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Nenhures

Nenhures

22
Ago24

As "Pessoas Que (Não) Menstruam"

jpt

O diretor da Universidade de Verão do Partido Social Democrata (PSD), Carlos Coelho, discursa durante a sessão de encerramento da Universidade de Verão do partido em Castelo de Vide, 04 de setembro de 2022. NUNO VEIGA/LUSA

(Foto de Nuno Coelho, Lusa, retirada daqui)

Há duas décadas conheci em Maputo uma jovem antropóloga espanhola, competente e simpática, que ali leccionava com agrado discente e apreço colegial. Um dia, em conversa decorrida no café do "campus", aludi - e decerto que com amoroso desvelo - à "minha mulher". Ela saltou, inopinadamente, furiosa com a utilização que eu fizera do possessivo, cenho (até belo) franzido, voz alterada, invectivando-me "és o dono dela? é tua propriedade?".

A nossa relação era curial, naquele pacífico tom de colega, e aquela sua reacção extravasava-a por completo. Eu sabia-a dada aos execráveis nacionalismos - dos daquela turba que se diz "catalã" e nisso geneticamente mais aparentada com os franceses do que com os portugueses e marroquinos, entre outras lérias. E de pendor feminista - ideário louvável, ainda para mais naquele país austral, onde, tal como na esmagadora maiorida das sociedades, a igualdade de direitos e a equidade de oportunidades é um necessário desiderato, mas ainda bem longínquo... Mas que me agredisse assim - apesar de ser eu um verme masculino e um desprezível mouro independente -, com armas sintácticas e semânticas, foi-me surpreendente.

Avanço que detesto quando algum não falante de português como língua primeira me vem dizer, doutoral, como devo falar a minha língua - como aquela espanhola naturalizada portuguesa por via de casamento que gritava, mão na anca, que a devíamos chamar "presidenta", "colona" miserável, disse-a, entre outras mudas alusões à comercialização dos seus dotes físicos. Entenda-se, desses alterfonos aceito correcções e propostas, mas não mandamentos linguísticos. Tal como detesto estrangeirismos inúteis, pois desprovidos de conteúdos semânticos - como o "seivar" no lugar de "guardar" ou "gravar", o patético "deletar" em vez de "delir", ou o insuportável "link" como "elo", para exemplos. Já para não falar dos inúmeros que são meros arrivismos guturais, a julgarem-se cosmopolitas. Não é isto nacionalismo linguístico. Mas apenas a consciência de que nem tudo o que vem "lá de fora" é de oiro. Aliás, nem tudo o que desse "lá" por cá aporta reluz...

Mas apesar de tudo isso, e porque estava num bom dia, à minha colega não respondi desabrido, mas sim sorridente. O que lhe piorou a disposição, pois as feministas quando estúpidas e/ou ignorantes - e "ele" há-as - sentem como machismo (o que chamam "mansplaining") a explanação ponderada e eficiente da sua ignorância e/ou estupidez. Avisei-a pois de que quando o amor da minha vida se me referia como "o meu marido" não estava a afirmar-me como sua propriedade, qual escravo (ainda que eu dela me sentisse assim, e disso ufano, na escravidão voluntária que alguns historiadores referem). E aduzi que quando tratava alguém, respeitosamente, por "Senhor" ou "Senhora", ou mesmo "Minha Senhora" não me estava a reclamar seu servo ou lacaio. Não ficou ela convicta, a conversa ali morreu, lembro apenas que um antes apalavrado jantar em nossa casa com ela e o "companheiro" (decerto seria esse o estatuto) não se veio a realizar, por mútuo esmorecimento de vontades.

Leio agora que a Pessoa Que Não Menstrua Carlos Coelho - um antigo excitadinho da jsd, que pelos vistos 40 anos depois continua na politiquice - vem defender a Pessoa Que Menstrua (ou Menstruou) actual ministra da Juventude. Ambos repudiando a utilização dos termos "homem" e "mulher", considerados vilanias anacrónicas, pois coisas do "antigamente". E afirmando ser necessário seguir as instruções vindas "de fora", o palavreado das "organizações internacionais".

Diante disto o que é que um tipo diz a este ex(?)-jotinha? Um mero "vai-te menstruar, pá!"? Ou explica-se-lhe, com verdadeiro mansplaining, as matérias do conteúdo social (semântico) da língua? Hum, duvido que esta pessoa desmenstruada, mero jotinha profissional, chegue a tais compreensões... Quanto à menstruada ministra, de qual nunca ouvira falar, presumo que seja da mesma estirpe. E é esta tralha humana que se julga "atenta". E, ainda pior, que nos governa.

15
Jul24

Questionário às pessoas que menstruam

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A Direcção-Geral de Saúde acaba de lançar este questionário sobre saúde menstrual, "para o qual convida à participação de todas as pessoas que menstruam."
 
Assim mesmo, "pessoas que menstruam"! Fui ler o questionário, a introdução e as 20 perguntas. Muito avisadamente em nenhum momento são essas pessoas insultadas com o anacrónico - e até vil - termo "mulher(es)".
 
Não digo mais nada, não vão algumas "pessoas que mentrua(va)m" das minhas relações próximas aborrecer-se comigo.

15
Jun24

Euro-2024: Allez la Belgique!

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Característica histórica fundamental do pensamento "ocidental" (termo que sempre uso na sua extensão geográfica a la Wallerstein) é a sua constante e radical autocrítica. Por isso mesmo sempre incompleta, reformulada, verdadeiramente intensificada. Nisso também incluindo a (auto)devastação política das múltiplas formulações que vêm sendo sistematizadas. Poderia dizer que fundamentar esta afirmação não cabe num postal de blog. Mas ainda que sendo isso verdade, é mais honesto reconhecer que para tal fundamentação se exige muito mais do que o meu saber. O qual, mesmo que parco, é ainda assim suficiente para reconhecer a legitimidade da asserção.
 
Este preâmbulo serve apenas de peanha para dizer o meu desprezo por este aparente criticismo actual, superficial e folclórico, dito "woke". Ou, se em versão académica, mascarado de "decolonial", mesmo "póscolonial". É um corpo textual que parece socialmente relevante a quem se deixe enredar em algumas "bolhas", segmentos digitais animados pela esquerda "mansa" sita na comunicação social, em nichos académicos das humanidades, e suas associadas movimentações "artísticas", nas ong's subsidiadas pelos... Estados. E refractado em pequenos partidos de extracção comunista, ditos "pós-marxistas".
 
