(P. M. in: Ilustração Portuguesa, n.º 712, 13 Outubro 1919)
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(P. M. in: Ilustração Portuguesa, n.º 712, 13 Outubro 1919)
FGV CPDOC | Entrevista com Carlos Machili (15/08/2008)
Morreu Erasmo Carlos, o siamês do Rei. Sei que o que comporia a minha imagem seria proclamar o apreço pela atonal ou uma qualquer do Miles free, uma vintage Coltrane, Monteverdi, Casals, Dilon Djindji, uma roufenha gravação operática, sempre Lou Reed, uma "etno" qualquer ou velharia blues, esse que nunca dito étnico.
Mas sempre lembro este "O Portão", uma canção de vida... Nos meus já 30, apartado em Pemba, matabichos de Castle, ovos com polony, de suor em bica da ressaca e clima, a conhecer isto, aprendê-la em trauteio, e logo a pedir ao nórdico ali patrão para que ma gravasse em K7, depois seguir na íngreme escadaria até à Baixa na baîa, aos correios para enviar isto, declaração de amor quando, cândido, ainda nele acreditava...
Anos depois vim a saber que a receptora olhara a encomenda dadivosa de sobrolho torcido, num desconfiado "este anda bêbedo"... In vino veritas, diziam os antigos.
Obrigado pela ilusão do "Portão", Erasmo Carlos.
(Encontro de escritores nas "Pontes Lusófonas", Maputo 1999- reportagem)
Na semana passada foi o centenário de Saramago e evoco quando o conheci em Maputo. No ano anterior ele recebera o Nobel. A atribuição coincidiu com a visita oficial de Guterres a Moçambique - à cidade haviam chegado 170 pessoas integrantes da comitiva! Um quarto de século depois lembro-me de como soube do prémio: na inauguração de uma exposição na Fortaleza de Maputo, inserida no programa dessa visita. Ali cheguei ao fim da tarde, a hora apropriada, e logo fui abordado por um pequeno grupo de quadros de instâncias culturais moçambicanas, os quais me deram efusivavamente os "parabéns". Julguei, até surpreendido, que me saudavam devido a algum sucesso que estivesse a acontecer no decurso da viagem dos nossos governantes. Mas não era isso, congratulavam-me pelo Nobel! - uma "glória nacional" que eu ainda desconhecia, após um dia embrenhado em múltiplos afazeres, naqueles tempos já tão recuados que ainda sem internet avulsa nem telemóveis.
Confesso que fiquei um bocado atrapalhado. Pois diante do até lendário Prémio o meu trabalho de então (numa cultura nacional literata como é a nossa, que presume mais necessário que se leia Cardoso Pires do que Hermínio Martins, para falar de contemporâneos) pressupunha que eu fosse um saramagófilo... Mas não o era. Filho do senhor meu Pai - que me legou todos os livros do escritor (ainda que nos seus últimos anos de vida me recomendasse "o Aquilino") - havia lido com muito agrado o "Levantado do Chão", com encanto o "Memorial..." e, depois, com o sempre recordado fastio dos meus 21 anos o "...Ricardo Reis". E a partir daí tinha largado todos os livros do autor que havia encetado, por pura impaciência. Decidi, ali mesmo e enquanto me fingia - copo na mão - um "connaisseur" da obra nobelizada, resolver o assunto. No final desse Outubro tive - apaixonado - a sorte de me casar. O furacão Mitch desviou-nos da almejada e já reservada Guatemala e fomos celebrar o acordo que nos viria a dar a Carolina para o Norte do Brasil - e aí, nesse amoroso contexto, preparei o meu regresso a Maputo lendo o "Todos os Nomes". Que, pura e simplesmente, abominei (uma palavrosa mescla de Borges e Kafka, resmunguei, porventura lá pelo Marajó...).
