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Nenhures

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(Jô Soares e casamento português)

A propósito disto das "sensibilidades" ofendidas e da "urgência" em higienizar os legados textuais (e outros) para, dizem, evitar desmandos e desvalorizações sociais, lembrei-me desta "piada de português" (muito brejeira, aviso os ouvidos frágeis) do João Soares. Só há pouco a conheci e ri-me imenso, apesar do/devido ao tom corrosivo que nos é dedicado. Ri-me apesar de saber do abrasivo do humor brasileiro contra todos nós, da sua origem xenófoba (e elitista) - recordo um belo artigo sobre a emergência na imprensa de meados de XIX destas invectivas contra os portugueses, publicado numa "Oceanos" de 2000, coordenada por Robert Rowland... Ri-me porque tem piada e porque o contexto o permite (e não é ilegitimado por qualquer patente ou presumida intenção), e ele é omnipotente nestas coisas. Tal como os "ouvintes" devem ser minimamente esclarecidos para se contextualizarem.
 
Nestas coisas de me ofenderem a "sensibilidade" (de me "racializarem") lembro dois episódios: há mais de uma década um casal moçambicano convidou-nos para jantarmos com um outro casal brasileiro, quadros de empresas recém-chegados a Maputo. Assim foi, eles simpáticos, cultos, conversadores. Mas de repente o marido contou uma "anedota de português". Não foi mal acolhida, pelo que seguiu um vasto repertório no tema. Como é evidente nunca mais convivemos com eles, desagradados num "que é isto?", e foi pena pois até poderia ter sido "o início de uma bela amizade". Mas a minha sensibilidade fora demasiado "racializada".
 
Décadas antes acontecera-me outra, ainda pior. Aos meus 14/15 anos, no Verão de São Martinho do Porto, uma família francesa (naquela época os turistas eram quase todos franceses) alugou uma barraca balnear perto da nossa. A filha era linda, loura, e aos meus anseios já se parecia com a Marion des Neiges dos "Pequenos Vagabundos", e o seu irmão e o amigo logo acamaradaram nos jogos de bola, mergulhos e outros que tais. Uns dias passados foram almoçar lá a casa, encantados com a simpatia da minha mãe - até porque ela era verdadeiramente bilingue - e com a sisuda placidez do meu pai (que devia estar a fruir o estado basbaque deste seu filho, assim notando-o a crescer "como um homenzinho"). Depois fui eu almoçar lá a casa, recebido como se adulto fosse pelo messire ali veraneante e sua extremosa mulher. À mesa a conversa fluiu, eu no meu francês pausado mas melhor do que o de agora, eles elegantemente acompanhando o meu ritmo. Entre conversas, e entre eles, o pai pediu à bela filha, sentada do outro lado da mesa, uma qualquer coisa e eu, de imediato, lha passei. Para sua sorridente surpresa, pois entendera eu não só o léxico mas, acima de tudo, a velocidade parisiense da fala... Ao que respondeu ela, talvez ufana do jovem pretendente, talvez precisando de justificar aquele convívio "inter-cultural", "ele é português mas é inteligente!"... Eu passei-me, mantendo a compostura diante dos pais, mas passei-me mesmo. Pior ainda com os outros rapazes a tentarem justificar a "gaffe" mas nisso, atrapalhados, metendo les pieds par les mains... Enfim, o pai lá soube fechar a questão, elaborando sobre a grandeza e a excelência lusa (e após a minha saída deve-se ter rido, vero gaulês, do sanguíneo petiz que lhe entrara porta dentro).
 
Ora esta minha sensibilidade foi reactiva apesar de não ter eu interiorizado (ou sofrido) qualquer pressuposto sobre a minha inferioridade intelectual, social, cultural - ou mesmo "racial" ("étnica" mascara-se agora). É pois normal que outros, provenientes de contextos recorrentemente desvalorizados (por exemplo os "parolos" que Augusto Santos Silva despreza), sejam mais epidérmicos com algumas expressões que vão enfrentando.
 
