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Nenhures

Nenhures

22
Ago24

As "Pessoas Que (Não) Menstruam"

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O diretor da Universidade de Verão do Partido Social Democrata (PSD), Carlos Coelho, discursa durante a sessão de encerramento da Universidade de Verão do partido em Castelo de Vide, 04 de setembro de 2022. NUNO VEIGA/LUSA

(Foto de Nuno Coelho, Lusa, retirada daqui)

Há duas décadas conheci em Maputo uma jovem antropóloga espanhola, competente e simpática, que ali leccionava com agrado discente e apreço colegial. Um dia, em conversa decorrida no café do "campus", aludi - e decerto que com amoroso desvelo - à "minha mulher". Ela saltou, inopinadamente, furiosa com a utilização que eu fizera do possessivo, cenho (até belo) franzido, voz alterada, invectivando-me "és o dono dela? é tua propriedade?".

A nossa relação era curial, naquele pacífico tom de colega, e aquela sua reacção extravasava-a por completo. Eu sabia-a dada aos execráveis nacionalismos - dos daquela turba que se diz "catalã" e nisso geneticamente mais aparentada com os franceses do que com os portugueses e marroquinos, entre outras lérias. E de pendor feminista - ideário louvável, ainda para mais naquele país austral, onde, tal como na esmagadora maiorida das sociedades, a igualdade de direitos e a equidade de oportunidades é um necessário desiderato, mas ainda bem longínquo... Mas que me agredisse assim - apesar de ser eu um verme masculino e um desprezível mouro independente -, com armas sintácticas e semânticas, foi-me surpreendente.

Avanço que detesto quando algum não falante de português como língua primeira me vem dizer, doutoral, como devo falar a minha língua - como aquela espanhola naturalizada portuguesa por via de casamento que gritava, mão na anca, que a devíamos chamar "presidenta", "colona" miserável, disse-a, entre outras mudas alusões à comercialização dos seus dotes físicos. Entenda-se, desses alterfonos aceito correcções e propostas, mas não mandamentos linguísticos. Tal como detesto estrangeirismos inúteis, pois desprovidos de conteúdos semânticos - como o "seivar" no lugar de "guardar" ou "gravar", o patético "deletar" em vez de "delir", ou o insuportável "link" como "elo", para exemplos. Já para não falar dos inúmeros que são meros arrivismos guturais, a julgarem-se cosmopolitas. Não é isto nacionalismo linguístico. Mas apenas a consciência de que nem tudo o que vem "lá de fora" é de oiro. Aliás, nem tudo o que desse "lá" por cá aporta reluz...

Mas apesar de tudo isso, e porque estava num bom dia, à minha colega não respondi desabrido, mas sim sorridente. O que lhe piorou a disposição, pois as feministas quando estúpidas e/ou ignorantes - e "ele" há-as - sentem como machismo (o que chamam "mansplaining") a explanação ponderada e eficiente da sua ignorância e/ou estupidez. Avisei-a pois de que quando o amor da minha vida se me referia como "o meu marido" não estava a afirmar-me como sua propriedade, qual escravo (ainda que eu dela me sentisse assim, e disso ufano, na escravidão voluntária que alguns historiadores referem). E aduzi que quando tratava alguém, respeitosamente, por "Senhor" ou "Senhora", ou mesmo "Minha Senhora" não me estava a reclamar seu servo ou lacaio. Não ficou ela convicta, a conversa ali morreu, lembro apenas que um antes apalavrado jantar em nossa casa com ela e o "companheiro" (decerto seria esse o estatuto) não se veio a realizar, por mútuo esmorecimento de vontades.

Leio agora que a Pessoa Que Não Menstrua Carlos Coelho - um antigo excitadinho da jsd, que pelos vistos 40 anos depois continua na politiquice - vem defender a Pessoa Que Menstrua (ou Menstruou) actual ministra da Juventude. Ambos repudiando a utilização dos termos "homem" e "mulher", considerados vilanias anacrónicas, pois coisas do "antigamente". E afirmando ser necessário seguir as instruções vindas "de fora", o palavreado das "organizações internacionais".