Nesses núcleos profissionais depauperados esta via "contestatária" vai parecendo que "paga bem" aos seus "activistas", o que é uma verdadeira alienação (sim, a la Marx) desses agentes. Pois tem recompensas estatutárias (algum reconhecimento entre as moles de "activistas"; afectos alheios ditos "respeito"; reconforto identitário; e, até, "seguidores" internéticos...). E concede (pequenos) privilégios económicos (a selecção para alguns, poucos, empregos; subsídios laborais avulsos; e coisas mais comezinhas, como viagens profissionais avessas à temida rotina quotidiana, financiamentos a ou aceitação de modestas publicações, para exemplos mais frequentes).
 
Estes locutores têm tópicos, que são mais do que agenda ou mesmo jargão, são verdadeiros símbolos que se sonham signos. Os quais servem para afirmar a adesão a uma "omnicausa", pois brandindo um desses tópicos se apela à dedução alheia da partilha de tantas outras causas, à pertença a uma "mundividência" "activista", coisa a qual se diz "interseccionalidade". Um, muito propalado, é a aversão ao género linguístico, um "importante" debate que ocorre: são os meneares dos "X"s ou "@"s ou, até pior, lembro aquilo da "a etnógrafa", "a antropóloga", que há dias repetia em conferência um respeitado professor, proclamando assim a opção pelo "universal feminino" - e eu, em surdina, deprimindo-me enquanto resmungava sucessivas imprecações num também "devia era ter estudado economia ou direito...". E isto, já agora, antes de, e depois de tantas diarreias sanguinolentas a norte do Zambeze, ouvir ali loas às virtudes da "matrilinearidade", qual avatar do matriarcado, entenda-se.
 
Outro tópico é o da vantagem cognitiva (e assim ética) da homossexualidade: "sou feminista... e assumo que gosto muito de levar no cu", escrevia há anos um intelectual socratista. Mas quando eu me deixo rodear dos seus (semi)admiradores, ou quejandos "activistas", e proclamo o meu feminismo (pela igualdade de direitos, equidade de oportunidades - e esta permite, liberalismo à parte, a existência de políticas indutivas), associando-o às minhas (até saudosistas) apetências sexuais, logo os "póscoloniais" se incomodam, até ao "por favor, cala-te...!", em esgares atrapalhados, quando chego às hipérboles da lascívia pós-cunnilingus. Pois para isso, para enfrentar o desprezo sarcástico, já não lhes chega a "interseccionalidade"...
 
Outro tópico constante é a afirmação do omnipresente e frenético racismo, claro que branco, pois comumente associado à (ontológica) inexistência de outros racismos. - "Portugal é um apartheid", clamava no jornal Público um colunista, ali colega da presidente da Junta de Freguesia dos Olivais.
 
Charneca de todo este pensamento silvestre é o carnaval anacrónico da refutação do pensamento passado, científico, filosófico, artístico, literário que seja. Tudo é dissecado em busca da malvadez e abrenunciado como factor causal de horror vivo actual. Nesse crivo nada escapa - até um autor como Mark Twain (!) é visto como necessitando de ser expurgado... O passado (se "branco", claro) é mau!
 
De toda essa tralha o que mais me irrita - e que mais considero denotativo da militante mediocridade deste "activismo" - são as críticas, queridas como letais, ao Tintin de Hergé. Sim, porque Tintin me é família, com ele cresci, lendo-lhe os álbuns em francês antes de saber ler, coleccionando desde o princípio a revista semanal, elegendo desde logo o capitão Haddock como verdadeiro alter ego. Por nele ter aprendido a reconhecer esses tantos trinados do "eu rio de me ver tão bela neste espelho". Por tudo isso tanto me irritam esses jornalistas "culturais", "críticos" de banda desenhada, lentes universitários, "activistas" múltiplos, em potlatchs de anacronismo ignorante a invectivarem Hergé, o colonialismo racista em Tintin. Incapazes de perceberem a evolução intelectual do jovem Georges Remi? Nada disso. Recusam essa via pois não lhes "dá jeito" ao perorar "activista". Pois, entre tantas coisas, se descobrem agora "devolução" ou "reparação", como poderão lembrar "As 7 Bolas de Cristal" (1943!!!!!) ou a sequela "O Templo do Sol"? Ou o tão pioneiro que até excêntrico na época "Carvão no Porão" (1956) - preferem clamar contra os "lábios" das personagens negras, os "estereótipos", choram. De facto, bem no fundo, não perdoam a Georges Remi a absoluta clarividência, a radical autocrítica do "pensamento ocidental" aposta no seu final "Tintin e os Pícaros". No qual desnudou o pérfido guevarismo, esse que habita a mente destes "críticos" de pacotilha.
 
Por isso é bom evitar essas bolhas. Da mansidão que se quer tonitruante, se diz bem-pensante. E ver o mundo, discutindo-o, fruindo-o. Nisso melhorando-o. Com pensamento, crítico e até radical se necessário. Sem folclorismos. "Interseccionais" ou similares.
 
E nisso, nesse afã pelo mundo, na sua rugosidade, muito para além das tais "bolhas" esparvoadas, saudar a magnífica saída da Selecção de futebol da Bélgica, os "Diables Rouges" neste Europeu-2024. Aparecendo à Tintin!!!!!
 
Assim sendo? Allez la Belgique!!!!

28
Jan24

Mais Um Beijo Pecaminoso

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Há algum tempo o mundo, aliás o "ocidente", cansado da guerra na Ucrânia e desatento a outros guerreares, debruçou-se com ira e furor sobre uma beijoca do señor Rubiales, e a esse propósito de uma formosa campeã se fez mártir desvalida e demonizou-se o histriónico prócere da bola.

Em toda essa argumentação, explícita ou até implícita, notei hoje durante o parco almoço, tabuleiro na mão diante da tv, que faltou um item. 

