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Nenhures

Nenhures

19
Ago24

O Barbeiro do Alain Delon

jpt

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In illo tempore fugi de Direito, primeiro, e de Sociologia, depois, e fui estudar Antropologia. Um erro, crasso (desaconselho-o às novas gerações - não por causa dos saberes disciplinares acumulados, esses louváveis...). Tal se deveu à complacência dos meus pais, crentes de que eu, de facto então petiz, mesmo se barbado, saberia do melhor para o meu destino.
 
No final da licenciatura (que cumpri de modo trôpego, arrastado e sofrido) tinha de concluir uma disciplina, mal leccionada - sei do que falo, pois vim a leccionar tal coisa, anos depois e alhures, fazendo-o de modo muito melhor e ainda assim mal. Para esse êxito era necessário escrever um trabalho e apresentá-lo oralmente. Era uma "história de vida", coisa então muito em voga, fruto do sucesso de "Os filhos de Sanchez" do célebre O. Lewis e, menos, do anterior "Juan Perez Jolote, biografia de um tzotzil", do mexicano Arciniega. A ideia, nada má de per se, era que da "história de vida" (que não da biografia) de alguém se induziam os feixes constitutivos / constrangedores de determinado contexto histórico.
 
A colegada, impregnada de "sensibilidade etnográfica" - ainda que à bolina naquele Portugal "europeu" que tornou a velha etnografia em meros "salvados", sem que nenhum dos funcionários públicos doutorais a avisasse disso - correu a buscar um qualquer vizinho vulto típico, pitoresco, que lhes contasse a sua "história". Já não me lembro, mas presumo que tenham saído do armazém a velha criada, o pescador curtido pelo Sol, um oleiro ou amolador, etc.. Eu, "do grupo dos Olivais" - como ainda hoje me apresentam - disse uns palavrões, peludos e líquidos, sobre isso de andar a estudar durante os melhores anos da vida para depois ir à procura do "típico". Em monólogo mudo insultei colegas e professores. E fui entrevistar o meu querido barbeiro.
 
Esse era um excepcional "cabeleireiro" (como exigia ser chamado, dado que tinha formação profissional, e disso era ufano) de homens. Aos seus clientes regulares oferecia dois cortes: o da tropa - e quando segui para Mafra fez-me um pente zero à mão (!!!!), tão rapado que o mancebo alferes me veio a dizer que não era preciso tanto... uma obra de ofício mesmo espantosa; e o de casamento, coisa que algo depois fui cobrar, chegado de Maputo na antevéspera do meu feliz enlace.
 
O seu salão olivalense, de labor imparável, era também um refúgio. Ali se acoitavam os jovens depressivos do bairro, "drunfados" claro, os outros "drunfados" oficiosos, pois voluntários, alguns ex-junkies mais mansos, enfim, o colectivo dos desamparados sem mais. E mesmo amigos e vizinhos que ainda seguiam inteiros, ou isso julgavam. Crente Ba'hai, e algo prosélito, mas sem excessos, a todos acolhia e, com imensa generosidade, aconselhava. Num saber que os pobres doutos diriam de "senso comum" mas que a todos acalentava - e por isso sempre regressavam os seus ouvintes. Verdadeiras terapias de grupo...
 
Enquanto nos aparava - com a sua, de facto, magnífica técnica - perorava, incansável. Não só sobre os rumos que cada um presente naquela plateia, real congregação, deveria seguir. Mas também, e essa era tema constante, sobre a sua experiência de vida. Pois ele era um magnífico, grandiloquente, mitógrafo de si mesmo. E o que mais me fascinava era o facto daquela sucessão de mirabolantes episódios ser contada e recontada sem falhas, sem aquelas alterações que desvendam a ficção e, muito mais, a autoficção. De facto, ele era um talentoso mitógrafo, pois crente irredutível do mito que construía, ele-mesmo...
 
E basto credível nisso  - ainda hoje os que o frequentaram afiançam da veracidade dos detalhes então narrados: a participação na resistência armada antifascista, o mergulho na clandestinidade, a partida "a salto" para o estrangeiro, as desavenças com o (micro)movimento em que militava. E o ressurgir da "normalidade", fazendo-se cabeleireiro no Sul de França, estudando isso e estabelecendo o salão em Marselha. Tendo-se seguido a fuga daquele país, para Norte, para mais um mergulho na clandestinidade da resistência armada antifascista. Depois viera o 25 de Abril, a liberdade e o seu regresso ao país. E só então o remanso - laborioso, é certo - da vida familiar, vivida naquela religiosidade bonacheirona, até anafada, de uma imensa generosidade, esse a que nós assistíamos, acompanhávamos. Que tanto me encantava. E a tantos dos meus vizinhos, seus fiéis clientes.
 
