamente, furiosa com a utilização que eu fizera do possessivo, cenho (até belo) franzido, voz alterada, invectivando-me "és o dono dela? é tua propriedade?".

A nossa relação era curial, naquele pacífico tom de colega, e aquela sua reacção extravasava-a por completo. Eu sabia-a dada aos execráveis nacionalismos - dos daquela turba que se diz "catalã" e nisso geneticamente mais aparentada com os franceses do que com os portugueses e marroquinos, entre outras lérias. E de pendor feminista - ideário louvável, ainda para mais naquele país austral, onde, tal como na esmagadora maiorida das sociedades, a igualdade de direitos e a equidade de oportunidades é um necessário desiderato, mas ainda bem longínquo... Mas que me agredisse assim - apesar de ser eu um verme masculino e um desprezível mouro independente -, com armas sintácticas e semânticas, foi-me surpreendente.

Avanço que detesto quando algum não falante de português como língua primeira me vem dizer, doutoral, como devo falar a minha língua - como aquela espanhola naturalizada portuguesa por via de casamento que gritava, mão na anca, que a devíamos chamar "presidenta", "colona" miserável, disse-a, entre outras mudas alusões à comercialização dos seus dotes físicos. Entenda-se, desses alterfonos aceito correcções e propostas, mas não mandamentos linguísticos. Tal como detesto estrangeirismos inúteis, pois desprovidos de conteúdos semânticos - como o "seivar" no lugar de "guardar" ou "gravar", o patético "deletar" em vez de "delir", ou o insuportável "link" como "elo", para exemplos. Já para não falar dos inúmeros que são meros arrivismos guturais, a julgarem-se cosmopolitas. Não é isto nacionalismo linguístico. Mas apenas a consciência de que nem tudo o que vem "lá de fora" é de oiro. Aliás, nem tudo o que desse "lá" por cá aporta reluz...

Mas apesar de tudo isso, e porque estava num bom dia, à minha colega não respondi desabrido, mas sim sorridente. O que lhe piorou a disposição, pois as feministas quando estúpidas e/ou ignorantes - e "ele" há-as - sentem como machismo (o que chamam "mansplaining") a explanação ponderada e eficiente da sua ignorância e/ou estupidez. Avisei-a pois de que quando o amor da minha vida se me referia como "o meu marido" não estava a afirmar-me como sua propriedade, qual escravo (ainda que eu dela me sentisse assim, e disso ufano, na escravidão voluntária que alguns historiadores referem). E aduzi que quando tratava alguém, respeitosamente, por "Senhor" ou "Senhora", ou mesmo "Minha Senhora" não me estava a reclamar seu servo ou lacaio. Não ficou ela convicta, a conversa ali morreu, lembro apenas que um antes apalavrado jantar em nossa casa com ela e o "companheiro" (decerto seria esse o estatuto) não se veio a realizar, por mútuo esmorecimento de vontades.

Leio agora que a Pessoa Que Não Menstrua Carlos Coelho - um antigo excitadinho da jsd, que pelos vistos 40 anos depois continua na politiquice - vem defender a Pessoa Que Menstrua (ou Menstruou) actual ministra da Juventude. Ambos repudiando a utilização dos termos "homem" e "mulher", considerados vilanias anacrónicas, pois coisas do "antigamente". E afirmando ser necessário seguir as instruções vindas "de fora", o palavreado das "organizações internacionais".

Diante disto o que é que um tipo diz a este ex(?)-jotinha? Um mero "vai-te menstruar, pá!"? Ou explica-se-lhe, com verdadeiro mansplaining, as matérias do conteúdo social (semântico) da língua? Hum, duvido que esta pessoa desmenstruada, mero jotinha profissional, chegue a tais compreensões... Quanto à menstruada ministra, de qual nunca ouvira falar, presumo que seja da mesma estirpe. E é esta tralha humana que se julga "atenta". E, ainda pior, que nos governa.

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Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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