O atentado sofrido por Salman Rushdie, 33 anos depois da sua condenação à morte pelo ditador Khomeini - em cujo país a imprensa já louvou esta acção - convoca a que se reflicta sobre como se concebe esta teofilia constituída como fascismo islâmico, que se vem alastrando nas últimas décadas. Pois na Europa há uma tendência "compreensiva" do fenómeno, de facto desresponsabilizadora dos seus agentes. Esse rumo tem dois grandes dínamos: 1) o viés autopunitivo da civilização ocidental, dominante nas correntes "identitaristas" tendentes a interpretações "multiculturalistas" deste fenómeno político, nas quais se enfatiza a relevância das suas raízes "culturais" - como se estas assim fossem legítimas, qual uma segunda natureza. No fundo, esta é a actualização da "obsessão antiamericana", oriunda do conservadorismo oitocentista europeu, neste ambiente impulsionada pela sua refracção em Foucault - ele próprio arauto da teocracia iraniana -, um grande inspirador desta deriva "identitarista"; 2) o reforço do pensamento antiliberal, um estatismo sempre tendente a impor limites à liberdade de expressão e de consciência, demonstrado em particular no anseio de reverter o direito à blasfémia e da aceitação - em primeiro lugar para as minorias residentes - da censura à liberdade de apostasia.
No caso de Salman Rushdie foi notório que muitas reacções após a sua condenação, provocada pelo "Versículos Satânicos", denotaram a subalternização da adesão aos direitos de consciência, tanto na sociedade britânica e suas congéneres como até em agentes políticos. Pois, mesmo que tenha vigorado o espanto, até repugnado, diante da proclamação de Khomeini, esse foi acompanhado de críticas ao escritor: este, avesso ao governo britânico de então e à política externa americana - e que havia defendido a revolução teocrática iraniana -, foi ridicularizado por aceitar a protecção policial que o Estado lhe proporcionou, como se isso fosse paradoxal. E, ainda mais significante, foi evocada a sua ascendência islâmica como factor que algo lhe deslegitimava a liberdade criativa, evidente refracção da aversão à apostasia (individual ou colectiva). Mas para além desses dichotes na vox populi, britânica e não só, e cujo valor foi apenas denotativo, o certo é que na sociedade britânica e em algumas congéneres, os cleros, e seus próximos, se mobilizaram, não só na crítica ao escritor como - e nisso foi relevante o então arcebispo de Canterbury - reclamando a extensão e (re)activação das leis contra a blasfémia e concomitantes acções censórias.
Para muitos, crentes ou descrentes, a blasfémia pode surgir como antipática ou mesmo anacrónica. E alguns consideram os seus defensores - numa evidente manipulação retórica - de "fundamentalistas seculares", até como incapazes de perceberem a "complexidade" socio-religiosa contemporânea. Naquilo que é um paupérrimo pensamento, pois deixa entender uma "simplicidade" pretérita das conflitualidades político-religiosas - ainda por cima num continente com séculos de guerras religiosas internas à cristandade, e de difíceis coabitações com minorias judaicas e islâmicas. Mas o certo é que a possibilidade blasfema é (tal como o é a apostasia) uma componente fundamental da liberdade de consciência e de expressão, e foi uma verdadeira conquista histórica.
De facto, as reacções que apelam a uma restrição à iconoclastia dedicada ao Islão contêm um ignorante "culturalismo", que implica uma generalização empobrecedora do complexo islâmico e uma vitimização - infantilizadora - daqueles crentes, como se esses sejam incapazes de ultrapassarem traumas advindos dessa iconoclastia. Mas contêm também o propósito de se aproveitar a imposição desses limites face ao Islão para os estender à totalidade do âmbito da religião - bem como a outras áreas da vida social.