Nesse rodopio que lhe fora o vivido narrado havia um episódio que me era mais sonante, a causa da sua fuga de Marselha, norte afora e regresso à luta antifascista clandestina. Pois o seu salão marselhês havia tido um rápido sucesso, a clientela crescera desmesuradamente. Alain Delon cedo se tornara cliente habitual. Mas esse tinha um defeito: julgava que o seu estrelato lhe concedia estatuto privilegiado. Um dia, farto das irrupções de Delon no seu salão, o cabeleireiro disse-lhe, sem rodeios: "Ó Alain, tens de ir para fila como os outros, espera a tua vez...". Claro, o actor, despeitado, mandou os seus capangas violentá-lo, tendo ele fugido, felizmente antes de ser seviciado. E nunca a história faltava, e nunca tinha versões adulteradas...
 
E talvez a lembrança dessa prazerosa, mas convicta, encarnação do Delon de Borsalino seja exemplo maior de como através do cinema a ficção se pode tornar real - verdadeiramente real. Sendo assim uma grande homenagem ao actor que agora morreu. E que fez das suas personagens parte da nossa vida, de forma tão... viva.
 
(Claro, escolhi como meu objecto de "história de vida" o maior mitógrafo que conhecia, o menos típico "informante" que tinha à mão. Porque acreditava, e ainda acredito, que era o mais significante para ser ouvido... Apresentei o trabalho final na minha última aula de licenciatura, dia grande... A assistente do regente, jovem ainda, quando expliquei as causas daquela minha opção, respondeu-me, crítica, lá do meio da sala: "isso é o contrário do que qualquer manual de investigação recomenda!"... Eu, também jovem, ripostei, até sem querer: "se eu estivesse preocupado com manuais tinha ido estudar Gestão" - coisa que, de facto, deveria ter feito, estaria agora numa prateleira algo remunerada, em teletrabalho pré-reforma. 
 
Dispensava-se de exame final se obtida uma nota de frequência bastante acessível, até medíocre. Mas tive de o ir fazer, foram implacáveis... Mesmo assim ainda hoje penso que "O Barbeiro do Alain Delon" foi o melhor texto que já escrevi.)
 
 

01
Ago24

Cultura em Maputo, Política aqui

jpt

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1. Um amigo, camarada de anos a fio em Moçambique, e que comunga o meu interesse pelo país e pelo que faz o nosso Estado nas relações bilaterais, e em particular nas questões culturais, avisa-me desta notícia: a nomeação de um novo adido cultural para a embaixada de Maputo, José Amaral Lopes, antigo secretário de Estado da Cultura e antigo presidente do Conselho de Administração do D. Maria II, deputado, entre várias outras posições de destaque. Dado o seu perfil "alto" é surpreendente a sua indicação para este posto, até modesto. Mas para todos que se interessam por estas matérias - a mescla entre "acção cultural externa" e "cooperação" - uma nomeação de alguém com este peso biográfico tem um significado: denota um grande e assisado interesse governamental no desenvolvimento destas relações culturais, decerto articulado com alguma capacidade para reforçar os  meios, materiais e humanos, dedicados a essas interacções. Fica-se assim - e mesmo que sem "pedir a Lua" - na expectativa de um período de grande desenvolvimento nas conjugações culturais entre ambos os países. Possamos nós fruir disso!

 

2. Paralelamente - mas sendo, de facto, uma irrelevância - a notícia desta nomeação tem um factor denotativo da mesquinhez intelectual dos mecanismos partidários, em particular os do PS. Amaral Lopes exerce actualmente as funções de presidente de junta de freguesia, eleito pelo PSD. Abandonará o posto para assumir estas novas funções.