No ano seguinte Saramago aportou a Maputo, incluso numa enorme embaixada cultural portuguesa, as "Pontes Lusófonas", uma sobranceria institucional germinada naqueles tempos das "vacas gordas" que alimentavam os "desígnios" da lusofonia e que também queriam abrilhantar a então nóvel - e indiscutida - CPLP. O escritor logo percebeu a pesporrência de tudo aquilo, do tão "nós aqui para vos iluminar", e decidiu "partir a loiça", nisso distinguindo-se das dezenas de comparsas viajantes, apenas embrenhados nas suas agendas pessoais e encantos alienados. Assim, e com o recente Nobel às costas, decidiu recentrar as coisas, articular(-se) com as "gentes da cultura" de Maputo, saindo do programa oficial que lhe fora agendado.
Foi então arranjada uma sessão na sede da Associação dos Escritores Moçambicanos (a AEMO), no qual ele proferiria uma charla. Entretando eu havia-lhe sido apresentado, gentileza do seu editor Zeferino Coelho, ali também deslocado, e do Augusto Carvalho, o jornalista e professor há já muito em Maputo e do qual eu viria, poucos anos depois, a ser colega. E nisso havia acontecido uma bela conversa, informal e na qual lhe pude perceber uma característica evidente: a extrema acutilância, algo que o desencerrava de si mesmo, coisa que é muito mais rara em artistas e escritores do que se possa pensar, pois tendencialmente egocentrados, no que penso ser mesmo uma deformação profissional.
Enfim, não pude deixar de ir à sessão na AEMO. Para ouvir o Nobel enchera-se a casa, pejada de escritores, jornalistas, académicos e jovens literatos. Saramago entrou, afável, o já velho laureado explicitando estar ali apenas entre colegas, homem contido mas sem nada de altaneiro. E, totalmente de improviso - como me confirmou um dos seus próximos, num decerto que exagerado mas também verídico "é sempre assim!" -, falou durante mais de uma hora sobre aquilo de escrever e isto de ler. Dando depois azo a uma animada conversa - lembro que a Paulina se levantou e disse, com desapegado atrevimento, "eu também gostaria de um dia ganhar o Nobel" e talvez só ela (ou nem ela) pensasse então que "se calhar...", como poderemos dizer hoje. Em suma, Saramago falou e literalmente encantou(-me). E isto para além do sensibilizado que já estava eu, tendo-o antes ouvido criticar o modo de voo do nosso funcionalismo público e nisso percebendo-lhe a sensibilidade política que a tantos outros faltava. Um ano ou dois depois voltou a Maputo, para a apresentação do seu "A Caverna" e lá fui, até mesmo ao autógrafo, e a uma breve troca de palavras, claro que antecedida do "não sei se se lembra de mim, sou fulano de tal...", para receber em troca um piedoso "sim, claro, como tem passado por cá, e etc.". Mas esta simpatia e admiração não me tornou leitor, tendo continuado a não aderir aos seus livros.
Há quatro anos a minha filha teve de ler o "Memorial" pois constava do seu currículo escolar. Bastante lida para a idade fomos conversando sobre o livro, e daquela forma barroca latina bem diversa dos Fitzgerald, Huxley ou Orwell que o currículo inglês lhe promovia (e do Greene e do Waugh que o pai lhe impingia). Eu lá lhe aludi à minha ambivalência face ao autor, talvez me tenha socorrido daquele "um dia tens de ler o Ballester" - sei lá porquê mas tenho a mania de associar os autores - ou outra coisa qualquer. Mas, e acima de tudo porque pouco tive para avançar sobre o livro, passado pouco tempo fui relê-lo, 35 anos depois!, tantos que até custa assumi-los.
Lá avancei na lide leitora, entre o recordar alguns traços e descobrir outros, acima de tudo saindo da trama - que decerto terá sido o meu interesse de leitor de 20 anos - para lhe procurar escavar o fundo ["a(s) mensagem(ns)", se se quiser] e a forma. E às tantas cheguei àquela parte em que o escritor inventa aquilo do povo trabalhador congregado ali em Mafra ter de avançar até ao que nós hoje alvitraremos ser Pero Pinheiro, na senda de uma enorme laje de pedra necessária para o convento. E se põe a imaginar esforços e cuidados, passos e paragens havidos em tal tarefa. E um tipo lê aquelas páginas e só pode dizer "que grande escritor. Gigante."
