Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Nenhures

40808C3C-96DA-4D0F-B2BE-97AA7ACEA08A.jpeg

(Texto [também] para o Jorge Forjaz, que me escreveu sobre o meu "Descolonizar a Língua Portuguesa" resmungando "Se não te referisses e adjectivasses tanto a esquerdalhada tinhas mais razão" e ao qual eu anunciei "vou-te responder" para dele receber um sorridente "Com direito a resposta? Oh lá lá". Entre viagens e outros afazeres demorei-me demasiado na resposta...)

***

Num postal recente usei o termo "esquerdalhada" (que me é habitual). E logo três amigos me enviaram mensagens, pois com ele incomodados. Nos comentários recebidos (no meu mural de Facebook) também surgiu algum desconforto - e mesmo imprecações. Naquela plataforma a ligação ao texto foi partilhada por outros - o que lhes agradeço - em cujos murais também notei algumas reacções desagradadas, até furiosas. Isto mostra a vigência de um sentimento pelo qual sobre os locutores de “esquerda” não se deve verbalizar menosprezo ou desrespeito pelas suas atrapalhadas ou aldrabadas opiniões.

Reacções ao invés das esperadas face à rapaziada da direita. Sobre esta há dois termos que vão surgindo: o mais raro “direitinhas” - em tempos consagrado em banda desenhada publicada no “Diário”, o jornal do PCP dirigido por Miguel Urbano Rodrigues -, mas que não vinga muito dado o tom pouco ferino que aquele sufixo sempre dá. E o mais habitual - e quase automático - “fascistas” (ou “faxos”), uma evidente desvalorização ética e intelectual.

Ou seja, se eu, ou outrem, diante dos dislates agora até algo habituais daqueles que se propõem decepar genitais alheios, hastear bandeiras nacionais em edifícios oficiais nas antigas colónias ou louvaminhar as inexcedíveis qualidades do colonialismo português (o qual “nunca existiu”, a crermos na douta bibliografia, titulada sem a ironia do texto que glosa), falar de “direitinhas”, de “fascistas” (ou mesmo de “fdp’s” por extenso, como fiz há pouco - quando o professor Ventura inculpou Costa de um duplo assassinato) não tenho ecos abespinhados. E isso não se restringe às peculiaridades do agora CHEGA. Pois sou tão velho que me lembro de ver o tal insulto “fascistas” atribuído a gente como… Franco Charais e Pezarat Correia. Ou António Barreto. E desde então Ferreira Leite ou Vítor Gaspar e um vasto etc. foram assim ditos, e também estrangeiros, estes até mesmo nazis, como Merkel ou Bento XVI. E tais epítetos não colhem apenas silêncios mas mesmo anuências - mesmo entre aqueles que os assumem como meras metáforas (e não são as invectivas, sarcásticas ou insultuosas, quase sempre metafóricas?).

Mas o apreço “neutral” pelo desapreço face à malta à direita é até mais abrangente: nenhum amigo se preocupa quando afloro eu - como aqui o fiz - os dizeres, de facto apenas onomatopaicos, dos negacionistas das alterações climáticas, estes sempre urrando que tal coisa é mito emanado do “marxismo cultural”, deístas pagãos que são, e nisso obtusos crentes de que da divindade Mercado nada de negativo pode brotar. “Sempre as houve”, “dizem que há aquecimento mas está a chover”, expectoram ainda que doutores e engenheiros. E mesmo que pais e avós extremosos das suas “boas famílias” fazem trocadilhos brejeiros com o nome da célebre jovem ecologista sueca, num verdadeiro Cialis deste senil imbecilismo “liberal”.