O dirigente lisboeta do PS, David Amado, critica-o por ter abandonado a freguesia, dela fugido. Deixando assim até implícito um elogio ao actual presidente, dado que considera gravosa a sua substituição. Mas é a demonstração da total impudicícia desse dirigente socialista. Pois há poucos meses, nesta mesma sua concelhia partidária, um também presidente de junta de freguesia, o socialista Costa, abdicou das suas funções, indo (sem currículo que o justificasse) liderar um mecanismo televisivo de produção de opinião pública. Amado então nada contestou. Entretanto, aqui nos Olivais a socialista presidente de Junta, Rute Lima, aquando reeleita logo se foi a trabalhar para a nova Câmara PS de Loures, e vem por cá "exercendo" funções em regime "parcial". E Amado ficou mudo.

E já agora, até porque o postal é sobre "cultura"  e nisso "bibliotecas" - a do Camões em Maputo é muito relevante na cidade - convém relembrar que a biblioteca da Junta de Freguesia dos Olivais, a antiga Bedeteca, sita no Palácio do Contador-Mor (sempre associado aos Olivaes dos Maias) está fechada há mais de três anos. Devido a umas obras não estruturais, que se diz terem sido cabimentadas 2 vezes (!!!), e que se vieram arrastando por incúria da junta socialista - estando agora culminadas sem que a biblioteca reabra. Diz-se no bairro, e quem sabe, que estaria prevista a reabertura para o início deste Verão, depois para Outubro. Mas que deverá acontecer apenas cerca do Ano Novo - para agitar as águas em ano de eleições autárquicas. Sobre tudo isto - e tanto mais - não fala o tal David Amado. Nem as hostes socialistas.

17
Jul24

Qual homem do leme

jpt

(Um homem na cidade, Carlos do Carmo)
 
Ontem escrevi memórias sobre a velha "cidade do Lobito", e alguns "dos tempos" me dizem "estiveste bem, Zezé!", num até imaginado "era assim mesmo". E também por isso hoje deslizo até à seguinte "de Benguela", em busca dos resquícios daquele tempo. Ali abanco, deparando-me com inesperado festival festivo, e nisso usurpando a energia de gente que não é já a minha, de quase jovens que ainda vêm, que ainda se imaginam... Irrito-me, na consciência desse meu hiato, e nisso bebo com vertigem, naquela sede como se o Miguel, o "ilustre causídico", estivesse ali, como se o João, o meu amado "Prudêncio" - e que falta me fazes, João -, me esperasse ("borrego, já abusaste....", diria), como se o "Barão" me beijasse como homem e me levasse num "Bonanza, hoje estás...", como se outro Miguel afilhado gargalhasse comigo, como só ele gargalha, como se outros, e tantos foram, estivessem ainda ali para me dar a mão... e a alma.
 
No entretanto uma amiga invectiva-me, longamente, por não ser amoroso - incompreendendo, como todos e, mais do que esses todos, eu mesmo, ter eu sido eu, ser eu, um homem de um único amor, destruído na vida. E na mesa acotovelam-se, imagine-se, espantoso nesta era, casais de noivos, projectando casórios, e nisso se calhar também, meio mudo, sorridente, o meu mais novo amigo, sexagenário afinal também ele apaixonado. E, ainda por cima, no meio de tudo aquilo, um jovem casal desavindo, em histriónico recomeço.
 
NIsso refugio-me, encosto-me ao balcão, toca na rádio a minha "Homem do Leme" dos Xutos - que eu, quando quis fazer uma tese de doutoramento coloquei na introdução, para convocar aos doutos um "o que é isto?" que me desse espaço para responder eu um altaneiro "sou eu, foda-se", intelectuais de merda... À "Homem do Leme" eu ali ao balcão acendo um cigarro, o dono deixa-me num "que se lixe, já fechou!" e percebo, recordo, que não há maior prazer no mundo do que fumar um cigarro num balcão enquanto se bebe.
 
Nisso transito para o uísque, o Famous, "a sério?" perguntam-me, conhecedores dos meus cuidados actuais, isto de querer eu protelar o descalabro. "Venha", afianço, para acompanhar os Xutos da minha vida... E eu, o meu homem do leme, resmungo-me "puta de vida que nunca mais acaba!", cristão ateu que sou e assim, por isso mesmo, obrigação, a aguentarei até ao fim, caralho. Ali ao balcão escrevo, mais uma destas merdas que quase ninguém compra. "Não vais publicar isto!, foda-se, é demais!", diz-me, até preocupado, o Zezé, também ele já no Famous. "Claro que publico", respondo-lhe, indignado, pois eu sou um patriota, lembro-me, "o homem que transporta / A maré povo em sobressalto". Serei pífio nisso. Mas sou-o, que se foda. Nisso beijo, nas faces, uma das noivas, linda, invectivando-a "trata bem o puto, que é uma delicia", que o é, o cinquentinha...
 