Ou seja, essa deriva censória não se restringe ao Islão. No âmbito da cristandade contemporânea é ainda célebre a violenta reacção da igreja anglicana e de outras congregações face ao filme "Life of Brian" dos Monty Python. E mesmo que hoje em dia essa posição pareça absolutamente patética - de um ridículo que foi imensamente glosado, tão patente no sempre recordado debate entre John Cleese e Michael Palin com o bispo de Southwark Mervyn Stockwood - em pleno final da década de 1970 essa acção eclesiástica teve efeitos censórios, e não só na Grã-Bretanha. E convém recordar a violenta reacção do Estado russo e da sua Igreja Ortodoxa no caso do grupo Pussy Riot, condenado (também) por sacrilégio. E em Portugal, neste nosso registo manso dos "brandos costumes", ficou célebre - e muito ridicularizada - a exaltada passeata capitaneada pelo então presidente da Câmara de Lisboa, Krus Abecassis, aquando da apresentação do "Je Vous Salue, Marie" de Godard. Tal como a patética investida do clero católico - nisso então apoiado pelo actual presidente da República, Rebelo de Sousa - contra a singela "Última Ceia" de Herman José, já em 1996.
Como tal, esta vertigem censória é ainda uma questão interna à sociedade portuguesa, bem como em muitas das suas aliadas europeias e americanas. E é notório que muitos países, incluindo europeus, mantêm leis contra a blasfémia e há ainda dezenas que as têm contra a apostasia. E - associável a essa situação - continua a existir uma globalizada discriminação, ainda que com plurais conteúdos, dos ateus - sem que nenhuma dessas situações (consagração do direito à blasfémia e à apostasia, eliminação de entraves sociais, políticos e jurídicos à consciência ateia) surja com veemência nas agendas internacionais, seja nas articulações multilaterais seja no âmbito das relações bilaterais.
Esta refutação do direito à blasfémia, imensamente cruzado com a "vitimização" de um aparente universo islâmico - evidente eco destes discursos "identitaristas" que tendem a encontrar "comunidades" "racializadas" (esse sonho agit-prop de marxismo de bolso, que quer transformar a "raça-em-si" em "raça-para-si") -, aliada à vontade de (re)instaurar mecanismos censórios e de induzir os autocensórios, foi patente após o sanguinário atentado à "Charlie Hebdo".
Em Portugal lembro o aplauso (as "partilhas") entre a intelectualidade de esquerda de um texto do célebre padre Leonardo Boff, apelando à instauração da censura - e explicitamente agregando a temática "islão" à cobertura noticiosa das eleições brasileiras, num atrapalhado texto que bem demonstrava o anseio de vetusto teólogo, e de todos os que o ecoaram, essa amplitude das dimensões que esta temática implica: a instauração de uma censura e de uma autocensura que sejam "protectoras" de determinados grupos sociais (e políticos)...
E notória foi também a reacção de Ana Gomes, encerrando-se em críticas às vítimas, numa evidente "justificação" do(s) ataque(s), devido(s) às ofensas sofridas, mesmo atribuindo-os à... austeridade. E o que é relevante é que esse somatório de dislates que Gomes veio proferindo - incapaz de entender as dimensões políticas e ideológicas da situação, a particular e sua envolvente -, demonstrando o seu alheamento ao valor da liberdade de expressão, não lhe causaram qualquer ónus social ou político. Pois acabou por se afirmar como candidata a presidente da república, numa candidatura emanada de um partido cujo fundador se afirmara um dia "republicano, laico e socialista" - sublinhe-se "laico", e perceba-se que "laicidade" (pessoal e estatal) é algo que Gomes, e tantos outros, incompreendem.
Esta relativização do terrorismo islamita, o reenvio das suas causas para os contextos europeus, deste modo a estes querendo moldar em função das acções assassinas da teofilia fascista, surge também na igreja católica. Disso exemplo são as declarações de Manuel Linda, o bispo do Porto, em 2020 aquando de um atentado islamista em França: "O atentado de ontem na catedral de Nice não é luta do Islão contra o Cristianismo: é o resultado dos preconceitos daqueles europeus que não só não fomentam o diálogo intercultural e inter-religioso como até estão sempre de dedo em riste a acusar as religiões."