Tal como não li agravos quando propus o regresso ao útero materno dos energúmenos anti-vacinas do Covid-19 - como, por exemplo, aqui - saídos das grutas mais recônditas do reaccionarismo pimpão, desvairados avessos à intrusão estatal que lhes quis injectar químicos pois entendendo-a escrava das apetências lucrativas das farmacêuticas - ainda que depois não hesitem em encharcar-se (e às respectivas parentelas) em tão dispendiosas quimio e radioterapias que os Estados compram às tais farmacêuticas interesseiras para a eles - e seus próximos - prolongar as verborrágicas vidas. Ou ainda, para último exemplo, quando resmungo contra a rústica inintelectualidade de alguma direita portuguesa, incapaz de avisar um irritante, e de histriónica ignorância, casal nortenho de que a Escola tem mesmo como tarefa Educar Para a Cidadania.

Em suma, neste ambiente é aceitável, e até saudável, usar do sarcasmo para invectivar a “direita” mas é inaceitável, pois ofensivo, escarnecer da “esquerda”. Como se esta, e os seus fiéis, tenha uma universal virtude. Qual uma superior decência e uma acrescida potência.

É um traço interessante porque o pejorativo (e quantas vezes enojado) “esquerdalho” - e o correlativo “grupelho” - são termos que não têm um “pedigree” de “direita”. De facto, emanaram de uma força de esquerda, aplicados às moles de patetas m-l de então, essas que agora se apresentam sob as pestíferas vestes “identitaristas”: tratava-se do feixe de excitados sociopatas que o secretário-geral abordou no seu “O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”, entretanto travestido (ou transvestido, não sei...) num tal de “identitarismo”.

Também por isso esta expressão pejorativa não recai sobre o amplexo PCP. Não só por estas razões históricas mas ainda devido a dados estéticos: mesmo na sua decadente situação intelectual actual - longe vai a época em que o PCP tinha quadros como Luís Sá, Barros Moura, João Amaral, ou Vital Moreira a renovar Marx, para além da tutela de Cunhal, e fica-se agora pelos esparvoados tuítes do tão elogiado António Filipe - o "partido" tem alguma... "correcção formal". Como se uma espécie de quadratura do quadrado, algo que o torna algo imune a algum tipo de críticas mais sarcásticas ou ríspidas: foi decerto por esse desvelo estético, nisso ético, que nesta era de tamanhas retóricas “cuidadoras” das “minorias etnoculturais” puderam os comunistas emanar um comunicado oficial - após a invasão russa da Ucrânia - louvando a excelência das políticas soviéticas relativas às “minorias [étnico-]nacionais” sem que tivessem sequer tremido o Carmo e a Trindade “identitarista”, "multicultural".

Também, fora dos dizeres presentes no espectro partidário, não aplico, nem se costuma aplicar, este tipo de sarcasmo a discursos desenvolvimentistas - de facto muito ausentes da cena pública portuguesa. Mesmo que nestes abundem os utopismos e, bem pior, sejam frequentemente poluídos pela recepção das "causas" e linguajares típicos de alguns movimentos identitaristas ocidentais. É como se a adesão, sob variadas formas, ao ideário do "desenvolvimento humano" blinde algumas das vozes mais impensantes que sob ele se agregam, como por exemplo os palradores do "empoderamento", que nem fabianos se percebem, ou os que mesclam a temática do "género" com as questões da sexualidade, imaginando que o mundo é uma Nova Inglaterra hollywoodesca.

De facto esta “esquerdalhada”, demagógica - e nisso desonesta - ou apenas tonta, e sempre histriónica, não é a “esquerda” mas apenas (plurais) feixes internos à “esquerda”. Por cá muito em voga e muito visíveis dada a descabida influência que têm na imprensa e nas universidades. E tendo alguns agentes de verve fácil muito escapa esta mole ao crivo crítico. Nessa pluralidade loquaz, e abrangência temática, torna-se algo difícil descrever (e assim definir) este cadinho de textos oriundos do “radicalismo pequeno-burguês de fachada identitarista” sem recorrer a laivos de alguns locutores, qual galeria de ilustrações, uma chinoiserie

Mas fazê-lo acabará por ser desagradável. Pois não só eu não leio muitos desses constantes textos idolátricos - até os evito -, como à maioria daqueles a que chego faço-o por conselho de alguns cruéis amigos, malévolos nos seus verrinosos avisos “já viste o que fulano de tal botou?”. Ora isso tem um corolário, pois sou conduzido (deixo-me conduzir) a ler as trapalhadas botadas por gente que conheço ou com a qual tenho conhecimentos comuns, afinal uma pequena “lisboa” do Minho à Madeira. E assim o meu sacar da cimitarra, a volúpia assassina, pode parecer ad hominem. Quando não é, mas sim uma aversão higiénica face a destrambelhados argumentos colectivos individualmente expostos. E, por vezes, mas apenas no caso dos socratistas, um afã sociocida, portanto também colectivo.

