Emendar os textos antigos e racismo
(Jô Soares e casamento português)
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(Jô Soares e casamento português)
(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)
Num mundo feito de países cada um destes deve ser soberano no estipular dos fluxos imigratórios que decide acolher/induzir- e nisso há duas adendas: a soberania é, por definição, relativa, pois subordinada à contratualização internacional; a transposição das obrigações a ter com refugiados para essa noção muito em voga de “refugiados económicos”, é uma demagogia própria de serventuários dos sequiosos amantes de mão-de-obra desapossada, estupradores do lumpen.
Há alguns dias, na sequência da morte de imigrantes devido ao incêndio do “compound” que os albergava em plena Lisboa velha, Carlos Moedas (do qual tenho uma boa impressão) e Luís Montenegro (que me parece um evidente erro de “casting”) apelaram ao ordenamento da imigração. Logo de Belém ao Rato choveram os dichotes, ecoados pela ralé reaccionária. Mas é mesmo necessário regular a imigração, e mais fácil o é agora porque é relativamente reduzida. E isso para muito melhor acolher os imigrantes: nem se trata de os “integrar” ou “assimilar” - termos que o folclore contestatário da já velha “esquerda” multiculturalista muito contesta para efeitos da sua guerrilha onírica-, mas de os inserir, nisso estendendo-lhes ao máximo o acesso real aos direitos que uma muito decente legislação já lhes atribui.
Foi Flávio (belo nome) Arriano que nos legou os dizeres do seu mestre, o estóico Epicteto - pois este nada terá sido dado aos afazeres da escrita (académica, ainda não se dizia naquela época). Entre esses a crua constatação de que "Não são as próprias coisas, mas as opiniões acerca das coisas o que atormenta os homens", tão impressiva que, 17 séculos depois, Sterne a elevou a epígrafe quando decidiu inventar o romance, ou quase... Cada um interpretará como assim o quiser mas fico-me eu a pensar que o antepassado militava na inquietude intelectual, a da crença de que tudo isto que nos ocorre na vida seria - se bem pensado - algo harmónico, por isso previsível pois compreensível e assim até justo. Disso retirando uma enérgica, como se heróica, placidez - o tal estoicismo - face ao fado, próprio e alheio, fazendo por controlar o controlável e resignada diante do imenso incontrolável. E que nessa inteligência, apesar de tamanhas agruras e amarguras que sempre brotam, o insuportável não é o destino mas sim o desatino, não a dor inadiável e inultrapassável mas sim as meras atoardas que os vizinhos vão perorando.
Lembro-me agora disso, um ano já que vai passando de guerra na Ucrânia. Do sobressalto (também cívico) que se sofreu. E muito das tais atoardas que atormentam, travestidas de pensamento "livre" e "alternativo", tão bastantes então foram elas. Um pouco das austrais - que me são (e sempre serão, sei-o) também vizinhas: na Ilha de Moçambique o escritor Agualusa logo se aprestou a namorar o belo mercado da esquerda brasileira regurgitando a propaganda russa na imprensa daquele país, ao nela clamar o nazismo dos ucranianos. Entretanto, um pouco mais a Sul inúmeros intelectuais erguiam-se contra os "ocidentais" (entenda-se, brancos), pois viciosos no nosso racismo por nos preocuparmos com uma guerra na Europa enquanto nos calamos com as desgraças africanas - curiosas argumentações, irritei-me eu, vindas de opinadores que desde há décadas praticam, por exemplo, um sepulcral silêncio sobre os milhões de sepulcros congoleses, ali quase vizinhos, e que mesmo haviam sofrido tão recentes anos de pasmo mudo face à "insurgência" no Norte do próprio país.
