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Nenhures

Nenhures

28
Mar23

Emendar os textos antigos e racismo

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(Jô Soares e casamento português)

A propósito disto das "sensibilidades" ofendidas e da "urgência" em higienizar os legados textuais (e outros) para, dizem, evitar desmandos e desvalorizações sociais, lembrei-me desta "piada de português" (muito brejeira, aviso os ouvidos frágeis) do João Soares. Só há pouco a conheci e ri-me imenso, apesar do/devido ao tom corrosivo que nos é dedicado. Ri-me apesar de saber do abrasivo do humor brasileiro contra todos nós, da sua origem xenófoba (e elitista) - recordo um belo artigo sobre a emergência na imprensa de meados de XIX destas invectivas contra os portugueses, publicado numa "Oceanos" de 2000, coordenada por Robert Rowland... Ri-me porque tem piada e porque o contexto o permite (e não é ilegitimado por qualquer patente ou presumida intenção), e ele é omnipotente nestas coisas. Tal como os "ouvintes" devem ser minimamente esclarecidos para se contextualizarem.
 
Nestas coisas de me ofenderem a "sensibilidade" (de me "racializarem") lembro dois episódios: há mais de uma década um casal moçambicano convidou-nos para jantarmos com um outro casal brasileiro, quadros de empresas recém-chegados a Maputo. Assim foi, eles simpáticos, cultos, conversadores. Mas de repente o marido contou uma "anedota de português". Não foi mal acolhida, pelo que seguiu um vasto repertório no tema. Como é evidente nunca mais convivemos com eles, desagradados num "que é isto?", e foi pena pois até poderia ter sido "o início de uma bela amizade". Mas a minha sensibilidade fora demasiado "racializada".
 
Décadas antes acontecera-me outra, ainda pior. Aos meus 14/15 anos, no Verão de São Martinho do Porto, uma família francesa (naquela época os turistas eram quase todos franceses) alugou uma barraca balnear perto da nossa. A filha era linda, loura, e aos meus anseios já se parecia com a Marion des Neiges dos "Pequenos Vagabundos", e o seu irmão e o amigo logo acamaradaram nos jogos de bola, mergulhos e outros que tais. Uns dias passados foram almoçar lá a casa, encantados com a simpatia da minha mãe - até porque ela era verdadeiramente bilingue - e com a sisuda placidez do meu pai (que devia estar a fruir o estado basbaque deste seu filho, assim notando-o a crescer "como um homenzinho"). Depois fui eu almoçar lá a casa, recebido como se adulto fosse pelo messire ali veraneante e sua extremosa mulher. À mesa a conversa fluiu, eu no meu francês pausado mas melhor do que o de agora, eles elegantemente acompanhando o meu ritmo. Entre conversas, e entre eles, o pai pediu à bela filha, sentada do outro lado da mesa, uma qualquer coisa e eu, de imediato, lha passei. Para sua sorridente surpresa, pois entendera eu não só o léxico mas, acima de tudo, a velocidade parisiense da fala... Ao que respondeu ela, talvez ufana do jovem pretendente, talvez precisando de justificar aquele convívio "inter-cultural", "ele é português mas é inteligente!"... Eu passei-me, mantendo a compostura diante dos pais, mas passei-me mesmo. Pior ainda com os outros rapazes a tentarem justificar a "gaffe" mas nisso, atrapalhados, metendo les pieds par les mains... Enfim, o pai lá soube fechar a questão, elaborando sobre a grandeza e a excelência lusa (e após a minha saída deve-se ter rido, vero gaulês, do sanguíneo petiz que lhe entrara porta dentro).
 
Ora esta minha sensibilidade foi reactiva apesar de não ter eu interiorizado (ou sofrido) qualquer pressuposto sobre a minha inferioridade intelectual, social, cultural - ou mesmo "racial" ("étnica" mascara-se agora). É pois normal que outros, provenientes de contextos recorrentemente desvalorizados (por exemplo os "parolos" que Augusto Santos Silva despreza), sejam mais epidérmicos com algumas expressões que vão enfrentando.
 