Na realidade, mais do que avaliar da hipotética pertinência dos problemas sociais que são apontados ou das soluções que são propostas (quando o são) o que é mais notório é que neste eixo discursivo esquerdalho se tratam de expressões atitudinais, assentes numa vácua superficialidade embrulhada em retóricas histriónicas. O objectivo é sempre o de constituir "grupos"-para-si, entidades mobilizadas para o "activismo", numa burguesa refracção do velho ideário da - agora - "luta das identidades" como "motor da história". Mas ouvindo/lendo os pretensos "intelectuais orgânicos" o que logo se apreende é que na sua grandiloquência surgem como aquilo a que José Cutileiro aludiu no seu "Abril e Outras Transições”, nada mais do que discursos reconhecíveis como “when a man is talking rot”… 

Há três trombos fundamentais nestas vias discursivas, que passo a a exemplificar usando alguns casos que vão vegetando na minha memória. Um é o culto do "construtivismo", a académica ideia - pacífica em si mesma - de que as realidades sociais são socialmente construídas. E que nesses processos - o que é um bocadinho mais discutível - os formatos discursivos (os conteúdos linguísticos, para facilitar) são um material fundamental da edificação das lógicas e das mundividências, assim da miríade de valores e poderes presentes em cada sociedade. Há nisso uma espécie de linear determinismo, como se sociológico fosse, e que vem promovendo esta moda de depuração dos linguajares. Troque-se por miúdos: parece que o governo indiano - agora muito louvado na reemergência geopolítica dos BRICS, considerada fundamental pela esquerda radical para se combater a "episteme" obscurantista "ocidental" - acaba de retirar o evolucionismo darwiniano do ensino escolar. Em Portugal, membro da perversa hidra capitalista ocidental, esse ensino mantém-se, tal como os restantes itens da ciência contemporânea. No entanto para esta esquerda identitarista, prenhe de afã purificador da língua, tudo funciona como se o ensino (escolar e por outros meios) da ciência de nada sirva, pois continuamos a chamar "nascer do Sol" à alvorada e "pôr-do-sol" ao ocaso. Ou seja, crêem que apesar de alguns esforços pedagógicos as palavras nos condenam - e neste caso à mundividência da crença geocêntrica, pois as amarras linguísticas nos farão pretéritos a Copérnico e Galileu.

Tal concepção nota-se no eixo feminista - em sentido amplo, a defesa da igualdade e equidade de mulheres e homens, algo que é historicamente uma matéria de “esquerda”. Um dia li no "Público" um artigo de uma cientista social - muito louvado pelas minhas colegas moçambicanas especialistas em questões de Género, decerto que por conhecerem a autora - a clamar contra o universal masculino gramatical, como sendo este um instrumento de reprodução da opressão falocrática. Reparei que a senhora tinha aposto como epígrafe o Magritte do “ceci n’est pas une pipe” - estava eu a viver na Bruxelas do artista, o que mais me chamou a atenção. Ora a autora feminista passava o artigo a defender que “cachimbo” deve ser cachimbo - no tal ditirambo contra as algemas gramaticais, as masmorras sintácticas e os cadafalsos semânticos que considera serem e promoverem os malvados poderes -, sem perceber a sua gritante contradição. Não pude evitar pensar, e por várias razões, que tudo aquilo (preocupações gramaticais, textinho ufano e aplausos dos cientistas apoiantes) era uma esquerdalhice tonta, típica da esquerdalhada. E é apenas um exemplo de incultura aplaudida pelas "elites" "intelectuais", do ambiente geral cristalizado no patético uso das "Todes" ou "Todxs" e afins por burguesotes que assim se imaginam "radicais" e, mesmo, "cidadãos". E o passo avante desta deturpada perspectiva "construtivista" é o que agora grassa, a vertigem censória, a purga que se faz aos textos do passado e os limites censórios àqueles ainda em produção, convocados a associarem-se a determinadas "sensibilidades" em voga...