Mas o conúbio dos agentes políticos portugueses com esta deriva censória é um traço continuado. Em 2005 a revista dinamarquesa Jyllands-Posten publicou caricaturas centradas em Maomé, as quais viriam a ser republicadas em vários jornais mundiais. (Em Moçambique foram reproduzidas no "Savana", o que originou manifestações de muçulmanos que recordei neste "Kok Nam no Dia das Caricaturas"). As reacções internacionais foram violentas, tendo até a Liga Árabe e a Organização da Conferência Islâmica exigido que a União Europeia introduzisse leis contra a blasfémia. E a posição do governo português foi esclarecedora: em texto do ministro dos Negócios Estrangeiros, o antigo democrata-cristão Freitas do Amaral, condenou a revista, remetendo-a para uma "licenciosidade" e convocando "limites" para a expressão pública.
Esta secundarização da liberdade de expressão na sociedade portuguesa, consumada na repulsa pela blasfémia, esta permissividade face aos desejos censórios (e, insisto, autocensórios), é evidente. E é-o também na actual hierarquia das problemáticas levantadas, nos debates que emergem. E exemplifico tal situação recorrendo ao cerne do sistema jurídico português, o Tribunal Constitucional: o ano passado houve uma polémica sobre o novo presidente desse Tribunal, João Caupers, que muitos clamaram ser desadequado para as funções. O sobressalto, público e partidário, fora causado pela recuperação de um texto seu em jornal universitário, com mais de uma década, avesso ao casamento homossexual. Este ano foi também polémica a indicação de um novo membro desse Tribunal, Almeida Costa, num outro sobressalto colectivo, agora originado pelas suas posições antiaborto, expressas há mais de três décadas.
Ou seja, há - e ainda bem que o há - na sociedade e no espectro partidário uma vontade de escrutinar as opiniões tidas, mesmo que já muito recuadas, daqueles que concorrem ou ascendem a esse importante órgão de soberania. Mas recordo que há dois anos houve outro candidato a esse Tribunal, Vitalino Canas, um antigo governante socialista. Este, em 2006 aquando da discussão parlamentar de um voto sobre os acontecimentos internacionais provocados pela publicação das caricaturas dinamarquesas, considerou: "estão bem uns para os outros, os caricaturistas irresponsáveis e os fundamentalistas violentos". E uma proclamação destas, feita na Assembleia da República na condição de deputado eleito - e não em mero textos de opinião como nos exemplos congéneres que acima refiro - passou completamente ao lado de qualquer escrutínio às suas opiniões enquanto candidato ao Tribunal Constitucional.
E este é um exemplo sumamente demonstrativo das hierarquias políticas vigentes no país. No qual um esconso ditirambo contra o propalado "lóbi gay" faz levantar hostes, um vetusto e particular dislate sobre o aborto faz tremer de ira. E uma proclamação destas, um tamanho distanciamento à liberdade de expressão, proferida em pleno parlamento, é acolhida e "amnésiada" como irrelevante. E isto diz imenso sobre o ambiente político, e não só partidário, que o país vive.
Ontem, ao ver a fotografia de Rushdie - que me eximo de aqui reproduzir -, deitado no palco após o ataque sofrido, rodeado por aqueles que acorreram a acudir-lhe, comovi-me e de tudo isto me lembrei. Porque, contrariamente ao antigo deputado socialista, continuo a acreditar que o escritor Salman Rushdie e o criminoso Hadi Matar não "estão bem um para o outro".
E continuo a concordar, porque democrata, com o anterior vice-primeiro-ministro britânico Nick Clegg, que após o ataque à "Charlie Hebdo", veemente, lucida e enfaticamente clamou que "we have no right not to be offended" (e bem que se justifica ouvir estes dois minutos, aos quais aqui deixo ligação...). E isso é a democracia - a qual vale bem mais do que um qualquer incómodo sofrido. E são estes defensores da censura os seus inimigos internos.