Por isso as nossas expressões e as nossas sensibilidades são educáveis, aprimoradas - só um imbecil se ri hoje daquele vil filme "Os Deuses Devem Estar Loucos" que há 40 anos foi um sucesso mundial, ancorado no humor racista do apartheid. Mas isso não implica andar a apagar o passado, a emendá-lo. Hoje a Agatha Christie e a Enid Blyton, amanhã o Engels e o Hegel (que vendem menos).
 
Enfim, mas de tudo isto o fundamental que retiro é que foi o Joaquim, um tipo do Porto, que depois conseguiu trocar uns beijos mais intensos com a Falbala de São Martinho do Porto. Não foi a última vez que isso me aconteceu, nem nada que pareça. Mas ainda me dói...

14
Mar23

3 anos após o confinamento

jpt

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(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

Ontem, 13 de Março, passaram-se 3 anos exactos!: a minha filha chegou de Inglaterra, onde a sua universidade encerrava por todo aquele ano lectivo, eu recebi-a num misto de angústia - aquela que presumo todos os pais terem sentido nessa época, ainda desconhecedores dos efeitos que a nova doença teria entre os jovens - e de ira, pois acolhendo-a num aeroporto pejado de turistas ingleses que vinham ao Sol do Algarve, e sabendo que os paquetes apinhados ainda atracavam ao Tejo..., isto tudo entre as já trapalhadas da futura "Super-Marta" (que agora se anuncia "para Lisboa"!), sua dra. Graça ("visitai os lares de terceira idade", clamara ela nessa mesma semana) e restantes dignitários... Saímos da Portela logo rumo a Sul do Tejo, e confinámo-nos junto a um grupo de amigos que já se tinham encerrado há já uma semana, abrindo o portão apenas para que nós entrássemos - Amigos-Irmãos, verdadeiramente.
 
 
 

13
Mar23

Polémicas literatas

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Não sou muito dado a livros, quase nada às novidades e ainda menos às coisas e causas da literatura portuguesa. E vivi 20 anos fora. Por tudo isto nada percebo destas polémicas literárias, trâmites que associava a um "Chiado" bem recuado, lido no liceu da vida - e nessa candura bem me surpreendera há poucos meses ao saber que o bom do António Cabrita, vindo de Maputo "a banhos", acabara rojado à calçada portuguesa em plena Av. de Roma ao procurar ele (no seu intrínseco civismo) apartar uma contenda entre poetas e críticos algo excêntricos aos escaparates. Bisonho episódio que me alertara para que nesta era de podcasts e tik toks ainda há, a sul do Trancão, quem se exalte em torno de livros... Mas tudo isso se me escapa, pois a última polémica livresca de que me lembro foi sobre este "A Tragédia da Rua das Flores", então confrontando-se os veementes avessos à publicação do calhamaço rascunho e os acalorados defensores da sua imprescindibilidade, tudo isso quando o meu pai teria mais ou menos a minha idade de agora... (e quem o lerá hoje em dia?).
 
Vem-me isto ao teclado diante do actual debate entre os autores, e respectivos amigos e adeptos, das duas recentes biografias de Pessoa, uma dita de pendor "académico", outras vocacionada para ser "popular". A surpresa para mim é tetra (que não tétrica...): 1) que os autores se zanguem em público, e de modo tão desabrido, tanto que até dá para demissões nos "jornais de referência"; 2) algumas das matérias que provocam dissenso - entre as quais avulta a relevante temática sobre se Pessoa frequentaria prostíbulos femininos, era dado aos "prazeres helénicos" ou teria morrido virgem. Isto para além de ser tópico de debate o tamanho do seu membro viril; 3) que tanta gente compre (e até mesmo leia) biografias, já 12 mil da "académica" e a "popular" para lá caminhará!... - mas isso é coisa do meu gosto, avesso que vou a tal molde, para o qual não tenho paciência; 4) o tamanho das tais muito compradas biografias, ao que consta cartapácios de 1200 páginas (a "académica") e quase 1000 (a "popular")! Tanto há para dizer... Enfim, nada tenho contra quem escreve, quem lê, nem mesmo contra quem discute o que escreveu ou leu. Apenas me surpreendo.
 