Por isso as nossas expressões e as nossas sensibilidades são educáveis, aprimoradas - só um imbecil se ri hoje daquele vil filme "Os Deuses Devem Estar Loucos" que há 40 anos foi um sucesso mundial, ancorado no humor racista do apartheid. Mas isso não implica andar a apagar o passado, a emendá-lo. Hoje a Agatha Christie e a Enid Blyton, amanhã o Engels e o Hegel (que vendem menos).
 
Enfim, mas de tudo isto o fundamental que retiro é que foi o Joaquim, um tipo do Porto, que depois conseguiu trocar uns beijos mais intensos com a Falbala de São Martinho do Porto. Não foi a última vez que isso me aconteceu, nem nada que pareça. Mas ainda me dói...

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(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

Ontem, 13 de Março, passaram-se 3 anos exactos!: a minha filha chegou de Inglaterra, onde a sua universidade encerrava por todo aquele ano lectivo, eu recebi-a num misto de angústia - aquela que presumo todos os pais terem sentido nessa época, ainda desconhecedores dos efeitos que a nova doença teria entre os jovens - e de ira, pois acolhendo-a num aeroporto pejado de turistas ingleses que vinham ao Sol do Algarve, e sabendo que os paquetes apinhados ainda atracavam ao Tejo..., isto tudo entre as já trapalhadas da futura "Super-Marta" (que agora se anuncia "para Lisboa"!), sua dra. Graça ("visitai os lares de terceira idade", clamara ela nessa mesma semana) e restantes dignitários... Saímos da Portela logo rumo a Sul do Tejo, e confinámo-nos junto a um grupo de amigos que já se tinham encerrado há já uma semana, abrindo o portão apenas para que nós entrássemos - Amigos-Irmãos, verdadeiramente.
 
 
 

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Não sou muito dado a livros, quase nada às novidades e ainda menos às coisas e causas da literatura portuguesa. E vivi 20 anos fora. Por tudo isto nada percebo destas polémicas literárias, trâmites que associava a um "Chiado" bem recuado, lido no liceu da vida - e nessa candura bem me surpreendera há poucos meses ao saber que o bom do António Cabrita, vindo de Maputo "a banhos", acabara rojado à calçada portuguesa em plena Av. de Roma ao procurar ele (no seu intrínseco civismo) apartar uma contenda entre poetas e críticos algo excêntricos aos escaparates. Bisonho episódio que me alertara para que nesta era de podcasts e tik toks ainda há, a sul do Trancão, quem se exalte em torno de livros... Mas tudo isso se me escapa, pois a última polémica livresca de que me lembro foi sobre este "A Tragédia da Rua das Flores", então confrontando-se os veementes avessos à publicação do calhamaço rascunho e os acalorados defensores da sua imprescindibilidade, tudo isso quando o meu pai teria mais ou menos a minha idade de agora... (e quem o lerá hoje em dia?).
 
Vem-me isto ao teclado diante do actual debate entre os autores, e respectivos amigos e adeptos, das duas recentes biografias de Pessoa, uma dita de pendor "académico", outras vocacionada para ser "popular". A surpresa para mim é tetra (que não tétrica...): 1) que os autores se zanguem em público, e de modo tão desabrido, tanto que até dá para demissões nos "jornais de referência"; 2) algumas das matérias que provocam dissenso - entre as quais avulta a relevante temática sobre se Pessoa frequentaria prostíbulos femininos, era dado aos "prazeres helénicos" ou teria morrido virgem. Isto para além de ser tópico de debate o tamanho do seu membro viril; 3) que tanta gente compre (e até mesmo leia) biografias, já 12 mil da "académica" e a "popular" para lá caminhará!... - mas isso é coisa do meu gosto, avesso que vou a tal molde, para o qual não tenho paciência; 4) o tamanho das tais muito compradas biografias, ao que consta cartapácios de 1200 páginas (a "académica") e quase 1000 (a "popular")! Tanto há para dizer... Enfim, nada tenho contra quem escreve, quem lê, nem mesmo contra quem discute o que escreveu ou leu. Apenas me surpreendo.
 