Mas este rumo não passa apenas por patetices como este exemplo que dei. Há muita demagogia, no rumo de um verdadeiro aldrabismo. Um dos vectores interessantes nestes "construtivistas" de cardápio é o facto de associarem esta crença de que os termos têm - por si só - efeitos sociais (perversos) à vontade de instaurarem a discriminação oficial de categorias raciais, uma evidente contradição. O debate sobre políticas equitativas é salutar e fundamental. Uma das dimensões desse debate - o qual em Portugal é muito frágil por deficiência intelectual societária - é o que opõe o secularismo comunitarista da esquerda identitarista aos adeptos da laicidade universalista, defensores de uma cidadania republicana. Os primeiros querem fragmentar a população em entidades discretas de cariz “étnico” e “racial” (ainda que não as saibam definir) para promoverem “discriminações positivas”. Este é um debate interno à “esquerda” mas também com a “direita” e o “centro”.

Ora, também no famigerado “Público”, li há anos um artigo - de alguém que se subscrevia com o nome da instituição científica estatal que o emprega (ou seja, convocando o empregador para sedimentar as suas opiniões políticas, uma manobra rasteira...) - no qual se defendia o tal recenseamento “étnico-racial” afirmando “numa sociedade aberta o Estado deve poder perguntar tudo” e “cumpre aos cidadãos comprovar a razão de não quererem responder”. Ou seja, o Estado deve exigir às pessoas que se identifiquem e situem segundo classes "étnicas" e "raciais", se pensem e actuem consoante tal, e sejam objecto de políticas estatais peculiares sob essa condição. Sendo assim a tal "sociedade aberta". A mim, diante desta torpe manipulação da célebre expressão de Popper, crucial no ideário liberal, ocorreu-me o óbvio, que o artigo era uma esquerdalhada, abjecta demagogia, talvez típica do seu autor, decerto que disseminada entre os seus admiradores. E convém perceber que este fervor racialista - apresentado como factor de equidade - implica a utilização das tais palavras que manipulam as mentes (como sempre assumem em relação a outros assuntos). Assim sendo, para estes esquerdalhos eu estou errado quando digo "todos" ou "todas" e estou errado quando não digo "negros" e "amarelos" - como se houvesse discriminações a fazer e outras a evitar. No fundo, o que este esquerdalhismo quer é sedimentar, enquistar, entidades conflituantes. E entretanto evitar que um cozinheiro "branco" apresente uma receita de moamba na televisão - e a desfaçatez é a minha. E não a dos esquerdalhos que se congregam em torno destes dislates.

Um segundo trombo desta "esquerda" radicalizada é o seu evolucionismo, metástase do seu marxismo vulgar. Pois nela habita a crença de que as sociedades evoluem (se direccionam num sentido positivo, pois é preciso traduzir isto num país onde amiúde se ouve o oxímoro "evolução negativa"), num rumo relativamente pré-determinado, "progressista" dizia-se. Nesse marxismo vulgar vigente o tal trombo é a crença de que as sociedades ocidentais, as do capitalismo pérfido, esgotaram as suas capacidades de se transformarem e daí a necessidade de uma qualquer "transição". A efectivação desta crença do actual "imobilismo" por "exaustão" social, conduzindo a um "atavismo", tem agora um tópico em Portugal - para este "esquerdismo", o tal "esquerdalhismo" folclórico, a sociedade portuguesa é um mero e malévolo epifenómeno do passado recuado.