Pois já aqui terei referido o algum apreço que tenho pelo filme romântico Notting Hill (1999), o qual teve um grande sucesso internacional e que, decerto por isso, continua a ser transmitido nos canais televisivos, até em horário indiscriminado (hoje em plena hora de almoço). Ora acontece que perto do final, numa cena que é o verdadeiro  clímax do filme - a conferência de imprensa em que William (Hugh Grant) pede perdão a Anna (Julia Roberts) e esta lho concede - há esta agressão de Bernie (Hugh Bonneville, depois celebrizado pela sua actuação no folhetim "Downton Abbey") a uma anónima personagem feminina. Bernie, eufórico com o desenlace amoroso do seu amigo, agarra vigorosamente as faces da referida personagem feminina, e "rouba-lhe um beijo", como antes se dizia...

Este é um problema que a actualidade exige enfrentar. Deverá esta cena ser retirada do filme, de forma a que o contexto romântico, com tons de comédia feliz, não naturalize, legitime, o acto agressor? Ou deve ser mantida a totalidade do filme, respeitando-se a obra, mas impedindo que ela seja transmitida sem qualquer contextualização, em qualquer horário e sem aviso prévio aos espectadores? Confesso que não tenho opinião final. Mas, sem dúvida, urge actuar sobre este corpo delituoso.

(Versão de postal que há meses colocara no Delito de Opinião mas que me esquecera de aqui colocar)

27
Jan24

O Pensamento "Woke"

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Vejo o "E tudo o vento levou", que há muito não revia. Chega agora numa cópia restaurada há cerca de uma década, a avivar-lhe, mesmo que em mera televisão, algum do brilho fílmico que incendiou os cinemas aquando do seu aparecimento, fenómeno que foi. Lembro-me, vagamente, da primeira vez que o vi, petiz junto à minha mãe em cinema de grande tela - talvez o "Monumental", bem antes deste ser uma vulgata envidraçada de vendilhões do templo, talvez o "Império", também antes deste ser um templo de vendilhões.

Ela adorava o filme, percebi depois e lembro agora, saudoso, que por venerar Scarlett, feita arquétipo de pessoa, suplantando-se entre a candura e a estratégia, numa franqueza ardilosa, símbolo da mulher adequado ao circundante, mais necessário de afirmar em tempos já tão distantes que a boa língua portuguesa sobrevivia sem patacoadas como "resilência"... Ao longo dos anos regressei ao filme algumas vezes, percebendo que - afinal - articula o dramalhão comercial com o desfazer dos aparentes estereótipos, pois não só desfraldando as fraquezas masculinas como escorrendo algum sarcasmo com o estertor daquela nada bela "Belle Époque" escravista. Num filme de guerra sem guerra, assim sem heroísmos encenados, nisso subreptícias justificativas...

Mas ontem nem pensei nisso. Sexta-feira à noite fiquei a ver o filme ao lado dela, Marília, enquanto o meu pai António ia lendo na sua poltrona, alheado como (quase) sempre da televisão. Tinham vindo passar o serão, agradados com a visita que lhes fizera de manhã no cendrário dos Olivais - onde acorrera por razões outras, - tendo-me demorado, ali, junto ao que deles me resta. Até me sentir qual o Anthony Hopkins no final do "O Pai" que vi há dias, que foi o sinal para partir, que nada é bom em demasia.

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Depois do tão esperado e obrigatório "After all, tomorrow is another day", a mãe foi-se deitar e fiquei, como é habitual, de conversa com o pai. Ele disse-me que estou a fumar demais e, como é óbvio, resmungou com a pepineira do "Gone With the Wind". Foi o (por mim ansiado) sinal para politizarmos. Precipitei-me para o controlo e puxei o filme atrás - coisa que ele nunca faz, estranhando estas novas tecnologias - até ao princípio. E logo concordámos no ditirambo contra este pensamento "woke", paupérrimo arremedo de reflexão. Tanto barulho fazem os seus "activistas" para expurgar a história, para tutelar mentes, para "analisar" o "abissal" mundo. E para apenas saracotearem coisas como esta: enfrentar um filme destes, com o impacto que teve, quase quatro horas de filme, num argumento com as camadas que tem, e julgam relevante e necessário anunciá-lo como "produto da sua época e retrata preconceitos raciais e étnicos", como se houvesse algo que não o seja. E é com esta pobre mentalidade que se agitam, ufanos na crença de que "para criar um futuro melhor é necessário primeiro conhecer e compreender a história"... Assim?

O pai abanou a cabeça, em desprezo, e nisso tanto concordamos na aversão a esta pobre gente adormecida, enlevada consigo própria, tanto que se dizem "Acordados", essa sempre dita "esquerdalhada". Avancei um pouco o filme e digo-lhe "vê esta cena, pai", o baile no qual a jovem viúva Scarlett dança pela primeira vez, assim quebrando as regras do nojo, com o galhardo Rhett. E ela, enquando rodopia, diz-lhe "Mais uma dança e perderei a minha reputação para sempre", ao que ele responde "Se tiver coragem, pode viver sem a sua reputação". E o  meu pai, o Camarada Pimentel, sorri, anui, nem preciso de lhe explicar o que quero dizer - até porque já cheguei à idade em que não só o compreendo como também ele me percebe. "Querem a história sem "grão", como o dos filmes antigos, a história como "cópia digital restaurada", atiro. "É isso", diz, aceita. E repete que estou a fumar demais. Depois vai dormir. Estando, claro, acordado mas nunca "woke"...

06
Set23

O Beijo

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Fui à consulta de "médico de família", aquela anual comme il faut... Indagou sobre o meu estado físico, blaseei e instaurou-me a vasculha rotineira para a minha classe etária. Perguntou-me sobre o "estado de alma", decerto porque atento ao psicossomático - disse-lhe que sou, e assim me sinto, daquele tempo em que o Woody Allen era símbolo do iconoclasta progressista. De imediato exarou-me uma Certidão de Decrepitude. E receitou um químico de incidência psicológica, de utilização crónica, perpétua avançou. Também me disse para reduzir o sal.

(Woody Allen sobre o beijo espanhol...)

30
Ago23

O Beijo Espanhol (2)

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Mais um capítulo na polémica! Vídeo mostra Jenni Hermoso a rir-se do beijo de Rubiales

A plataforma SAPO publica um curto vídeo (que não é integrável em blog - e não compreendo como uma plataforma que acolhe blogs não inclui uma opção "incorporar" nos vídeos noticiosos que publica, como fazem várias outras plataformas) em que se vê a futebolista Jenni Hermoso e as suas colegas, recém-campeãs, a rirem-se, com humor e sem preocupações ou mágoas, da beijoca entre o presidente da Federação de Futebol e essa futebolista durante a cerimónia final do Campeonato de Mundo de futebol. É evidente o júbilo, brotado da vitória história, mas ressaltado para as brincadeiras entre várias jogadoras que, em coro, referem o brevíssimo episódio. O filme, que decerto muito em breve estará em plataformas que permitem a sua captação para blogs, está aqui.