 
 

20
Fev23

O Podcast Mudo (5): imigrantes da CPLP

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Num mundo feito de países cada um destes deve ser soberano no estipular dos fluxos imigratórios que decide acolher/induzir- e nisso há duas adendas: a soberania é, por definição, relativa, pois subordinada à contratualização internacional; a transposição das obrigações a ter com refugiados para essa noção muito em voga de “refugiados económicos”, é uma demagogia própria de serventuários dos sequiosos amantes de mão-de-obra desapossada, estupradores do lumpen. 

Há alguns dias, na sequência da morte de imigrantes devido ao incêndio do “compound” que os albergava em plena Lisboa velha, Carlos Moedas (do qual tenho uma boa impressão) e Luís Montenegro (que me parece um evidente erro de “casting”) apelaram ao ordenamento da imigração. Logo de Belém ao Rato choveram os dichotes, ecoados pela ralé reaccionária. Mas é mesmo necessário regular a imigração, e mais fácil o é agora porque é relativamente reduzida. E isso para muito melhor acolher os imigrantes: nem se trata de os “integrar” ou “assimilar” - termos que o folclore contestatário da já velha “esquerda” multiculturalista muito contesta para efeitos da sua guerrilha onírica-, mas de os inserir, nisso estendendo-lhes ao máximo o acesso real aos direitos que uma muito decente legislação já lhes atribui. 

 

 

07
Fev23

O Podcast Mudo (4): o Bisneto de Marx

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Foi Flávio (belo nome) Arriano que nos legou os dizeres do seu mestre, o estóico Epicteto - pois este nada terá sido dado aos afazeres da escrita (académica, ainda não se dizia naquela época). Entre esses a crua constatação de que "Não são as próprias coisas, mas as opiniões acerca das coisas o que atormenta os homens", tão impressiva que, 17 séculos depois, Sterne a elevou a epígrafe quando decidiu inventar o romance, ou quase... Cada um interpretará como assim o quiser mas fico-me eu a pensar que o antepassado militava na inquietude intelectual, a da crença de que tudo isto que nos ocorre na vida seria - se bem pensado - algo harmónico, por isso previsível pois compreensível e assim até justo. Disso retirando uma enérgica, como se heróica, placidez - o tal estoicismo - face ao fado, próprio e alheio, fazendo por controlar o controlável e resignada diante do imenso incontrolável. E que nessa inteligência, apesar de tamanhas agruras e amarguras que sempre brotam, o insuportável não é o destino mas sim o desatino, não a dor inadiável e inultrapassável mas sim as meras atoardas que os vizinhos vão perorando.

Lembro-me agora disso, um ano já que vai passando de guerra na Ucrânia. Do sobressalto (também cívico) que se sofreu. E muito das tais atoardas que atormentam, travestidas de pensamento "livre" e "alternativo", tão bastantes então foram elas. Um pouco das austrais - que me são (e sempre serão, sei-o) também vizinhas: na Ilha de Moçambique o escritor Agualusa logo se aprestou a namorar o belo mercado da esquerda brasileira regurgitando a propaganda russa na imprensa daquele país, ao nela clamar o nazismo dos ucranianos. Entretanto, um pouco mais a Sul inúmeros intelectuais erguiam-se contra os "ocidentais" (entenda-se, brancos), pois viciosos no nosso racismo por nos preocuparmos com uma guerra na Europa enquanto nos calamos com as desgraças africanas - curiosas argumentações, irritei-me eu, vindas de opinadores que desde há décadas praticam, por exemplo, um sepulcral silêncio sobre os milhões de sepulcros congoleses, ali quase vizinhos, e que mesmo haviam sofrido tão recentes anos de pasmo mudo face à "insurgência" no Norte do próprio país.

 

 

07
Jan23

O Podcast Mudo (3): adenda a Malangatana

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Reincido sobre o mais-velho Malangatana pois tendo eu botado uma memória que dele retenho logo ontem uma minha amiga-FB teve a gentileza de me narrar o seu episódio com o Mestre. Breve história mas tão dele denotativa. E também sintomática de outros tempos (felizmente) passados:

Naquele 1971 (sim, 1971...) a minha correspondente embarcara na Portela de Sacavém no avião da TAP que faria a ligação Lisboa-Lourenço Marques. Ainda imobilizados na placa foi sondada em surdina pela hospedeira: uma qualquer passageira - "senhora" dir-se-ia naquele tempo mas não agora - reclamara-se incomodada por seguir ao lado daqueloutro viajante, cujas características somáticas lhe desagradavam. E por isso lhe perguntava se se importaria ela de uma discreta troca de lugares, assim ombreando ao longo do voo com o tal indivíduo, algo a que ela se aprestou sem delongas - e nisto não posso deixar de presumir que a hospedeira tenha exercido o seu experimentado olhar clínico sobre a mole de passageiros, em busca de alguém menos rústico. "Sorte a minha" diz-me ela agora, pois durante o longo trajecto aéreo - presumo que naquela época ainda com escalas - o homem se apresentou, disse do que vinha e nisso se gerou convívio. Era o Malangatana, claro, regressando a casa após a estada em Lisboa financiada pela Gulbenkian - apesar de já ter passado anos na temível prisão da Machava (padecimento que veio a ilustrar) e de nesse mesmo ano ter sido outra vez preso. Ao fim daquela continuada conversa, já em Mavalane, a jovem recebeu este presente - um gesto que nós podemos adivinhar inscrito no continuado "charme" que Malangatana exalava mas também, é evidente, como um carinho à jovem pelo seu acto de ali ombrear, mostrando-se avessa à pestífera arrogância que ainda grassava entre tantos dos seus compatriotas. Deixou-lhe assim este agrado, o "sim meu irmão porque a voz difusa [da] criança é uma flor na boca do nosso dia a dia, 24.9. 71", que seria emoldurado logo que chegado a casa.

Décadas passaram e o então já consagrado Malangatana veio expôr ao Casino Estoril. "Morava perto e fui vê-la. Discretamente meti na sacola o quadrinho. Diante dele, discretamente mostrei-lho. Que alegria!, dizendo-me "Mas tu guardaste isto quando eu ainda não era conhecido?"..., sua tão típica reacção que se pode imaginar, até ver e escutar. 

Sorrio com o pequeno episódio e peço autorização para o divulgar, ao que Nené Barbosa logo tem a amabilidade de aceder. Escrevo o postal e deito-me, ainda cedo. Acordo, insone num qual breu mas estremunhado para ler as coisas demasiado densas que me rodeiam. Assim agarro na tabuleta e revejo o episódio sobre Wiriyamu (e não só) da excelente série "A Guerra" que Joaquim Furtado realizou há uma década, algo que vinha adiando há alguns meses. E venho a ter o prazer de rever o bom do padre Zé Luzia - que há anos raspei em Lisboa mas com o qual não privo desde a sua estada em Angoche... - ali entrevistado. E também Malangatana, num breve aparição neste episódio, centrado nas sevícias prisionais sofridas.  E acalenta-me esta "dose dupla" dele...

Depois, na alvorada, café e cigarro(s) havidos regresso à "primeira forma", volto a resmungar. Com este centramento actual em Wiriyamu, o massacre, a alusão a alguns outros massacres, as "desculpas" apresentadas ou a apresentar. Sem rodeios, este tipo de discursos sobre os "massacres" (que trazem implícita mas indita a definição quantitativa e qualitativa do que é um "massacre"), é apenas eco das nossas sensibilidades actuais, prontas a horropilarem-se com desmandos havidos. 

Não sou pacifista, julgo que há guerras justas e/ou necessárias, sendo defensivas ou  mesmo preventivas (e esta última é uma tese complicada de defender). E muitas das guerras são justificáveis no seu a posteriori - vamos encerrar-nos na avaliação da pertinência moral das Guerras Púnicas, da conquista da Gália?  E nisso temos a tendência para contextualizar o passado longínquo, isentando-o do crivo moralista, mas de julgarmos o passado recente. Ora as guerras têm um contexto histórico e a sua justificação passa muito pela sua adequação às ideias vigentes, por serem contemporâneas de si mesmas. E, de facto, as guerras coloniais portuguesas - as três guerras de independência africanas - não têm essa justificação. Eram, foram, anacrónicas. Injustas por isso. E ao dedicarmo-nos às desculpas por "excessos" militares ou policiais, aos "desmandos", às específicas violações dos "direitos humanos" ou da "convenção de Genebra", poderemos aliviar as consciências, as tais sensibilidades horripiladas. Mas ao centrarmo-nos nesses episódios estamos, de facto, a caucionar o geral da guerra, aquilo que seguia segundo os compêndios. Ora o que é de "lamentar" (o que não é "pedir desculpa") são as três guerras. E não os massacres.