A noite acaba, a casa fecha, regresso a casa ombreando com o Zezé, preocupado comigo, com isto da "merda de vida que nunca mais acaba". E por isso lhe sirvo um magníico rum da Guatemala, que meu "irmão" querido acabou de me oferecer. E assim rimo-nos, pois comungamos o "amar a liberdade", e nisso vamos "pela estrada deslumbrada". Patriotas que somos. E por isso, por tanto isso, aguentaremos, eu e o tal Zezé, tudo isto. Quais homens do leme! Não, como verdadeiros homens do leme.

09
Jun24

Já votei

jpt

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Fui votar de manhã (e votei bem). Como desta vez se pode fazê-lo em qualquer lugar, em vez de ir até às traseiras de casa, como sempre, fui até ali à frente, à Biblioteca dos Olivais. Foi forma de matar saudades pois a Biblioteca está fechada há mais de três anos (há quem afiance que há já 4...), devido a umas obras superficiais que a Junta de Freguesia tem descurado de modo escandaloso (dizem-me que até foram financiadas duas vezes mas não posso afiançar). O que é engraçado é que indo à página da Junta vê-se como Rute Lima (a presidente em part-time) e seus correligionários PS anunciam os trabalhos sobre um novo jardim que vão instalar em homenagem ao Zé Pedro. Mas nada sobre a reabertura da biblioteca. O que muito me faz lembrar aquilo dos "coronéis" brasileiros do Jorge Amado, que se limitavam a ajardinar para legitimar as malandrices.... 

Enfim, é o PS nos Olivais, em Lisboa. E Portugal. A "esquerda", dizem, avessa ao "obscurantismo", gabavam-se. E nós, que não gostamos de duplos financiamentos para obras públicas e até vamos às bibliotecas, somos ... "neoliberais", "reaccionários". De "direita"....

01
Mai24

Há Cultura nos Olivais?

jpt

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Ontem, após o Bayern-Real Madrid, visto em grupo de amigos no café agora "must" dos Olivais, e enquanto se escorropichava a última "imperial", lamentei-me de estar esfaimado. Logo me levaram à Encarnação, onde decorrem as "festas populares". À chegada ouvia-se os UHF. Acorri, constatando que há quase 40 anos não via o grupo de António Manuel Ribeiro ao vivo, laivos saudosistas até.... Quando lá chegámos tocavam a célebre "Cavalos de Corrida"... Depois vieram os "encore", uma "Grândola..." apenas vocal, entoada em registo roufenho com uma senhora da organização (quiçá da Junta).

Entretanto abastecemo-nos dos ambicionados petiscos, fornecidos nas barracas de "comes e bebes", vizinhas dos carrinhos de choque, eu com uma bifana das antigas, daquelas oriundas daqueles pântanos de molhanga com ar vetusto. Enquanto deglutia o manjar voou-me a mente para alhures. Um dos camaradas de comezaina notou-o e indagou o que comigo se passava.

"Estou velho!", resmunguei, lamentando-me. E expliquei-me. Pois no meu bairro de sempre, junto a amigos, diante de imperial e bifana, UHF a rockarem, no que atento é nisto: em pleno centro de Lisboa, esta Junta de Freguesia do PS, essa da presidente Rute Lima (colunista do "Público") e da "vereadora" Vanda Stuart, monta mais uma festarola e clama em cartaz "Há Cultura nos Olivais". E associa isso ao democrático e desenvolvimentista "25 de Abril".

E entretanto a Biblioteca dos Olivais, a antiga BDteca, está encerrada há três anos, ou mais, devido a obras até superficiais, mas tão proteladas de esquecidas, depois como se abandonadas, pois nunca cuidadas. Apenas por desinteresse desta gente PS. Vil e ignorante gente.

"Sou um reaccionário!", concluí. Rimo-nos. E pedimos mais uma rodada de imperiais.