Como é sabido, passados dias, após a estratégica intervenção de ministras socialistas espanholas - decerto que influenciadas pelo confronto com os peculiares discursos sobre este tipo de temáticas emanados do partido rival VOX, e isto sublinhado por se estar em pleno processo de formação de governo  coligado no país - a jogadora apareceu a lamentar-se do caso. Depois secundada pelas colegas. E por todo o lado - desde a patética intervenção do porta-voz da ONU até ao próprio Delito de Opinião, passando pelo primeiro-ministro espanhol até aos patetas televisivos nacionais do costume - cai o "Carmo e a Trindade", denunciando o caso de "assalto", "assédio sexual", de machismo empedernido que teria conduzido a tamanha violência. A própria SAPO destaca hoje um postal lacrimejante sobre o assunto, que remete - dando-lhe estatuto de prova - para um texto de jornalista espanhola que afirma haver machismo e falta de educação entre os membros da federação espanhola de futebol. Nem duvido que haja, mas a questão é outra: o que aconteceu ali, durante a cerimónia?

aqui botei sobre o assunto: o que o homem fez - ainda por cima sendo ele não um "doutor" tutelando a bola nacional, mas um antigo jogador -, é mesmo o inverso, tratou a jogadora "como um homem", replicando um gesto tantas vezes feito pelos praticantes quando em júbilo. Para não me repetir sumarizo: é um gesto assexuado (no sentido de desprovido de erotismo). Basta ver. Voltei ao assunto aqui, diante da histriónica incapacidade analítica de propalados intelectuais. Esse tipo de gente para quem é porreiro surfar as vagas em voga, e botar umas coisas na imprensa...

O assédio sexual (laboral e não só), a violência sexual, o mais abrangente machismo, são temas fundamentais. A combater, pela lei, pelas instituições, pela opinião pública, pela sensibilização. Profissionalmente cruzei casos tétricos disto. Até incríveis, de inacreditáveis, passe a aparente redundância. Mas quando uma mulher feita e realizada, trintona bem sucedida, campeã mundial, se ri a bandeiras despregadas, quando um conjunto de mulheres feitas e realizadas, profissionais campeãs mundiais, se riem a bandeiras despregadas, isso a propósito de um gesto que bem entendem desprovido de qualquer violência ou ameaça, não  podem depois invocar terem estado sob "assalto", "assédio", "violência". Nem há argumentos convocando contextos "infalsificáveis" (a la Popper) que justifiquem estas inflexões interpretativas. Ou seja, entenda-se, como prevalece um machismo violento e desrespeitador aquele gesto é violento e desrespeitador. Isso é um acto falsário, um silogismo aldrabão. E contestar essa evidência, em nome de uma qualquer "boa causa", é apenas desvalorizar, apagar, superficializar, as abissais realidades do "assédio", da "violência sexual", do "machismo", mundo afora. É uma pantomina abjecta. Matéria-prima por excelência para políticos demagogos e para os "activistas" de agora. Mas uma vergonha para quem se veste (ou traveste, melhor dizendo) de intelectual, de militante. Ou, pior do que tudo, de professor. Uma vergonha intelectual. E uma vergonha moral.

E isto tudo independe de Rubiales.

23
Ago23

O Beijo Espanhol

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Espanha é campeã do mundo de futebol feminino. Na cerimónia no estádio o presidente da Federação exulta e beija uma jogadora. Logo ministras saem à liça dizendo que se trata de um assalto, os defensores das boas causas manifestam-se irados, a internet está cheia de acusações de "assédio" (assim mesmo). E pululam imagens - nem são fotografias, são fotogramas, que dão a impressão de um beijo sensual, o velho "french  kiss", esse nosso linguado. O homem vê-se obrigado a desculpar-se, sinal dos tempos, mas não chega! Pois agora é o próprio primeiro-ministro Sanchez que vem considerar "inaceitável" o gesto e exigir mais do que desculpas - decerto que a demissão do presidente da federação.

É impossível não reduzir tudo isto a uma patética hipérbole discursiva, colonizadora e deturpadora de problemas sociais efectivos - o tal "assédio sexual", a violência masculina, a violência doméstica. E mais ainda, torna-se óbvio que Sanchez vampiriza o facto para uma posição política, sendo sabido que na campanha para as recentes eleições o partido de extrema-direita Vox assumiu uma excêntrica linha discursiva, avessa às questões da luta contra os efeitos perversos do machismo e da violência doméstica. O mundo, a Europa, a própria Espanha seguem como seguem e aquela gente enrodilha-se nestas questões, e vistas deste paupérrimo e histriónico modo. Se a maluquice grassa nas redes sociais e a demagogia acampa nas tais ministras, esta intromissão de Sanchez é mesmo sinal do traste político que o homem é. 

É que nem se justifica argumentar, basta ver o filme - e não ficar agarrado ao fotograma. Trata-se de um efusivo beijo nos lábios, num ápice, seguido de duas vigorosas pancadas nas costas. É um gesto de celebração que os homens hetereossexuais também fazem entre si - e bem me lembro de que quando o lateral-direito Miguel Garcia aos 119 minutos, na sequência de um canto, marcou o golo que apurou o Sporting para a final da então Taça UEFA, saltei da mesa do "Eagles" em Maputo para o colo do amigo Rui B. e trocámos vários beijos destes, tamanha era a nossa felicidade. E inúmeras pancadas nas costas... Há meses, num almoço de amigos ali perto do rio Sousa, bem nos rimos com esta memória.

Andam os espanhóis, por enquanto entregues a este Sanchez bem mariola, e tantos outros a discutir o sexo dos anjos. E o "beijo espanhol". Algo está podre no reino da... Europa. Daí o mau hálito que grassa...