Daí o surgimento, cinquenta anos depois das independências das antigas colónias, de uma série de paladinos da necessidade de afirmar o país como fruto de uma história escravista, como se esta moldasse o Portugal actual, lhe estivesse no âmago. A vontade é simples, transformar o ensino da História e a consciência nacional numa traumatizada versão de nós-próprios, de facto seguindo o desígnio de apoucar a identidade nacional, e nisso a comunidade nacional - pois esta dada a capitalismos e até conservadorismos. Um projecto até contraditório num país que nem tem um ensino patrioteiro nem alberga projectos de expansão nacionalista ou neo-colonial.

Parte deste rumo vem de uma até pungente condição, o facto de alguns intelectuais (historiadores e afins) terem dedicado parte das suas carreiras de investigação a temáticas da expansão portuguesa em África (e no Brasil) e de ansiarem por um estatuto de "intelectuais públicos". Algo para o qual sentem (erradamente, diga-se) necessitar de capitalizar, usando-o linearmente, o que estudaram sobre séculos prévios, atribuindo as características que nesses identificam às realidades actuais. O interessante é que se forçam a presença actual das categorias existentes na sociedade portuguesa de antanho são incapazes, ou disso desinteressados - por alguns motivos ideológicos -, de vasculharem nas sociedades africanas actuais alguns vestígios dessa realidade escravista ali duradoura durante séculos.

O que demonstra que, por mais punitivos que queiram ser sobre o passado e o presente português, são incapazes de ultrapassar um traço típico nacional - o da distracção face a realidades outras, sempre centrados no nosso país (isto é algo que esmiucei num texto longo, "O Olhar Português"). Ou seja, estes doutos intelectuais, 50 anos depois das independências das colónias portuguesas, sobre África pouco ou nada dizem, apenas lhes importam os ecos (demoníacos ou gloriosos) da história pátria. E é isso que os torna "intelectuais públicos", "críticos". É evidente que há diferenças internas neste eixo de discursos, entre os que analisam a história portuguesa, na sequência do que fizeram alguns da geração anterior - quantas vezes seus mestres -, e os que se limitam a gesticular - como alguns que, também no "Público" (sempre o palco privilegiado deste coro), defendem a "intervenção" "anti-colonial" sobre o património artístico. Mas, e o que é uma deliciosa demonstração da pantomina desses autores, daqueles itens patrimoniais que estão na rua, pois isentam os itens alojados no interior de edifícios desses propósitos "intervencionistas"...

O terceiro trombo, evidentemente ligado aos anteriores, é a afirmação de que o nosso país é um extremo caso de racismo, que "Portugal vive num apartheid", como clamava (no "Público", claro) há anos um antropólogo defendendo a inenarrável Katar Moreira (a tal da moamba racializada). Talvez por isso possa ter eu visto uma activista, apresentada como senhora professora, na televisão defendendo o "Mamadu" - assim como um sindicalista em apoio à "Isabel" (Camarinha), um autarca ombreando com o "Rui" (Moreira), um académico louvando o "António" (Sousa Pereira), um camarada subscrevendo o "Francisco" (Louçã), etc. E nessa candura, até pungente, afirmando a pés juntos que o racismo é monopólio dos brancos, explicitando querer ensinar isso à audiência televisiva enquanto tentava balbuciar uma recensão oral de um qualquer "paper" onde aprendera a atoarda, tão "decolonial". Pobre jovem senhora, com todos os sinais físicos e verbais da boa pessoa, cheia de boas intenções salvíficas, avatar de avoengas missionárias, nem sabia o que significava "uigures"! E ali estava defendendo, pedagógica, um conjunto de sábias (porque produtivas) patacoadas. 

Esquerdalhada? É isto, entre inúmeros, constantes, exemplos, provindos de algumas almas caridosas ou mentes fabianas misturadas com uns mariolas "activistas" - estes sempre com "um olho no racializado, outro no burro". De facto militantes da superficialidade, eles sim algemados à "atitude". Que julgam certa ou isso lhes convém no mercado estatutário.