Mas isso é muito mais difícil. Pois muito mais radical. E também não dá para grandes slogans... Até porque, honestamente, já passou meio século. É tempo de ombrearmos, nos aviões e alhures.

05
Jan23

O Podcast Mudo (2): Malangatana

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Leio, em postal de um seu familiar, que passam hoje 12 anos desde que Malangatana morreu. E estanco, recordando-o. E fico a sorrir, cálido. Presumo, sei, que quem não o tenha conhecido, ou só o conheça pela arte, não apreenda isto, o de que ele foi um homem espantoso, Enorme, multifacetado, vulcânico, delicioso, inebriante... Também algo contraditório, como o são os Homens que o são. Acima de tudo uma energia criativa de dadivosa que parecia inesgotável. Tornada uma alegria de viver, mas sumamente consciente.
 
No cadinho de memórias que sobre ele logo me surgem recupero agora algumas. Esta, a de um divertido jantar lá em casa (ainda na Engels), em que após um dia muito cansativo o mais-velho levou com o meu pedido, "mestre, ponha lá um autógrafo", que ficou este que reproduzo, no livro que a Caminho/Ndjira lhe dedicara - numa pequena colecção de álbuns que o atento Zeferino Coelho dedicou à arte em Moçambique -, que fora organizado pelo bom do Júlio Navarro, seu tão companheiro, homem peculiar, dito irascível mas que era, de facto, a bondade e a gentileza personalizadas em formato rude de carinhoso.
 
Eu e a Inês tínhamos casado (em Lisboa) pouco antes e no regresso a Maputo fizemos uma festa porreira na Costa do Sol, lá numa casa muito precária do Fernando Veloso, a celebrar isso. O mais-velho, com um sorriso do tamanho do amor, disse-me "vou-vos dar um quadro, tens de lá ir buscar". E eu, depois quantas vezes ido lá a casa no "Aeroporto" e à de Matalana, nunca tive a "lata", o atrevimento, de lhe pedir o tal quadro, sempre me deixando maravilhado diante da desarrumada colecção de obras e mergulhado nas conversas infindas...
 
Já cá, há 2 ou 3 anos a minha filha foi a uma festa a casa de um amigo e enviou-me um SMS dizendo-me, entusiasmada, "o pai dele tem um Malangatana" e eu respondi-lhe com uma fotografia, ela sorridente aos 3/4 anos ao colo do mais-velho em Matalana, ladeando o meu mano Ídasse e sua filha Noma, estava ele a fazer um mural em casa-própria. A legenda foi qualquer coisa como "este é o nosso Malangatana". E é. O alento da memória...
 
Quando morreu o Mestre, figura-mor da pátria moçambicana, o FUNDAC, organismo estatal da cultura, pediu-me/encarregou-me de escrever o breve texto alusivo ao momento. Atrapalhado botei o que pude, coisa pouca para tão necessária homenagem (Malangatana). Mas percebendo, estrangeiro, que foi aquele o momento mais honroso que tive em Moçambique. Digo-o, ainda hoje disso vaidoso. E imensamente saudoso. Pois que grande Malangatana foi Malangatana.

30
Dez22

O Podcast Mudo (1): reveillon na Ilha de Moçambique

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(Começo assim a emitir o meu podcast - intitulado "O Podcast Mudo" -, o qual terá uma periodicidade algo irregular mas que espero frequente, e será constituído por episódios de cerca de 3 minutos. Espero que possais gostar do timbre da minha voz e da prosódia da minha fala.)

Coisas destas "memórias" do FB, isto de me lembrar que há 16 (!!!) anos cruzei para o 2007 na Ilha de Moçambique. Todos os palermas a quem aconteceu algo (e a quem é que não acontece?) proclamam "a minha vida dava um romance" - e alguns escrevem-no, raios os partam. E eu posso dizer que naqueles tempos vivia um pedaço de guião de filme, "francês", de "autor", se se quiser..., que aqui esquiço, sem entrar num registo intimista, que esse ficará para o tal "romance"..., que nunca escreverei, claro.