04
Mar24

O PS não muda: o caso paradigmático dos Olivais

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O governo do PS caiu na sequência de um conjunto de "casos e casinhos" - expressão criada para desvalorizar uma inusitada sucessão de desatinos (como o patético "affaire computador"), os quais culminaram no verdadeiro "casão" Escária. E os seus dois antecessores caracterizaram-se por despistes em exercício, em particular o segundo (como os trambolhões sonoros na Defesa e na Administração Interna), e por uma demasiada "endogamia" - incorrecto termo usado para aludir à teia de relações familiares que albergavam, em particular o primeiro. E é ainda indelével no historial PS ter o período Costa sucedido à governação Sócrates, o pior momento deste regime, mas ainda assim defendido até à última pelo partido e pela sua mole de produtores de opinião pública (como Galamba ou Adão e Silva, que Costa veio a recompensar ao elevá-los ao governo).                                   

Não se trata de clamar que tudo isso é "corrupção", que não o é - isto para além de "corrupção" existir em todos os regimes, em todos os quadrantes ideológicos, e de poder grassar em todo o tipo de poderes quando eleitos ou nomeados. Ou nepotismo, pois nem tudo o é. E também não se pode reduzir isto a uma "incompetência" que seja típica daquele partido e seus "companheiros de estrada", disponíveis para com o PS governar ou administrar o sector público. Pois também em todos os regimes e quadrantes ideológicos há escolhas desadequadas ou efeitos do inesperado nas coisas públicas.

Mas tudo isto enuncia duas características deste PS de XXI: a incapacidade - talvez devida à crença da sua  desnecessidade - para cooptar um amplo leque de "homens bons" (de competentes pessoas de bem, dir-se-á hoje) da sociedade para o exercício do poder; e, talvez mais do que tudo, a inexistência de uma autocrítica, interna que seja, algo que sempre transparece um enquistar castrense típico em "partido de poder" exaurido.

Haverá gente do PS, e não só, crente em que a mudança de líder inflectirá alguns rumos políticos e influenciará as práticas no poder. Independentemente disso ser pouco crível com Santos. Não só porque vem demonstrando um verdadeiro e atrapalhado vácuo programático mas, acima de tudo, porque foi consagrado como o "campeão" do aparelho partidário. E é neste que radica o problema.     

Ou seja, não se justifica esperar mudanças positivas - desenvolvimentistas, por assim dizer - no PS. Não por causa deste novo secretário-geral ou de qualquer seu hipotético sucessor. Mas devido à mundividência que grassou e acampou no partido, nas redes que este constitui com a "sociedade civil", esse amplexo do qual emana Santos e emanarão seus sucessores. Mundividência e respectivas práticas que seguem, repito, imunes à autocrítica. E encastradas na aversão a críticas alheias.

Um exemplo paradigmático, pois denotativo, de tudo isto é o que vem acontecendo na Junta de Freguesia dos Olivais. Uma minudência, dirão alguns. Mas são 32 mil eleitores - muito mais do que em tantos municípios -, sitos no centro da capital. O PS domina a Junta desde 1990, diz-se que nele teve o presidente de Junta com mais tempo em funções no país, Rosa do Egipto, ao qual sucedeu a actual presidente, Rute Lima., também colunista do jornal "de referência" Público.

Desde que regressei a Portugal tenho escrito alguns postais como freguês desta freguesia: alguma fragilidade dos serviços da Junta - à qual agora se pode aduzir o encerramento da biblioteca pública (a ex-Bedeteca) desde há anos, para se realizarem umas relativamente simples obras de reabilitação, uma situação lamentável e incompreensível de inércia. E o tom verdadeiramente populista da sua presidência, com a desbragada utilização dos serviços da Junta - e seu boletim mensal gratuito - para engradecimento pessoal da figura da presidente Rute Lima, no posto há vários mandatos.

Também aqui deixei nota - e testemunho iconográfico - da minha irada estupefacção quando em recentes eleições ter notado que o pessoal contratado pela Junta para assistência nas assembleias de voto surgir com camisas com símbolos gémeos ao da candidatura socialista, evidente caciquismo rasteiro. Enfim, um rosário de indigências mentais, surpreendentes por vigorarem nesta Lisboa actual. Quanto ao resto, o verdadeiro funcionamento da Junta, há o constante "diz-que-diz" de fregueses, coisas até plausíveis mas apenas "conversas de café", impublicáveis.

E bem aqui insisti, com pormenor, que nas últimas autárquicas para a surpreendente derrota eleitoral do candidato socialista Medina foram suficientes os votos que o PS perdeu na freguesia Olivais.   