Há uns anos dediquei um postal a uma querida amiga, que senti demasiado sensível a alguma daquela verve esquerdalha. Tinha até a ideia de lhe dedicar uma série de postais, procurando demonstrar-lhe os chorrilhos de asneiras convictas que ia lendo por cá. Mas depois desisti, que há tanto mais em que pensar. Então, sobre a superficialidade esquerdalha e suas patéticas atitudes, ficou só aquele postal: "O Corredor", minha memória de quando trabalhei na África do Sul. 30 anos depois o mundo mudou bastante. Mas não o esquerdalhismo, seus ademanes, trejeitos. E objectivos. Os quais são, como antes o foram, malévolos. Por mais roupagem garrida que traga.

No fundo, no fundo, a diferença é mais ou menos como olhar para este mural que encontrei patente na construção de um prédio de Bogotá: "Obrero Sexy". Que cada um interprete à sua maneira. De modo mais ou menos em voga...

são-martinho-do-porto.jpg

 

(Jô Soares e casamento português)

A propósito disto das "sensibilidades" ofendidas e da "urgência" em higienizar os legados textuais (e outros) para, dizem, evitar desmandos e desvalorizações sociais, lembrei-me desta "piada de português" (muito brejeira, aviso os ouvidos frágeis) do João Soares. Só há pouco a conheci e ri-me imenso, apesar do/devido ao tom corrosivo que nos é dedicado. Ri-me apesar de saber do abrasivo do humor brasileiro contra todos nós, da sua origem xenófoba (e elitista) - recordo um belo artigo sobre a emergência na imprensa de meados de XIX destas invectivas contra os portugueses, publicado numa "Oceanos" de 2000, coordenada por Robert Rowland... Ri-me porque tem piada e porque o contexto o permite (e não é ilegitimado por qualquer patente ou presumida intenção), e ele é omnipotente nestas coisas. Tal como os "ouvintes" devem ser minimamente esclarecidos para se contextualizarem.
 
Nestas coisas de me ofenderem a "sensibilidade" (de me "racializarem") lembro dois episódios: há mais de uma década um casal moçambicano convidou-nos para jantarmos com um outro casal brasileiro, quadros de empresas recém-chegados a Maputo. Assim foi, eles simpáticos, cultos, conversadores. Mas de repente o marido contou uma "anedota de português". Não foi mal acolhida, pelo que seguiu um vasto repertório no tema. Como é evidente nunca mais convivemos com eles, desagradados num "que é isto?", e foi pena pois até poderia ter sido "o início de uma bela amizade". Mas a minha sensibilidade fora demasiado "racializada".
 
Décadas antes acontecera-me outra, ainda pior. Aos meus 14/15 anos, no Verão de São Martinho do Porto, uma família francesa (naquela época os turistas eram quase todos franceses) alugou uma barraca balnear perto da nossa. A filha era linda, loura, e aos meus anseios já se parecia com a Marion des Neiges dos "Pequenos Vagabundos", e o seu irmão e o amigo logo acamaradaram nos jogos de bola, mergulhos e outros que tais. Uns dias passados foram almoçar lá a casa, encantados com a simpatia da minha mãe - até porque ela era verdadeiramente bilingue - e com a sisuda placidez do meu pai (que devia estar a fruir o estado basbaque deste seu filho, assim notando-o a crescer "como um homenzinho"). Depois fui eu almoçar lá a casa, recebido como se adulto fosse pelo messire ali veraneante e sua extremosa mulher. À mesa a conversa fluiu, eu no meu francês pausado mas melhor do que o de agora, eles elegantemente acompanhando o meu ritmo. Entre conversas, e entre eles, o pai pediu à bela filha, sentada do outro lado da mesa, uma qualquer coisa e eu, de imediato, lha passei. Para sua sorridente surpresa, pois entendera eu não só o léxico mas, acima de tudo, a velocidade parisiense da fala... Ao que respondeu ela, talvez ufana do jovem pretendente, talvez precisando de justificar aquele convívio "inter-cultural", "ele é português mas é inteligente!"... Eu passei-me, mantendo a compostura diante dos pais, mas passei-me mesmo. Pior ainda com os outros rapazes a tentarem justificar a "gaffe" mas nisso, atrapalhados, metendo les pieds par les mains... Enfim, o pai lá soube fechar a questão, elaborando sobre a grandeza e a excelência lusa (e após a minha saída deve-se ter rido, vero gaulês, do sanguíneo petiz que lhe entrara porta dentro).
 