 
 

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Num mundo feito de países cada um destes deve ser soberano no estipular dos fluxos imigratórios que decide acolher/induzir- e nisso há duas adendas: a soberania é, por definição, relativa, pois subordinada à contratualização internacional; a transposição das obrigações a ter com refugiados para essa noção muito em voga de “refugiados económicos”, é uma demagogia própria de serventuários dos sequiosos amantes de mão-de-obra desapossada, estupradores do lumpen. 

Há alguns dias, na sequência da morte de imigrantes devido ao incêndio do “compound” que os albergava em plena Lisboa velha, Carlos Moedas (do qual tenho uma boa impressão) e Luís Montenegro (que me parece um evidente erro de “casting”) apelaram ao ordenamento da imigração. Logo de Belém ao Rato choveram os dichotes, ecoados pela ralé reaccionária. Mas é mesmo necessário regular a imigração, e mais fácil o é agora porque é relativamente reduzida. E isso para muito melhor acolher os imigrantes: nem se trata de os “integrar” ou “assimilar” - termos que o folclore contestatário da já velha “esquerda” multiculturalista muito contesta para efeitos da sua guerrilha onírica-, mas de os inserir, nisso estendendo-lhes ao máximo o acesso real aos direitos que uma muito decente legislação já lhes atribui. 

 

 

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Foi Flávio (belo nome) Arriano que nos legou os dizeres do seu mestre, o estóico Epicteto - pois este nada terá sido dado aos afazeres da escrita (académica, ainda não se dizia naquela época). Entre esses a crua constatação de que "Não são as próprias coisas, mas as opiniões acerca das coisas o que atormenta os homens", tão impressiva que, 17 séculos depois, Sterne a elevou a epígrafe quando decidiu inventar o romance, ou quase... Cada um interpretará como assim o quiser mas fico-me eu a pensar que o antepassado militava na inquietude intelectual, a da crença de que tudo isto que nos ocorre na vida seria - se bem pensado - algo harmónico, por isso previsível pois compreensível e assim até justo. Disso retirando uma enérgica, como se heróica, placidez - o tal estoicismo - face ao fado, próprio e alheio, fazendo por controlar o controlável e resignada diante do imenso incontrolável. E que nessa inteligência, apesar de tamanhas agruras e amarguras que sempre brotam, o insuportável não é o destino mas sim o desatino, não a dor inadiável e inultrapassável mas sim as meras atoardas que os vizinhos vão perorando.

Lembro-me agora disso, um ano já que vai passando de guerra na Ucrânia. Do sobressalto (também cívico) que se sofreu. E muito das tais atoardas que atormentam, travestidas de pensamento "livre" e "alternativo", tão bastantes então foram elas. Um pouco das austrais - que me são (e sempre serão, sei-o) também vizinhas: na Ilha de Moçambique o escritor Agualusa logo se aprestou a namorar o belo mercado da esquerda brasileira regurgitando a propaganda russa na imprensa daquele país, ao nela clamar o nazismo dos ucranianos. Entretanto, um pouco mais a Sul inúmeros intelectuais erguiam-se contra os "ocidentais" (entenda-se, brancos), pois viciosos no nosso racismo por nos preocuparmos com uma guerra na Europa enquanto nos calamos com as desgraças africanas - curiosas argumentações, irritei-me eu, vindas de opinadores que desde há décadas praticam, por exemplo, um sepulcral silêncio sobre os milhões de sepulcros congoleses, ali quase vizinhos, e que mesmo haviam sofrido tão recentes anos de pasmo mudo face à "insurgência" no Norte do próprio país.

 

 

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