Entretanto, no ano passado houve três reportagens televisivas, detalhadas, anunciando desmandos económicos na Junta. Algumas das referências eram até pungentes - gravações que demonstram haver uma vogal que alimenta a família com a comida das cantinas escolares, por exemplo. Contratações de familiares directos de gente em funções. Aparentes minudências dessas. Nesses dias houve alguns ecos mas mais nada se soube. A presidente Rute Lima - que exerce (ou exerceu) o seu cargo em part-time, pois foi cooptada para a gestão municipal de Loures pelo seu novo presidente socialista, algo peculiar numa freguesia desta dimensão - seguiu incólume.

No final do ano 23 saiu mais um dos característicos boletins da Junta, sempre "Rutecentrados", como comprova a imagem que encima o postal. Ombreando com (mais) uma longa entrevista auto-laudatória a omnipresente Lima escreve no seu editorial, dedicado aos seus "Queridas e Queridos Olivalenses", uma denúncia daquela "espuma que é uma nova forma de estar na política" que conduziu "a forma sórdida a que todos fomos expostos, naquele que foi um ataque inqualificável ao Executivo". Em Fevereiro a Polícia Judiciária fez buscas durante um dia na Junta.

Friso, não há arguidos, não há culpados. Mas há décadas "disto": de comer das cantinas, pelo menos. Deste despautério caciquista. E do PS ser incapaz de se apartar, autocriticamente, deste tipo de gente. Deste tipo de práticas. Desta... mundividência.   

Entenda-se bem, o PS não muda, nem mudará. Pois o PS, este que vai a votos, é Rute Lima.                                             

07
Nov23

Radar Kadafi

jpt

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Há uns 40 anos (porra!) alguns dos amigos da minha rua, lá nos Olivais, fizeram uma banda. Evoluíram aquilo da "garagem" (um estúdio lá pelos Olivais Norte, se não estou em erro) até ao então célebre Rock Rendez-Vous, a espectáculos, a um disco (LP, dizia-se), daqueles que passava na rádio - e ainda passa, sei-o. E um pouco de on the road, esse acompanhado por alguns de nós-outros, os da "rua": lembro-me vagamente de uma ida a Cáceres, eles até já em requebros profissionais, acompanhando os Radio Macau (ou engano-me?). De um qualquer ringue ribatejano, com os Xutos (ou só tocaria a "Contentores" na aparelhagem?)... De uma divertidíssima produção independente na Aula Magna (quando esta era "a" Aula Magna) a meias com os grande Mler Ife Dada do Nuno Rebelo... De um reveillon num pavilhão no "Porto" a sul do Douro, com os Heróis do Mar, que me culminou numa directa de andarilho com o Brózalho, Invicta acima e abaixo, pois nem tínhamos onde dormir, tanta gente se aboletara... E da minha única vez - até hoje, até hoje - em Aveiro, da qual a única memória que tenho é a de uma garrafa de vodka que a Mané trouxera de Kiev. E de outras tantas coisas e sentimentos... A última vez que os vi tocar, já num após-grupo - pois cada um seguira o seu rumo -, foi num maravilhoso enlace de casal amigo, em Beja, uma memória rica para todos...
 
Não há vez que ouça ou pense nos Radar Kadafi que não me fique a sorrir, preenchido de carinho. Por eles, pelos que eram seus próximos, por mim mesmo. A alguns vou vendo, à minha mana sempre, e muito, que estou em Lisboa. A outros num esparso jantar e na promessa de que sejam mais frequentes. E, sempre, nos rituais.
 
Agora mesmo a Rita, então musa, mandou-me nota de que os Kadafi, e o seu pop, foram objecto deste programa de rádio: "A Vida Num Só Disco". Deliciei-me a ouvi-lo. Beijos, Rita, obrigado...