Ora esta minha sensibilidade foi reactiva apesar de não ter eu interiorizado (ou sofrido) qualquer pressuposto sobre a minha inferioridade intelectual, social, cultural - ou mesmo "racial" ("étnica" mascara-se agora). É pois normal que outros, provenientes de contextos recorrentemente desvalorizados (por exemplo os "parolos" que Augusto Santos Silva despreza), sejam mais epidérmicos com algumas expressões que vão enfrentando.
 
Por isso as nossas expressões e as nossas sensibilidades são educáveis, aprimoradas - só um imbecil se ri hoje daquele vil filme "Os Deuses Devem Estar Loucos" que há 40 anos foi um sucesso mundial, ancorado no humor racista do apartheid. Mas isso não implica andar a apagar o passado, a emendá-lo. Hoje a Agatha Christie e a Enid Blyton, amanhã o Engels e o Hegel (que vendem menos).
 
Enfim, mas de tudo isto o fundamental que retiro é que foi o Joaquim, um tipo do Porto, que depois conseguiu trocar uns beijos mais intensos com a Falbala de São Martinho do Porto. Não foi a última vez que isso me aconteceu, nem nada que pareça. Mas ainda me dói...

agatha.jpg

Agora todas as semanas segue mais um "expurgo", "protector" das "sensibilidades", "racializadas" ou quejandas. O mais recente  é com os livros de Agatha Christie, toca a retirar-lhes termos que possam ofender alguns trastes - é a instrução dada pela sua editora, atenta aos temíveis efeitos actuais das agressões cometidas pelos pressupostos de época de Miss Marple, Hercule Poirot e restantes personagens daquele pequeno emaranhado pós-vitoriano, tão pequeno-doméstico de facto.

Tendemos a confundir estas trapalhadas - o outro dia foi notícia que uns rústicos americanos, lá de uma aldeia de fundamentalistas cristãos, despediram a directora de escola porque havia mostrado uma obra-prima renascentista aos petizes, ofendendo-lhes as progenituras devido ao pequeno pirilau aposto por Michelangelo ao "David". Gente do mesmo universo que volta e meia é notícia por querer impor o ensino do criacionismo nas suas escolas locais - efeitos directos da peculiar administração escolar dos EUA e consequências do molde de secularismo (comunitarismo) desbragado que vigora naquele país. E que por cá os esquerdistas querem assumir - a maioria dos quais sem mesmo perceber que é disso que falam, tamanha a indigência intelectual que os caracteriza. 

Mas estas “depurações” literárias que se vão acumulando têm outra dimensão… Não provêm de minorias social e geograficamente excêntricas. Vêm embrulhadas no capital “cultural”/“académico” dos proponentes e defensores e estão a penetrar nas administrações dos grupos económicos editoriais. Tornam-se “elite”, “norma”. E há imbecis à nossa volta que os defendem…

lou reed.jpg

A minha geração foi abalroada pela heroína, e nem preciso de juntar grandes detalhes memorialistas para o comprovar. Não naquilo da implosão de muitos dos heróis (Coltrane, Hendrix, Joplin, Morrison e tantos outros). Mas no descalabro de amigos e vizinhos, desde os finais dos 1970s, muitos que por então se foram, alguns até de propósito, outros que se rearranjaram, "sabe Deus" com que esforços, e tantos destes para virem morrer no cabo dos seus cinquentas, dos fígados devastados. Para quem não se lembra, ou faz por isso, bastará lembrar a Lisboa dos 1990s, carregada de já velhos junkies penando pelas ruas, arrumando carros, perseguindo as carrinhas da metadona...
 
