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Nenhures

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Há uns anitos fui a uma consulta de rotina, dessas onde se encomendam as vasculhas em busca de hipotéticas maleitas esconsas. Deparei-me com um novo "médico de família", um tipo afável, ainda relativamente jovem. Fez-me algumas perguntas, a deixar-me falar para que conhecesse ele o mortal paciente que ali enfrentava. Discorri um pouco sobre o meu corpo - pois aos médicos se deve dizer o que nem às paredes confessamos. E fui-me queixando disto da degenerescência etária, do "idadismo" da Natureza, essa que nos discrimina progressivamente, retirando-nos "direitos adquiridos", até "inalianáveis". Ao que o doutor intercalou, sorridentemente irónico - e já depois de me ter dado a novidade de precisar eu de deixar de fumar, pois é algo prejudicial à saúde - "já vi que o senhor tem problemas com a idade!". Ao que lhe respondi, com evidente sageza - a qual tenho de assumir - "não, não tenho quaisquer problemas com a idade. Tenho é problemas da idade...", o que é bem diferente. Ao que ele anuiu - até porque não se iria por a discutir com o paciente, ainda por cima estando espartilhado pelas métricas do SNS, que lhe impunham, e impõem, consultas aceleradas para que se componham belas estatísticas.

Lembro-me disso devido ao jantar de ontem. Um par de gentis amigos, pai e filho, levaram-me a jantar à Baixa lisboeta, conduzindo-me ao já tradicional "Solar dos Presuntos". Aceitei com agrado o convite, mas friso que o júbilo sentido se devia à companhia. Não ia ali desde antes do Covid, pois o célebre restaurante - recoberto, como sabem os seus frequentadores, com inúmeras caricaturas e fotografias dos seus mais afamados comensais de antanho e de agora, dando evidente realce ao King Eusébio e ao Imperador CR7, apostos logo à entrada - está (bem) acima das minhas disponibilidades económicas. Não estou a reclamar que seja caro, apenas constato que é dispendioso. Avante, e sigo a narrar a refeição havida, não por gulodice mas para ecoar o tal perverso "idadismo" de que sou vítima.

Entrámos na casa e logo fomos recebidos pelo pessoal com gentileza, nessa afabilidade sem mesuras que cada vez mais escasseia - a qual antes se descrevia pelo galicismo do "savoir faire" -, fazendo-nos sentir como se "clientes da casa". O nosso trio comensal é frugal, e ontem não foi excepção. Evitámos os vinhos - e depois também os digestivos - e ficámo-nos por algumas, parcas, cervejas de pressão, muito bem "tiradas". Encetámos pelo consuetudinário couvert, um mero compósito com salpicão, presunto e queijos, tudo apreciável.

Mas logo nesse entrementes se me colocou um problema da sociologia da alimentação. Pois na mesa estava um cesto - o qual veio a ser preeenchido algumas vezes -, com um sortido de pães. Ora acontece que um dos problemas actuais nas cidades portuguesas é a catastrófica situação da panificação. Pois, destroçada a pequena indústria panificadora, esquartejada a rede de pequenas padarias locais, o pão - base da nossa alimentação - é comercializado pelas "grandes superfícies", essas empresas potenciadas pela ignara desregulação urbanística, e cujas famílias proprietárias continuam a surgir na imprensa popular (das CNN às revistas de "referência") em artigos exaltadores das suas excelências. Apesar de serem um oligopólio que nos impingem pães miseráveis, decerto que devido à sanha de lucros apresentada como "criação de empregos". Este meu trautear do "De Pé, Ó Vítimas da Fome" adveio-me, exclusivamente, da excelência dos pães que os simpáticos funcionários do "Solar dos Presuntos" nos cumularam. E deles me atafulhei, tamanha a saudade que tenho de pão decente...