28
Mai23

A Esquerdalhada

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(Texto [também] para o Jorge Forjaz, que me escreveu sobre o meu "Descolonizar a Língua Portuguesa" resmungando "Se não te referisses e adjectivasses tanto a esquerdalhada tinhas mais razão" e ao qual eu anunciei "vou-te responder" para dele receber um sorridente "Com direito a resposta? Oh lá lá". Entre viagens e outros afazeres demorei-me demasiado na resposta...)

***

Num postal recente usei o termo "esquerdalhada" (que me é habitual). E logo três amigos me enviaram mensagens, pois com ele incomodados. Nos comentários recebidos (no meu mural de Facebook) também surgiu algum desconforto - e mesmo imprecações. Naquela plataforma a ligação ao texto foi partilhada por outros - o que lhes agradeço - em cujos murais também notei algumas reacções desagradadas, até furiosas. Isto mostra a vigência de um sentimento pelo qual sobre os locutores de “esquerda” não se deve verbalizar menosprezo ou desrespeito pelas suas atrapalhadas ou aldrabadas opiniões.

Reacções ao invés das esperadas face à rapaziada da direita. Sobre esta há dois termos que vão surgindo: o mais raro “direitinhas” - em tempos consagrado em banda desenhada publicada no “Diário”, o jornal do PCP dirigido por Miguel Urbano Rodrigues -, mas que não vinga muito dado o tom pouco ferino que aquele sufixo sempre dá. E o mais habitual - e quase automático - “fascistas” (ou “faxos”), uma evidente desvalorização ética e intelectual.

Ou seja, se eu, ou outrem, diante dos dislates agora até algo habituais daqueles que se propõem decepar genitais alheios, hastear bandeiras nacionais em edifícios oficiais nas antigas colónias ou louvaminhar as inexcedíveis qualidades do colonialismo português (o qual “nunca existiu”, a crermos na douta bibliografia, titulada sem a ironia do texto que glosa), falar de “direitinhas”, de “fascistas” (ou mesmo de “fdp’s” por extenso, como fiz há pouco - quando o professor Ventura inculpou Costa de um duplo assassinato) não tenho ecos abespinhados. E isso não se restringe às peculiaridades do agora CHEGA. Pois sou tão velho que me lembro de ver o tal insulto “fascistas” atribuído a gente como… Franco Charais e Pezarat Correia. Ou António Barreto. E desde então Ferreira Leite ou Vítor Gaspar e um vasto etc. foram assim ditos, e também estrangeiros, estes até mesmo nazis, como Merkel ou Bento XVI. E tais epítetos não colhem apenas silêncios mas mesmo anuências - mesmo entre aqueles que os assumem como meras metáforas (e não são as invectivas, sarcásticas ou insultuosas, quase sempre metafóricas?).

Mas o apreço “neutral” pelo desapreço face à malta à direita é até mais abrangente: nenhum amigo se preocupa quando afloro eu - como aqui o fiz - os dizeres, de facto apenas onomatopaicos, dos negacionistas das alterações climáticas, estes sempre urrando que tal coisa é mito emanado do “marxismo cultural”, deístas pagãos que são, e nisso obtusos crentes de que da divindade Mercado nada de negativo pode brotar. “Sempre as houve”, “dizem que há aquecimento mas está a chover”, expectoram ainda que doutores e engenheiros. E mesmo que pais e avós extremosos das suas “boas famílias” fazem trocadilhos brejeiros com o nome da célebre jovem ecologista sueca, num verdadeiro Cialis deste senil imbecilismo “liberal”.

Tal como não li agravos quando propus o regresso ao útero materno dos energúmenos anti-vacinas do Covid-19 - como, por exemplo, aqui - saídos das grutas mais recônditas do reaccionarismo pimpão, desvairados avessos à intrusão estatal que lhes quis injectar químicos pois entendendo-a escrava das apetências lucrativas das farmacêuticas - ainda que depois não hesitem em encharcar-se (e às respectivas parentelas) em tão dispendiosas quimio e radioterapias que os Estados compram às tais farmacêuticas interesseiras para a eles - e seus próximos - prolongar as verborrágicas vidas. Ou ainda, para último exemplo, quando resmungo contra a rústica inintelectualidade de alguma direita portuguesa, incapaz de avisar um irritante, e de histriónica ignorância, casal nortenho de que a Escola tem mesmo como tarefa Educar Para a Cidadania.

Em suma, neste ambiente é aceitável, e até saudável, usar do sarcasmo para invectivar a “direita” mas é inaceitável, pois ofensivo, escarnecer da “esquerda”. Como se esta, e os seus fiéis, tenha uma universal virtude. Qual uma superior decência e uma acrescida potência.

É um traço interessante porque o pejorativo (e quantas vezes enojado) “esquerdalho” - e o correlativo “grupelho” - são termos que não têm um “pedigree” de “direita”. De facto, emanaram de uma força de esquerda, aplicados às moles de patetas m-l de então, essas que agora se apresentam sob as pestíferas vestes “identitaristas”: tratava-se do feixe de excitados sociopatas que o secretário-geral abordou no seu “O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”, entretanto travestido (ou transvestido, não sei...) num tal de “identitarismo”.

Também por isso esta expressão pejorativa não recai sobre o amplexo PCP. Não só por estas razões históricas mas ainda devido a dados estéticos: mesmo na sua decadente situação intelectual actual - longe vai a época em que o PCP tinha quadros como Luís Sá, Barros Moura, João Amaral, ou Vital Moreira a renovar Marx, para além da tutela de Cunhal, e fica-se agora pelos esparvoados tuítes do tão elogiado António Filipe - o "partido" tem alguma... "correcção formal". Como se uma espécie de quadratura do quadrado, algo que o torna algo imune a algum tipo de críticas mais sarcásticas ou ríspidas: foi decerto por esse desvelo estético, nisso ético, que nesta era de tamanhas retóricas “cuidadoras” das “minorias etnoculturais” puderam os comunistas emanar um comunicado oficial - após a invasão russa da Ucrânia - louvando a excelência das políticas soviéticas relativas às “minorias [étnico-]nacionais” sem que tivessem sequer tremido o Carmo e a Trindade “identitarista”, "multicultural".