Alguns meses antes tinha regressado a Maputo, vindo de um trabalho de terreno, num estado que aparentava calamidade natural, tamanhas eram as hemorragias que me acometiam. E logo cometi o erro, de verdadeiro incauto, de me recolher ao convívio com o Google indagando sobre o que comigo se passava, e nisso percebi que deveria ter um cancro do cólon - o que me incomodou deveras, pois ainda recém-quarentão e pai de uma filha com 4 anos. E com os pais vivos.

Enfim, face ao horizonte tétrico segredei a situação a uma querida amiga - "não dizes nada à Inês?", logo me convocou, "é melhor não, por enquanto, para quê provocar angústias alheias?", "ó Zé!", franziu ela o belo cenho -, a qual logo me remeteu para um médico afamado em JHB (de facto, em Centurion). Acabrunhado, macambúzio, lá fui ao diagnóstico.

O médico logo me sedou e vasculhou. Depois avançou para mim, eu ainda estremunhado, café de filtro na mão, uma mixórdia inútil, e nisso muito atrapalhado com o gutural inglês do africander, esperando o pior, e disparou ele: "você lá em Moçambique come muito piripiri?" "hââ", respondi... "bebe álcool?" "hââ.." gemi até esganiçado, "e no "mato" bebe as águas", "pois, vou bebendo, acaba por ter de ser" (mais no gelo do uísque, mais isso não lho disse). "Pois, você não tem nada no cólon", "o que você tem é hemorróidas" - [sim, eu sei que é assunto tabu para homens, que a rapaziada da minha geração mais depressa reconhece a sua disfunção eréctil do que isto dos borbotos no recto, mas saiba-se, é coisa perfeitamente natural...]. "Tome lá esta pomada", rematou, e em adenda culminou "e tenha cuidado com o que bebe e come"...

Voltei a Maputo. Na época estava num abanão conjugal, separado. Passado pouco tempo chegou o Natal, a família veio à pátria amada. Eu fiquei, estando entre o desconforto da solteirice e o enorme alívio da afinal saúde. Na véspera do Natal meti-me no meu saudoso Ssangyong Musso e decidi ir até ao Rovuma, pois nunca ultrapassara para além do Messalo. Passei a consoada em Inhambane, com amigos, um excelentíssimo casal. Depois - e porque ainda era o tempo do batelão de Caia -, Inhassoro, Quelimane e Ilha.

À Ilha já tinha ido várias vezes, conhecia gente, um punhado de deliciosos amigos até. Decidi ficar uns dias, que ia cansado de tanta estrada sozinho... À chegada bati à porta do já falecido Kamusse, ali sempre meu intérprete. E comecei em andanças. Fiquei 5 semanas!, e só parti porque as aulas iriam começar... O Rovuma?, afinal adiei-o para um qualquer futuro. Que nunca chegou.

Já agora, a cidade estava pejada destes grafitis..., grupos de jovens a louvarem clubes de futebol europeus, J. Bus - o Bush mesmo, que então se embaraçara no também islâmico Iraque - , e universos similares, naquela mescla de macua nahara pejado de portuguesismos amansados com a pronúncia local. Por ali andei, deliciado, alinhavando o que poderia ter sido um texto "anti-póscolonial" (falo das tralhas "teóricas", não do pós-colonial com hífen, das independências).. Que acabei por não fazer, talvez, decerto, demasiado embrenhado naquelas "águas do Índico". Mas ficou-me - e mais uma vez - a ideia e o sentir: o encanto da Ilha de Moçambique não é a pedra-e-cal. Nem os artefactos folclorizados, os "mussiros" e as "missangas". É quem lá vive. Entenda-se, o macuti...

A ver se ainda lá passarei. Que tenho saudades da minha leveza desse tempo. De "viente" deliciado, nisso enérgico. Mas não "encantado".

 

Bloguista

Livro Torna-Viagem

O meu livro Torna-Viagem - uma colecção de uma centena de crónicas escritas nas últimas duas décadas - é uma publicação na plataforma editorial bookmundo, sendo vendido por encomenda. Para o comprar basta aceder por via desta ligação: Torna-viagem

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