Reincido sobre o mais-velho Malangatana pois tendo eu botado uma memória que dele retenho logo ontem uma minha amiga-FB teve a gentileza de me narrar o seu episódio com o Mestre. Breve história mas tão dele denotativa. E também sintomática de outros tempos (felizmente) passados:
Naquele 1971 (sim, 1971...) a minha correspondente embarcara na Portela de Sacavém no avião da TAP que faria a ligação Lisboa-Lourenço Marques. Ainda imobilizados na placa foi sondada em surdina pela hospedeira: uma qualquer passageira - "senhora" dir-se-ia naquele tempo mas não agora - reclamara-se incomodada por seguir ao lado daqueloutro viajante, cujas características somáticas lhe desagradavam. E por isso lhe perguntava se se importaria ela de uma discreta troca de lugares, assim ombreando ao longo do voo com o tal indivíduo, algo a que ela se aprestou sem delongas - e nisto não posso deixar de presumir que a hospedeira tenha exercido o seu experimentado olhar clínico sobre a mole de passageiros, em busca de alguém menos rústico. "Sorte a minha" diz-me ela agora, pois durante o longo trajecto aéreo - presumo que naquela época ainda com escalas - o homem se apresentou, disse do que vinha e nisso se gerou convívio. Era o Malangatana, claro, regressando a casa após a estada em Lisboa financiada pela Gulbenkian - apesar de já ter passado anos na temível prisão da Machava (padecimento que veio a ilustrar) e de nesse mesmo ano ter sido outra vez preso. Ao fim daquela continuada conversa, já em Mavalane, a jovem recebeu este presente - um gesto que nós podemos adivinhar inscrito no continuado "charme" que Malangatana exalava mas também, é evidente, como um carinho à jovem pelo seu acto de ali ombrear, mostrando-se avessa à pestífera arrogância que ainda grassava entre tantos dos seus compatriotas. Deixou-lhe assim este agrado, o "sim meu irmão porque a voz difusa [da] criança é uma flor na boca do nosso dia a dia, 24.9. 71", que seria emoldurado logo que chegado a casa.
Décadas passaram e o então já consagrado Malangatana veio expôr ao Casino Estoril. "Morava perto e fui vê-la. Discretamente meti na sacola o quadrinho. Diante dele, discretamente mostrei-lho. Que alegria!, dizendo-me "Mas tu guardaste isto quando eu ainda não era conhecido?"..., sua tão típica reacção que se pode imaginar, até ver e escutar.
Sorrio com o pequeno episódio e peço autorização para o divulgar, ao que Nené Barbosa logo tem a amabilidade de aceder. Escrevo o postal e deito-me, ainda cedo. Acordo, insone num qual breu mas estremunhado para ler as coisas demasiado densas que me rodeiam. Assim agarro na tabuleta e revejo o episódio sobre Wiriyamu (e não só) da excelente série "A Guerra" que Joaquim Furtado realizou há uma década, algo que vinha adiando há alguns meses. E venho a ter o prazer de rever o bom do padre Zé Luzia - que há anos raspei em Lisboa mas com o qual não privo desde a sua estada em Angoche... - ali entrevistado. E também Malangatana, num breve aparição neste episódio, centrado nas sevícias prisionais sofridas. E acalenta-me esta "dose dupla" dele...
Depois, na alvorada, café e cigarro(s) havidos regresso à "primeira forma", volto a resmungar. Com este centramento actual em Wiriyamu, o massacre, a alusão a alguns outros massacres, as "desculpas" apresentadas ou a apresentar. Sem rodeios, este tipo de discursos sobre os "massacres" (que trazem implícita mas indita a definição quantitativa e qualitativa do que é um "massacre"), é apenas eco das nossas sensibilidades actuais, prontas a horropilarem-se com desmandos havidos.
Não sou pacifista, julgo que há guerras justas e/ou necessárias, sendo defensivas ou mesmo preventivas (e esta última é uma tese complicada de defender). E muitas das guerras são justificáveis no seu a posteriori - vamos encerrar-nos na avaliação da pertinência moral das Guerras Púnicas, da conquista da Gália? E nisso temos a tendência para contextualizar o passado longínquo, isentando-o do crivo moralista, mas de julgarmos o passado recente. Ora as guerras têm um contexto histórico e a sua justificação passa muito pela sua adequação às ideias vigentes, por serem contemporâneas de si mesmas. E, de facto, as guerras coloniais portuguesas - as três guerras de independência africanas - não têm essa justificação. Eram, foram, anacrónicas. Injustas por isso. E ao dedicarmo-nos às desculpas por "excessos" militares ou policiais, aos "desmandos", às específicas violações dos "direitos humanos" ou da "convenção de Genebra", poderemos aliviar as consciências, as tais sensibilidades horripiladas. Mas ao centrarmo-nos nesses episódios estamos, de facto, a caucionar o geral da guerra, aquilo que seguia segundo os compêndios. Ora o que é de "lamentar" (o que não é "pedir desculpa") são as três guerras. E não os massacres.
Mas isso é muito mais difícil. Pois muito mais radical. E também não dá para grandes slogans... Até porque, honestamente, já passou meio século. É tempo de ombrearmos, nos aviões e alhures.