Depois, claro, há uns tristes espíritos que resmungam umas ladainhas a seu propósito. Para quê ouvi-las, se nada encantatórias?
Lembro um episódio, longo, entre tantos. Em 1994 segui à África do Sul, para trabalhar nas eleições que fizeram ascender o ANC ao poder. Era a primeira missão de observação eleitoral da UE, coisa de três meses - ricos como se muito tempo fossem, tão longa, milionária, pareceu aquela experiência. Ombreámos com os observadores da ONU, ali já colocados há muito tempo, que lhes era missão mais demorada. Na zona onde fui colocado vários desses estavam no país há mais de um ano, e vinham já experientes de outras áreas. Entre outros muito lembro o seu coordenador, Brian (ninguém usava apelidos), um velho com quase 50 anos, irlandês, ruivo, alcoólico (não tocava em álcool, num corajoso sorriso "já bebi o suficiente na minha vida..."), um tipo finíssimo. E Slobodan, um ex-diplomata jugoslavo, náufrago etilizado da "former Yugoslavia", trepidante num volante lesto de morrer, nisso um susto de coabitação, e homem "maior do que a vida" e isso também por todo aquele abissal desespero de recém-apátrida. E Marie-Vi, uma jovem e belíssima francesa, que a todos seduzia no seu simples estar (ainda assim não tanto a mim naquele tempo, apaixonado que seguia). E alguns outros, menos memoráveis.
Lembro-os também porque já então veteranos das missões de paz, eleitorais. Vinham de longas estadas, anos até, decorridas no Cambodja. Lembro-me daquelas noites diante do Índico, bebericando sôfregos, embrenhados naquele magnífico momento sul-africano. Até que, a um determinado momento, uísques ou cervejas cruzadas, muitos e muitas, seguiam eles a falar do que haviam vivido no Cambodja. Do que sabiam que fora, e ainda era.
Agora, décadas depois e por cá, leio ouço estes intelectuais, estes académicos, estes jornalistas, que continuam, ano após ano, a louvar o que chamam "socialismo" - de facto estão a falar dos países comunistas -, e sempre negam o horror. Alhures, entre outros, contado e recontado, olhos pesados, copos rodados entre-dedos, estes que tendem a trémulos. Dir-vos-ão (nunca a mim, que o insulto imediato logo me brota) que não era aquilo o "projecto", o "ideal". Utilizam para o seu miserável sonho (ou para os meros laiques de funcionários públicos burguesotes da descansada europa ocidental) um crivo totalmente diferente do que usam para o que dizem "pérfido capitalismo". Liberalismo? Gritam Pinochet (ignorantes que são nem invocam o ainda pior Videla). Socialismo (aliás, comunismo)? Refugiam-se num qualquer mito, nunca sobrevivido às pérfidas ditaduras. Aos massacres, aos genocídios, aos sociocídios, aos etnocídios, à tortura, à tanta coisa. Se lhes apontamos alguma memória histórica? Não é esse o ideal, respondem ... E ilibem-se, em conúbio entre eles, militantes e funcionários públicos do real.
A muitos o Estado paga-lhes salários. E eles seguem na sua abjecta falcatrua ideológica. E dela fazem profissão. Alguns, mais serenos, limitam-se - quotidianamente nas "redes sociais" e ciclicamente nas urnas - ao sufragar dos grandes assassinos da história. Enquanto ensinam as novas gerações. E a nós - crentes na mediocridade trôpega da democracia, da necessidade de a sempre melhorar - dizem-nos desconhecedores da concepção de "dignidade humana", como um dia até se atreveu um renomado lente de Coimbra. E vão limpando a memória dos polpotismos ou outros comunismos, querendo apagá-la. Apenas 30 anos após aquelas gigantescas desgraças.
E não têm qualquer vergonha. Nem os locutores. Nem os "laicadores".
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