Seguimos às breves entradas, das quais apenas convocámos duas: uma dose de lingueirão que nos veio à moda de Bulhão Pato. Acontece que, e nisso serei minoritário no país,  julgo bastante desinteressante esse omnipresente Bulhão Pato. Não só as suas memórias, que encetei há alguns anos, são um texto até impertinente de vácuo, tanto que nem nunca lhe visitei a propalada poesia, como o raio do molho que (imerecidamente) levou o seu nome tende a ser uma mistela, quantas vezes até sopeira, que recoze os víveres. Não foi ontem nada o caso: o lingueirão, até raro alimento que tanto prezo ("adoro", no parco léxico em moda), chegou-nos magistral. A outra entrada foi um trio de pastéis de massa tenra de lavagante, um item algo excêntrico (exquisite, no português d'agora), acolhido com satisfação geral - pese embora ser eu muito especioso com os pastéis de massa tenra, devido à minha longa experiência de cliente do restaurante maputense Ka Mpfumo, onde comi os melhores exemplares da minha vida. Ou seja, se ontem não rejubilei com a massa - ainda que a tendo apreciado - constatei que o seu recheio era magnífico.

Depois seguiu-se uma demasiada pausa. Sublinho ter sido nossa culpa, máxima culpa. Pois entre as conversas iniciais - eu particularmente loquaz, como me acontece quando com gente de que realmente gosto - e as hesitações nas escolhas, havíamos pedido bebidas, só depois as entradas, e algo depois lá encomendámos as "peças de resistência". Assim provocámos a tal pausa, a qual nada nos custou a cruzar - entre a continuada converseta até à escapadela até à rua para o cigarro. Os meus, de facto, anfitriões acolheram - em evidente devaneio - fartas doses de pregado e de arroz de garoupa com gambas. Eu fui mais terra-a-terra e avancei para um pernil assado, do qual acima deixo testemunho iconográfico. Estava soberbo! Na conjugação do estaladiço exterior e da languidez, até sensual, interna. E tudo tão condignamente temperado.

Mas nesse entretanto, que estava a ser extremamente prazeroso, fui avassalado pela referida Idade. A qual terá sido convocada pela tal pausa prévia - essa que tendo acontecido há alguns anos teria servido de pretexto para um mariola "pede-se mais uma garrafita de tinto, não". Mas que agora me fez tombar numa tão precoce saciedade, imobilizando-me a cerca de um terço da tarefa comensal. E tão deliciosa estava ela. Não lamento o desperdício, fico-me mesmo nas lágrimas da frustração. A frustração de um (quase)velho que já não dá conta de um Magnífico Pernil! Resta-me a egoísta consolação de constatar que os meus parceiros - o pai, meu camarada de geração, o filho, nisso camarada da minha filha - cediam também diante da generosa profusão alimentar que lhes coubera em sortes. E é claro que não houve (como podia haver?) sobremesas. Um café final, sem destilados posteriores, repito. E seguimos, julgo que (ainda) mais felizes do que chegáramos.

Que a vida me sorria um pouco mais, nas matérias terrenas. E que este fenecer do apetite seja lento. Para que eu, em breve, vos possa convidar a regressar ao "Solar dos Presuntos"...

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Como muitos aqui falam de estantes ontem, enquanto deixava uma nota sobre Joyce, aludi à forma como arrumo as minhas, uma ordem alfabética temática - explicitando que cá em casa na fiada de "literatura estrangeira" a seguir ao homem do "Ulysses" vem o grande Ernst Junger. Num coincidência total hoje um dos sistemas informáticos lembra-me esta efeméride iconográfica, pois estão as fotografias digitais (e as digitalizadas) datadas. E não resisto a partilhá-la.
 
Há 24 anos, numa volta de um mês de Sul a Norte, de Leste a Oeste, em Moçambique, tivemos um furo cerca de Inhaminga, Sofala,. Naquele meio do "mato" (como se teima em dizer) a terra batida da estrada era demasiado granulosa, o macaco afundava, inexistiam ramos suficientes para alavancar o carro. Ao fim de um bom bocado optámos por esta modalidade: uma pilha dos livros que nos acompanhavam nessa (magnífica) viagem serviu de base para se içar o então ainda novo Ssangyong Musso. Agora, ao olhar, tão saudoso que saudosista, para a fotografia noto que lá o está o Junger ("O Problema de Aladino", que não é uma obra magna), e o genial Conrad (o fundamental "Under Western Eyes). E também o Handke, no seu "A Tarde de Um Escritor" - leituras algo excêntricas para aquele maravilhoso e intrépido mês, noto hoje.
 
Sorrio. E nesta Tarde de Um Leitor releio esse "A Tarde de Um Escritor", uma pequena pérola. Enquanto remoo um uísque lembrando a felicidade dos tempos em que empilhava livros para içar rodas dos 4X4...
 