(Começo assim a emitir o meu podcast - intitulado "O Podcast Mudo" -, o qual terá uma periodicidade algo irregular mas que espero frequente, e será constituído por episódios de cerca de 3 minutos. Espero que possais gostar do timbre da minha voz e da prosódia da minha fala.)
Coisas destas "memórias" do FB, isto de me lembrar que há 16 (!!!) anos cruzei para o 2007 na Ilha de Moçambique. Todos os palermas a quem aconteceu algo (e a quem é que não acontece?) proclamam "a minha vida dava um romance" - e alguns escrevem-no, raios os partam. E eu posso dizer que naqueles tempos vivia um pedaço de guião de filme, "francês", de "autor", se se quiser..., que aqui esquiço, sem entrar num registo intimista, que esse ficará para o tal "romance"..., que nunca escreverei, claro.
Alguns meses antes tinha regressado a Maputo, vindo de um trabalho de terreno, num estado que aparentava calamidade natural, tamanhas eram as hemorragias que me acometiam. E logo cometi o erro, de verdadeiro incauto, de me recolher ao convívio com o Google indagando sobre o que comigo se passava, e nisso percebi que deveria ter um cancro do cólon - o que me incomodou deveras, pois ainda recém-quarentão e pai de uma filha com 4 anos. E com os pais vivos.
Enfim, face ao horizonte tétrico segredei a situação a uma querida amiga - "não dizes nada à Inês?", logo me convocou, "é melhor não, por enquanto, para quê provocar angústias alheias?", "ó Zé!", franziu ela o belo cenho -, a qual logo me remeteu para um médico afamado em JHB (de facto, em Centurion). Acabrunhado, macambúzio, lá fui ao diagnóstico.
O médico logo me sedou e vasculhou. Depois avançou para mim, eu ainda estremunhado, café de filtro na mão, uma mixórdia inútil, e nisso muito atrapalhado com o gutural inglês do africander, esperando o pior, e disparou ele: "você lá em Moçambique come muito piripiri?" "hââ", respondi... "bebe álcool?" "hââ.." gemi até esganiçado, "e no "mato" bebe as águas", "pois, vou bebendo, acaba por ter de ser" (mais no gelo do uísque, mais isso não lho disse). "Pois, você não tem nada no cólon", "o que você tem é hemorróidas" - [sim, eu sei que é assunto tabu para homens, que a rapaziada da minha geração mais depressa reconhece a sua disfunção eréctil do que isto dos borbotos no recto, mas saiba-se, é coisa perfeitamente natural...]. "Tome lá esta pomada", rematou, e em adenda culminou "e tenha cuidado com o que bebe e come"...
Voltei a Maputo. Na época estava num abanão conjugal, separado. Passado pouco tempo chegou o Natal, a família veio à pátria amada. Eu fiquei, estando entre o desconforto da solteirice e o enorme alívio da afinal saúde. Na véspera do Natal meti-me no meu saudoso Ssangyong Musso e decidi ir até ao Rovuma, pois nunca ultrapassara para além do Messalo. Passei a consoada em Inhambane, com amigos, um excelentíssimo casal. Depois - e porque ainda era o tempo do batelão de Caia -, Inhassoro, Quelimane e Ilha.
À Ilha já tinha ido várias vezes, conhecia gente, um punhado de deliciosos amigos até. Decidi ficar uns dias, que ia cansado de tanta estrada sozinho... À chegada bati à porta do já falecido Kamusse, ali sempre meu intérprete. E comecei em andanças. Fiquei 5 semanas!, e só parti porque as aulas iriam começar... O Rovuma?, afinal adiei-o para um qualquer futuro. Que nunca chegou.
Já agora, a cidade estava pejada destes grafitis..., grupos de jovens a louvarem clubes de futebol europeus, J. Bus - o Bush mesmo, que então se embaraçara no também islâmico Iraque - , e universos similares, naquela mescla de macua nahara pejado de portuguesismos amansados com a pronúncia local. Por ali andei, deliciado, alinhavando o que poderia ter sido um texto "anti-póscolonial" (falo das tralhas "teóricas", não do pós-colonial com hífen, das independências).. Que acabei por não fazer, talvez, decerto, demasiado embrenhado naquelas "águas do Índico". Mas ficou-me - e mais uma vez - a ideia e o sentir: o encanto da Ilha de Moçambique não é a pedra-e-cal. Nem os artefactos folclorizados, os "mussiros" e as "missangas". É quem lá vive. Entenda-se, o macuti...
A ver se ainda lá passarei. Que tenho saudades da minha leveza desse tempo. De "viente" deliciado, nisso enérgico. Mas não "encantado".
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