Entretanto, nós aqueles que havíamos seguido doutro modo, uns mesmo saudáveis, outros nos mares de álcool apropriados à nossa nação de marinheiros, ou nas multiculturais ganzas, quanto muito aqui e ali polvilhadas de uma chinesa "só para experimentar", e mesmo alguns já adult(erad)os como aburguesados encocaínados, fomos crescendo e procriando. Nisso deparando-nos com aquele "saber de experiência feito" do nosso Duarte Pacheco Pereira, e nisso a angústia do que viria a ser com os nossos queridos. A heroína perdera o prestígio social, ainda que resista no mercado, mas haviam surgido várias novidades, sintéticas, até legais.
 
 
(Lou Reed, David Bowie, I'm Waiting for the Man, Live, 1997)
 
Ora nesse longo - e preocupante - entretanto, por mais angústias que houvesse, ninguém se lembrou de exigir a Lou Reed que apagasse esta célebre "I'm Waiting for the [my] Man" (ou aquela "Heroin" ou tantas outras, como as que me são fundamentais "Caroline Says" I e II). Ninguém, com dois dedos de testa, quis que amputasse ele o seu percurso, a sua arte, a sua refracção poética do que vivia, em nome de qualquer "causa", justa ou espúria que fosse. E também por isso, para que não me digam que também então se "cancelavam" textos, aqui deixo uma versão feita em 1997, trinta anos depois dos Velvet Underground terem irrompido e rompido com quase tudo o que vigorava.  Não é uma das melhores, apesar de Bowie, e por isso para uma de píncaros deixo abaixo uma majestosa do John Cale, um pouco mais antiga.
 
Pois mesmo com a maldita heroína a rebentar à nossa volta o que se pedia e pede aos nossos é que a evitem - "por favor, não entres num carro onde haja gente com os copos, não uses químicos, por favor, só isso!". Mas também "ouve Lou Reed [e John Cale], e especialmente aquelas Caroline Says I e II, já agora". E não que se apaguem textos que não a denunciem. Porque os poetas não se amputam. E porque são tão mais importantes quando dizem aquilo que "não fica bem", para não estar eu aqui com prosápias ensaísticas.
 
Lembro-me disto ao ler que o magnífico Chico Buarque anunciou a "reforma" (o cancelamento, para ser explícito) da bela "Com Açúcar, Com Afecto", devido às pressões feministas. Encho-me de compaixão pelo ancião.
 
 

(John Cale, "I'm Waiting for the Man, Live, 1984)

xadrez.jpg

Recebo várias mensagens com uma denúncia do Xadrez, devido ao seu conteúdo racista, machista, antropocentrista e capitalista. São dislates de quem nem o joga nem lhe compreende os sentidos implícitos. Pois o Xadrez é o jogo mais consentâneo com os bons valores actuais: é a apologia do matriarcado, sendo também memória dessa era histórica, pois nele domina a Mulher-rainha, que tudo e todos come, protegendo o frágil Homem-rei, eunuco passivo, encastrado num quase imobilismo. É, e muito, a expressão da verdade decolonial, pois todos os jogos demonstram a agressão dos brancos face a bem ordenadas e pacíficas sociedades dos negros, condenados à resiliência em esmeradas estratégias defensivas. É também expressão do sentir ecológico, na afirmação da irredutível riqueza da Natureza, demonstrada na criatividade única dos rebeldes movimentos do Animal-cavalo. E, finalmente, afixa os direitos de género, não só ao consagrar a elegância arguta do cruising gay, nesses "Bispos" em lestas diagonais debicando meros peões, marujos e magalas das forças adversas. Mas mais ainda na sua proposta filosófica até radical, anunciando o transgenderismo como óptimo existencial, pois tudo estrategizando para promover a cinzenta peonagem em exultantes e ariscas Rainhas.
 
Parai pois com essas afrontas ao iluminado Xadrez. Jogai-o. Apreendei-o.

Gerente

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Contador

Em destaque no SAPO Blogs
pub