E espero que esta memória não incomode em demasia algumas sensibilidades bibliófilas ("livrófilas", como também há quem diga).

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Em pleno Cais do Sodré os meus intuitos ferroviários de aceder ao oeste são abalroados, surpreendido que sou pelos efeitos de uma greve da função pública a muito atrasar os comboios - numa sexta-feira "ponte"?, estes sindicalistas aburguesados não têm pingo de vergonha!

Pai assim pesaroso, recuo a Sul do Tejo. Mas antes tomo balanço, e já que aqui cruzo a praça até este British Bar. Ao qual não vinha há anos - julgo que ainda se fumava, mas de resto parece-me igual ao que sempre foi, aleluia - pois local que só frequentava com amigos de Maputo por cá passando, velha tradição de muitos que de lá vieram. Alguns deles já ausentes... Por isso peço uma imperial, que já passa do meio-dia. E ingurgito-a com o Kok Nam, com o Paulinho Gentil e também, já agora, com o Jorginho Ramos ainda que aqui nunca tenha estado com ele. E mais um ou dois, estes dos que ainda cá andam.

E por isto, por esta inesperada companhia, digo, e apesar de tudo, "joe, ainda bem que houve greve". Pago, mais do que em Palmela ou nos Olivais. E ala, que se faz tarde...

Há 11 anos José Capela publicou o livro "Conde de Ferreira e Cª: Traficantes de Escravos", colecção de biografias de comerciantes de escravaturas ("negreiros") do século XIX. Quando ele morreu deixei no "Canal de Moçambique" esta muito breve recensão a esse livro (e a outro que ele publicara no ano seguinte, uma verdadeira pérola: "Delfim José de Oliveira..."). Foi uma espécie de homenagem minha, pois Soares Martins (de pseudónimo Capela) fora muito importante na minha vida e tinha (e tenho) para ele uma enorme gratidão. E um grande respeito intelectual, também (mas não só) por ter passado décadas a vasculhar documentos e a publicar, sem pejo nem adornos, sobre como o comércio de escravos foi estruturante no pré-colonialismo português em Moçambique. E como isso moldou as características do subsequente regime colonial - apesar das tralhas lusotropicalistas e lusófonas que vão subsistindo, já para não falar das dulcificadas invocações dos "bons velhos tempos", que tanto misturam as normais (e respeitáveis) memórias individuais de juventude com pronunciamentos de cariz sociológico. Enfim, talvez com um bocadinho de exagero, mas cheguei aos 50 anos com a sensação de que se tive algum "maître à penser" acabou por ser ele... sem que isso possa macular a sua memória devido às atoardas que vou botando. Mas já estou a divagar, avante,
 
Nesse "Conde de Ferreira..." Capela deixou explícito que vários desses comerciantes de escravos regressaram do Brasil mais ou menos após a ilegalização da actividade e se integraram na sociedade do novo regime liberal (e o financiaram), usando as doações beneficientes para ascenderem socialmente. Nisso também patrocinando instituições que ainda existem (misericórdias, hospitais, etc.).
 
Sei agora por intermédio do historiador João Pedro Simões Marques que aconteceu o que eu esperava há já anos - os cirugiões plásticos da História descobriram o Conde de Ferreira (tão presente por esse Portugal afora, ainda que quase ninguém saiba quem foi). E o "Público" (claro) já está em ardores de expurgar as tais instituições dessa memória...
 
Eu continuo na minha, ao que consta na documentação da época (ainda que um pouco posterior) o malvado D. Pedro I não só castrou um aio devido aos seus ilegítimos actos sexuais (um antecessor do prof. Ventura e seus acólitos, está visto) como matou por mãos próprias uns esbirros do seu pai (e terá até comido parte do coração de um deles, a crer ou no cronista ou na colecção de cromos a que tive acesso). E apesar de tudo isso, que tanto agride os actuais valores, continua ali, plantado no centro do nosso Mosteiro de Alcobaça, como símbolo de amor, ainda por cima. Não será, mesmo, de acabar o que os franceses começaram, e rebentar-lhe com a tumba? Ou, pelo menos, retirá-la dos nossos olhos, evitar aquele elogio à memória da ditadura, da pena de morte e da castração por infidelidade amorosa (invertida ou não)?

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