Também, fora dos dizeres presentes no espectro partidário, não aplico, nem se costuma aplicar, este tipo de sarcasmo a discursos desenvolvimentistas - de facto muito ausentes da cena pública portuguesa. Mesmo que nestes abundem os utopismos e, bem pior, sejam frequentemente poluídos pela recepção das "causas" e linguajares típicos de alguns movimentos identitaristas ocidentais. É como se a adesão, sob variadas formas, ao ideário do "desenvolvimento humano" blinde algumas das vozes mais impensantes que sob ele se agregam, como por exemplo os palradores do "empoderamento", que nem fabianos se percebem, ou os que mesclam a temática do "género" com as questões da sexualidade, imaginando que o mundo é uma Nova Inglaterra hollywoodesca.

De facto esta “esquerdalhada”, demagógica - e nisso desonesta - ou apenas tonta, e sempre histriónica, não é a “esquerda” mas apenas (plurais) feixes internos à “esquerda”. Por cá muito em voga e muito visíveis dada a descabida influência que têm na imprensa e nas universidades. E tendo alguns agentes de verve fácil muito escapa esta mole ao crivo crítico. Nessa pluralidade loquaz, e abrangência temática, torna-se algo difícil descrever (e assim definir) este cadinho de textos oriundos do “radicalismo pequeno-burguês de fachada identitarista” sem recorrer a laivos de alguns locutores, qual galeria de ilustrações, uma chinoiserie

Mas fazê-lo acabará por ser desagradável. Pois não só eu não leio muitos desses constantes textos idolátricos - até os evito -, como à maioria daqueles a que chego faço-o por conselho de alguns cruéis amigos, malévolos nos seus verrinosos avisos “já viste o que fulano de tal botou?”. Ora isso tem um corolário, pois sou conduzido (deixo-me conduzir) a ler as trapalhadas botadas por gente que conheço ou com a qual tenho conhecimentos comuns, afinal uma pequena “lisboa” do Minho à Madeira. E assim o meu sacar da cimitarra, a volúpia assassina, pode parecer ad hominem. Quando não é, mas sim uma aversão higiénica face a destrambelhados argumentos colectivos individualmente expostos. E, por vezes, mas apenas no caso dos socratistas, um afã sociocida, portanto também colectivo.

Na realidade, mais do que avaliar da hipotética pertinência dos problemas sociais que são apontados ou das soluções que são propostas (quando o são) o que é mais notório é que neste eixo discursivo esquerdalho se tratam de expressões atitudinais, assentes numa vácua superficialidade embrulhada em retóricas histriónicas. O objectivo é sempre o de constituir "grupos"-para-si, entidades mobilizadas para o "activismo", numa burguesa refracção do velho ideário da - agora - "luta das identidades" como "motor da história". Mas ouvindo/lendo os pretensos "intelectuais orgânicos" o que logo se apreende é que na sua grandiloquência surgem como aquilo a que José Cutileiro aludiu no seu "Abril e Outras Transições”, nada mais do que discursos reconhecíveis como “when a man is talking rot”… 

Há três trombos fundamentais nestas vias discursivas, que passo a a exemplificar usando alguns casos que vão vegetando na minha memória. Um é o culto do "construtivismo", a académica ideia - pacífica em si mesma - de que as realidades sociais são socialmente construídas. E que nesses processos - o que é um bocadinho mais discutível - os formatos discursivos (os conteúdos linguísticos, para facilitar) são um material fundamental da edificação das lógicas e das mundividências, assim da miríade de valores e poderes presentes em cada sociedade. Há nisso uma espécie de linear determinismo, como se sociológico fosse, e que vem promovendo esta moda de depuração dos linguajares. Troque-se por miúdos: parece que o governo indiano - agora muito louvado na reemergência geopolítica dos BRICS, considerada fundamental pela esquerda radical para se combater a "episteme" obscurantista "ocidental" - acaba de retirar o evolucionismo darwiniano do ensino escolar. Em Portugal, membro da perversa hidra capitalista ocidental, esse ensino mantém-se, tal como os restantes itens da ciência contemporânea. No entanto para esta esquerda identitarista, prenhe de afã purificador da língua, tudo funciona como se o ensino (escolar e por outros meios) da ciência de nada sirva, pois continuamos a chamar "nascer do Sol" à alvorada e "pôr-do-sol" ao ocaso. Ou seja, crêem que apesar de alguns esforços pedagógicos as palavras nos condenam - e neste caso à mundividência da crença geocêntrica, pois as amarras linguísticas nos farão pretéritos a Copérnico e Galileu.

Tal concepção nota-se no eixo feminista - em sentido amplo, a defesa da igualdade e equidade de mulheres e homens, algo que é historicamente uma matéria de “esquerda”. Um dia li no "Público" um artigo de uma cientista social - muito louvado pelas minhas colegas moçambicanas especialistas em questões de Género, decerto que por conhecerem a autora - a clamar contra o universal masculino gramatical, como sendo este um instrumento de reprodução da opressão falocrática. Reparei que a senhora tinha aposto como epígrafe o Magritte do “ceci n’est pas une pipe” - estava eu a viver na Bruxelas do artista, o que mais me chamou a atenção. Ora a autora feminista passava o artigo a defender que “cachimbo” deve ser cachimbo - no tal ditirambo contra as algemas gramaticais, as masmorras sintácticas e os cadafalsos semânticos que considera serem e promoverem os malvados poderes -, sem perceber a sua gritante contradição. Não pude evitar pensar, e por várias razões, que tudo aquilo (preocupações gramaticais, textinho ufano e aplausos dos cientistas apoiantes) era uma esquerdalhice tonta, típica da esquerdalhada. E é apenas um exemplo de incultura aplaudida pelas "elites" "intelectuais", do ambiente geral cristalizado no patético uso das "Todes" ou "Todxs" e afins por burguesotes que assim se imaginam "radicais" e, mesmo, "cidadãos". E o passo avante desta deturpada perspectiva "construtivista" é o que agora grassa, a vertigem censória, a purga que se faz aos textos do passado e os limites censórios àqueles ainda em produção, convocados a associarem-se a determinadas "sensibilidades" em voga...

Mas este rumo não passa apenas por patetices como este exemplo que dei. Há muita demagogia, no rumo de um verdadeiro aldrabismo. Um dos vectores interessantes nestes "construtivistas" de cardápio é o facto de associarem esta crença de que os termos têm - por si só - efeitos sociais (perversos) à vontade de instaurarem a discriminação oficial de categorias raciais, uma evidente contradição. O debate sobre políticas equitativas é salutar e fundamental. Uma das dimensões desse debate - o qual em Portugal é muito frágil por deficiência intelectual societária - é o que opõe o secularismo comunitarista da esquerda identitarista aos adeptos da laicidade universalista, defensores de uma cidadania republicana. Os primeiros querem fragmentar a população em entidades discretas de cariz “étnico” e “racial” (ainda que não as saibam definir) para promoverem “discriminações positivas”. Este é um debate interno à “esquerda” mas também com a “direita” e o “centro”.