29
Ago23

No metropolitano

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Ontem, Estação de Metropolitano de Chelas, quase 23 horas. Comboio parado, luta de grupos - verdadeiramente multicultural. Tem ar de coisa avulsa, mera "zangadaria", não aparentando ser confronto de grupos "orgânicos" (os sempre ditos "gangs"). Nada de tiros, felizmente, nem se vêm brandir naifas, pedras ou coisas do género. Mas muito mais a tradicional gritaria histérica. A passageira brasileira que me ladeia - talvez por me ver seráfico, ainda que amarfanhando o pobre livro de bolso - pergunta-me "é preciso esperar que chegue a polícia?" antes que retomemos o nosso rumo, pois "assim vou perder o autocarro das 11...". Respondo-lhe, fleumático - já espreitei, notei a tal ausência de armas e a prevalência dos apenas símios gritadores, tendencialmente inofensivos - "não faço a mínima ideia, nunca vi uma coisa assim". Crianças choram, mulheres praguejam, transumância entre carruagens, velhos caducos caducam. Um destes, que é da zona - di-lo pelo sotaque e, mais do que tudo, através dos trejeitos -, logo avança a bom som as suas explicações para o caso pois "há pretos", olhado com algum espanto pelos circundantes ali retidos, entre os quais haverá um ou outro "branco" para além de mim e dele, e da brasileira (a qual talvez se reclamasse, lá no país dela, "parda" para ver se colheria alguns apoios estatais). Os dois sikhs estão calados, ainda que os turbantes lhes pendam um pouco.  Imensos brasileiros brasileiram, e como praguejam!, comprovando os seus "avôs transmontanos", apesar de serem - se necessário - também "afrodescendentes". Os chavalos de Chelas seguem a la Olivais, não se ficando atrás no esbracejar e no vernáculo, mas este sai-lhes sem o trinado arábico típico do nosso bairro. Não há dúvida, para além da Marechal Gomes da Costa o sotaque é diferente. A malta PALOP está calada e furiosa com estes atrasos a atrasar o descanso. E alguma olha-me, quero eu imaginar, com simpatia - haverá algo no meu semblante que dirá por onde andei? Ou será por ser o único dos dois velhos tugas brancos que ali não clama "há pretos"? Os funcionários estão excitados, cais acima, cais abaixo, armados de velhos Motorola, ou similares. Enfim, espera-se a polícia. Milhazes é citado com abundância. Uma das alas contendoras avança e dissemina-se na minha carruagem, continuando a gritar os impropérios que são rescaldo, catarse e ressaca. 

O comboio avança. Mais uma estação e chego ao destino. Estou, verdadeiramente, em casa. Na escada rolante um companheiro de viagem, talvez angolano, murmura-me, entreolhando-me, "filhos da puta!". Sorrio-lhe, encolhendo os ombros. E não lhe digo o que penso: somos, de facto, aqui e agora, nós os dois, lusófonos!

26
Ago23

Crepe

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Durante quase meio século sentei-me nesta esplanada olivalense, se, quando, por cá. Aqui bebi do Ucal de chocolate à (dulcíssima) amêndoa amarga, bicas, comi inúmeras tostas mistas, fumei charros, regressei para as melhores empadas de galinha da vida, e entretanto bebi alguns gins, magníficas imperiais, uísques bem servidos... Nisso sucederam-se incontáveis conversas, encantei-me com vizinhas e visitantes, ombreei com quem é ombreável - e até me zanguei com um ou outro. E em tudo isso, nestes todos anos, sempre fui o Zezé.
 
Após bastante tempo regresso hoje aqui para frugal jantar. Agora restaurante chinês, no qual sou um evidente Zé-ninguém. O decente crepe e a fresca Super Bock são-me trazidos por uma simpática (e bonita, se me permitem) empregada nepalesa, recém-chegada ao país. E neste meu recanto olivalense, onde cresci e agora degenero, com ela tenho de falar em inglês.
 
Peço uma segunda cerveja, e constato: a única coisa que mudou é que é uma sexta-feira nos Olivais e eu janto sozinho. De facto, todo o resto são pormenores...

07
Ago23

O Trancão!

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Ainda que estes anos de bloguismo (e subsequentes redes sociais) me tenham proporcionado simpático convívio digital e algumas agradáveis interacções pessoais, tenho a sensação de que o meu papel Iluminista tem sido subavaliado, até menosprezado. E não haverá maior prova do que esta - como o poderão comprovar os visitantes dos blogs em que escrevo e as minhas ligações no Facebook: há anos que recorrentemente aludo ao Trancão, colhendo espanto, desconhecimento, indiferença ou, ocasionais, pedidos de esclarecimento sobre a sua natureza e paradeiro.

Mas agora, e por causa do Santo Padre, já todos falam do Trancão como se com ele fossem tu cá, tu lá... O meu papel precursor nesta temática é apagado. Ressinto-me disso. Pois só não se sente quem não é filho de boa gente...

Bloguista

Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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