Ora, também no famigerado “Público”, li há anos um artigo - de alguém que se subscrevia com o nome da instituição científica estatal que o emprega (ou seja, convocando o empregador para sedimentar as suas opiniões políticas, uma manobra rasteira...) - no qual se defendia o tal recenseamento “étnico-racial” afirmando “numa sociedade aberta o Estado deve poder perguntar tudo” e “cumpre aos cidadãos comprovar a razão de não quererem responder”. Ou seja, o Estado deve exigir às pessoas que se identifiquem e situem segundo classes "étnicas" e "raciais", se pensem e actuem consoante tal, e sejam objecto de políticas estatais peculiares sob essa condição. Sendo assim a tal "sociedade aberta". A mim, diante desta torpe manipulação da célebre expressão de Popper, crucial no ideário liberal, ocorreu-me o óbvio, que o artigo era uma esquerdalhada, abjecta demagogia, talvez típica do seu autor, decerto que disseminada entre os seus admiradores. E convém perceber que este fervor racialista - apresentado como factor de equidade - implica a utilização das tais palavras que manipulam as mentes (como sempre assumem em relação a outros assuntos). Assim sendo, para estes esquerdalhos eu estou errado quando digo "todos" ou "todas" e estou errado quando não digo "negros" e "amarelos" - como se houvesse discriminações a fazer e outras a evitar. No fundo, o que este esquerdalhismo quer é sedimentar, enquistar, entidades conflituantes. E entretanto evitar que um cozinheiro "branco" apresente uma receita de moamba na televisão - e a desfaçatez é a minha. E não a dos esquerdalhos que se congregam em torno destes dislates.

Um segundo trombo desta "esquerda" radicalizada é o seu evolucionismo, metástase do seu marxismo vulgar. Pois nela habita a crença de que as sociedades evoluem (se direccionam num sentido positivo, pois é preciso traduzir isto num país onde amiúde se ouve o oxímoro "evolução negativa"), num rumo relativamente pré-determinado, "progressista" dizia-se. Nesse marxismo vulgar vigente o tal trombo é a crença de que as sociedades ocidentais, as do capitalismo pérfido, esgotaram as suas capacidades de se transformarem e daí a necessidade de uma qualquer "transição". A efectivação desta crença do actual "imobilismo" por "exaustão" social, conduzindo a um "atavismo", tem agora um tópico em Portugal - para este "esquerdismo", o tal "esquerdalhismo" folclórico, a sociedade portuguesa é um mero e malévolo epifenómeno do passado recuado.

Daí o surgimento, cinquenta anos depois das independências das antigas colónias, de uma série de paladinos da necessidade de afirmar o país como fruto de uma história escravista, como se esta moldasse o Portugal actual, lhe estivesse no âmago. A vontade é simples, transformar o ensino da História e a consciência nacional numa traumatizada versão de nós-próprios, de facto seguindo o desígnio de apoucar a identidade nacional, e nisso a comunidade nacional - pois esta dada a capitalismos e até conservadorismos. Um projecto até contraditório num país que nem tem um ensino patrioteiro nem alberga projectos de expansão nacionalista ou neo-colonial.

Parte deste rumo vem de uma até pungente condição, o facto de alguns intelectuais (historiadores e afins) terem dedicado parte das suas carreiras de investigação a temáticas da expansão portuguesa em África (e no Brasil) e de ansiarem por um estatuto de "intelectuais públicos". Algo para o qual sentem (erradamente, diga-se) necessitar de capitalizar, usando-o linearmente, o que estudaram sobre séculos prévios, atribuindo as características que nesses identificam às realidades actuais. O interessante é que se forçam a presença actual das categorias existentes na sociedade portuguesa de antanho são incapazes, ou disso desinteressados - por alguns motivos ideológicos -, de vasculharem nas sociedades africanas actuais alguns vestígios dessa realidade escravista ali duradoura durante séculos.

O que demonstra que, por mais punitivos que queiram ser sobre o passado e o presente português, são incapazes de ultrapassar um traço típico nacional - o da distracção face a realidades outras, sempre centrados no nosso país (isto é algo que esmiucei num texto longo, "O Olhar Português"). Ou seja, estes doutos intelectuais, 50 anos depois das independências das colónias portuguesas, sobre África pouco ou nada dizem, apenas lhes importam os ecos (demoníacos ou gloriosos) da história pátria. E é isso que os torna "intelectuais públicos", "críticos". É evidente que há diferenças internas neste eixo de discursos, entre os que analisam a história portuguesa, na sequência do que fizeram alguns da geração anterior - quantas vezes seus mestres -, e os que se limitam a gesticular - como alguns que, também no "Público" (sempre o palco privilegiado deste coro), defendem a "intervenção" "anti-colonial" sobre o património artístico. Mas, e o que é uma deliciosa demonstração da pantomina desses autores, daqueles itens patrimoniais que estão na rua, pois isentam os itens alojados no interior de edifícios desses propósitos "intervencionistas"...

O terceiro trombo, evidentemente ligado aos anteriores, é a afirmação de que o nosso país é um extremo caso de racismo, que "Portugal vive num apartheid", como clamava (no "Público", claro) há anos um antropólogo defendendo a inenarrável Katar Moreira (a tal da moamba racializada). Talvez por isso possa ter eu visto uma activista, apresentada como senhora professora, na televisão defendendo o "Mamadu" - assim como um sindicalista em apoio à "Isabel" (Camarinha), um autarca ombreando com o "Rui" (Moreira), um académico louvando o "António" (Sousa Pereira), um camarada subscrevendo o "Francisco" (Louçã), etc. E nessa candura, até pungente, afirmando a pés juntos que o racismo é monopólio dos brancos, explicitando querer ensinar isso à audiência televisiva enquanto tentava balbuciar uma recensão oral de um qualquer "paper" onde aprendera a atoarda, tão "decolonial". Pobre jovem senhora, com todos os sinais físicos e verbais da boa pessoa, cheia de boas intenções salvíficas, avatar de avoengas missionárias, nem sabia o que significava "uigures"! E ali estava defendendo, pedagógica, um conjunto de sábias (porque produtivas) patacoadas. 

Esquerdalhada? É isto, entre inúmeros, constantes, exemplos, provindos de algumas almas caridosas ou mentes fabianas misturadas com uns mariolas "activistas" - estes sempre com "um olho no racializado, outro no burro". De facto militantes da superficialidade, eles sim algemados à "atitude". Que julgam certa ou isso lhes convém no mercado estatutário.

Há uns anos dediquei um postal a uma querida amiga, que senti demasiado sensível a alguma daquela verve esquerdalha. Tinha até a ideia de lhe dedicar uma série de postais, procurando demonstrar-lhe os chorrilhos de asneiras convictas que ia lendo por cá. Mas depois desisti, que há tanto mais em que pensar. Então, sobre a superficialidade esquerdalha e suas patéticas atitudes, ficou só aquele postal: "O Corredor", minha memória de quando trabalhei na África do Sul. 30 anos depois o mundo mudou bastante. Mas não o esquerdalhismo, seus ademanes, trejeitos. E objectivos. Os quais são, como antes o foram, malévolos. Por mais roupagem garrida que traga.

No fundo, no fundo, a diferença é mais ou menos como olhar para este mural que encontrei patente na construção de um prédio de Bogotá: "Obrero Sexy". Que cada um interprete à sua maneira. De modo mais ou menos em voga...

28
Mar23

Emendar os textos antigos e racismo

jpt

são-martinho-do-porto.jpg

 

(Jô Soares e casamento português)

A propósito disto das "sensibilidades" ofendidas e da "urgência" em higienizar os legados textuais (e outros) para, dizem, evitar desmandos e desvalorizações sociais, lembrei-me desta "piada de português" (muito brejeira, aviso os ouvidos frágeis) do João Soares. Só há pouco a conheci e ri-me imenso, apesar do/devido ao tom corrosivo que nos é dedicado. Ri-me apesar de saber do abrasivo do humor brasileiro contra todos nós, da sua origem xenófoba (e elitista) - recordo um belo artigo sobre a emergência na imprensa de meados de XIX destas invectivas contra os portugueses, publicado numa "Oceanos" de 2000, coordenada por Robert Rowland... Ri-me porque tem piada e porque o contexto o permite (e não é ilegitimado por qualquer patente ou presumida intenção), e ele é omnipotente nestas coisas. Tal como os "ouvintes" devem ser minimamente esclarecidos para se contextualizarem.
 
Nestas coisas de me ofenderem a "sensibilidade" (de me "racializarem") lembro dois episódios: há mais de uma década um casal moçambicano convidou-nos para jantarmos com um outro casal brasileiro, quadros de empresas recém-chegados a Maputo. Assim foi, eles simpáticos, cultos, conversadores. Mas de repente o marido contou uma "anedota de português". Não foi mal acolhida, pelo que seguiu um vasto repertório no tema. Como é evidente nunca mais convivemos com eles, desagradados num "que é isto?", e foi pena pois até poderia ter sido "o início de uma bela amizade". Mas a minha sensibilidade fora demasiado "racializada".
 
Décadas antes acontecera-me outra, ainda pior. Aos meus 14/15 anos, no Verão de São Martinho do Porto, uma família francesa (naquela época os turistas eram quase todos franceses) alugou uma barraca balnear perto da nossa. A filha era linda, loura, e aos meus anseios já se parecia com a Marion des Neiges dos "Pequenos Vagabundos", e o seu irmão e o amigo logo acamaradaram nos jogos de bola, mergulhos e outros que tais. Uns dias passados foram almoçar lá a casa, encantados com a simpatia da minha mãe - até porque ela era verdadeiramente bilingue - e com a sisuda placidez do meu pai (que devia estar a fruir o estado basbaque deste seu filho, assim notando-o a crescer "como um homenzinho"). Depois fui eu almoçar lá a casa, recebido como se adulto fosse pelo messire ali veraneante e sua extremosa mulher. À mesa a conversa fluiu, eu no meu francês pausado mas melhor do que o de agora, eles elegantemente acompanhando o meu ritmo. Entre conversas, e entre eles, o pai pediu à bela filha, sentada do outro lado da mesa, uma qualquer coisa e eu, de imediato, lha passei. Para sua sorridente surpresa, pois entendera eu não só o léxico mas, acima de tudo, a velocidade parisiense da fala... Ao que respondeu ela, talvez ufana do jovem pretendente, talvez precisando de justificar aquele convívio "inter-cultural", "ele é português mas é inteligente!"... Eu passei-me, mantendo a compostura diante dos pais, mas passei-me mesmo. Pior ainda com os outros rapazes a tentarem justificar a "gaffe" mas nisso, atrapalhados, metendo les pieds par les mains... Enfim, o pai lá soube fechar a questão, elaborando sobre a grandeza e a excelência lusa (e após a minha saída deve-se ter rido, vero gaulês, do sanguíneo petiz que lhe entrara porta dentro).
 
Ora esta minha sensibilidade foi reactiva apesar de não ter eu interiorizado (ou sofrido) qualquer pressuposto sobre a minha inferioridade intelectual, social, cultural - ou mesmo "racial" ("étnica" mascara-se agora). É pois normal que outros, provenientes de contextos recorrentemente desvalorizados (por exemplo os "parolos" que Augusto Santos Silva despreza), sejam mais epidérmicos com algumas expressões que vão enfrentando.
 
Por isso as nossas expressões e as nossas sensibilidades são educáveis, aprimoradas - só um imbecil se ri hoje daquele vil filme "Os Deuses Devem Estar Loucos" que há 40 anos foi um sucesso mundial, ancorado no humor racista do apartheid. Mas isso não implica andar a apagar o passado, a emendá-lo. Hoje a Agatha Christie e a Enid Blyton, amanhã o Engels e o Hegel (que vendem menos).
 
Enfim, mas de tudo isto o fundamental que retiro é que foi o Joaquim, um tipo do Porto, que depois conseguiu trocar uns beijos mais intensos com a Falbala de São Martinho do Porto. Não foi a última vez que isso me aconteceu, nem nada que pareça. Mas ainda me dói...

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