Diante disto o que é que um tipo diz a este ex(?)-jotinha? Um mero "vai-te menstruar, pá!"? Ou explica-se-lhe, com verdadeiro mansplaining, as matérias do conteúdo social (semântico) da língua? Hum, duvido que esta pessoa desmenstruada, mero jotinha profissional, chegue a tais compreensões... Quanto à menstruada ministra, de qual nunca ouvira falar, presumo que seja da mesma estirpe. E é esta tralha humana que se julga "atenta". E, ainda pior, que nos governa.

13
Ago24

Passado colonial

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(Isto não é um ensaio, e muito menos um artigo. É um desabafo. )
 
Na fotografia estou eu no Mossuril, impante quarentão ladeando o velho canhão pátrio. Não estava ali traumatizado, nem me sentia um Atlas com o peso da História aos ombros. Nem o devia estar. Nem sentir...
 
1. Para quem não saiba o Mossuril foi durante séculos um dos cais de embarque para a Ilha de Moçambique, que lhe está defronte. Esta - sempre romantizada, com laivos de poesia (há muita versalhada sobre o sítio) ou de devaneio turístico - foi sempre um entreposto, ali se carregavam as embarcações as quais seguiam Índico afora. E, como outras feitorias portuguesas em África (ditas "possessões"), sobreviveu séculos com as taxas alfandegárias e os ganhos comerciais dos... funcionários. Pois desde XVI - pelo menos - ali chegavam as caravanas vindas do interior, fronteiro ou muito distante. Trazidas por gentes várias que vieram a ser ditas macuas ("selvagens", na língua das gentes algo sualízadas do litoral, pois vistos como inferiores boçais do  mato), por ajauas, por outros. Algumas caravanas iam até ali, para Quelimane também, tal como ao Ibo, outras calcorreavam rumo a outros portos exportadores onde inexistiam portugueses, na demanda de melhores custos-benefícios.
 
Ao longo dos séculos vários foram os produtos transportados. A partir do primeiro quartel de XVIII e, acima de tudo, durante XIX o que mesmo cresceu, com enorme afinco - uma verdadeira "bolha" para falar como agora -, foi o comércio de escravos. Lá para meados de XIX isso foi ilegalizado mas continuou como "tráfico", e seguiu - assim mais lucrativo, qual bootleg da Lei Seca americana - até inícios de XX. Progressivamente mais difícil, e também mais raro, mas ainda assim numa azáfama de transportadores terrestres, vindos cada vez de mais longe, pagando portagens aos sucessivos "donos da terra" - tipo as chefaturas ekoni do interior de Cabo Delgado ou os namarrais que se chegaram à Ilha para cobrar ainda mais caro (mas a mitografia nacional veio a torná-los "heróicos", por se terem oposto à ocupação portuguesa). E uma azáfama de transportadores marítimos, árabes, suaílis, franceses, holandeses diz-se, brasileiros também e muitos. E portugueses.
 
Lá mesmo para o final, século XX já encetado, os portugueses (e julgo que também os franceses, mas assim apenas de memória não o posso afiançar) tiveram um episódio cristão bem denotativo: embarcavam-se os desgraçados, no convés estava um padre, "baptizava" as criaturas, elas "assinavam" um papel, e eram "elevadas" a cristãos trabalhadores livres, "contratados". E seguiam às ilhas índicas. (Vá lá, chamai herege a este ateu.) Depois isso acabou - dizia-se, e bem, "Britain rules the waves" e era cada vez mais difícil, pois esses não queriam mesmo tais práticas.
 
Já República feita, mandando a maçonaria e os antepassados dilectos do PS - mais os terroristas que hoje seriam do Bloco -, os portugueses adaptaram-se. E viraram-se para arregimentar gentes, enviando-as também como "contratados" para São Tomé, às roças que por lá medravam. Iam para a... vida toda. Seguiam tantos, e também recrutados para as minas sul-africanas (trabalho que dava gigantesco lucro ao... Estado, tipo os médicos cubanos de agora que pagamos a Havana, mas vivendo então bem pior), que os administradores do centro e norte contestavam tais práticas, pois faziam escassa a mão-de-obra por essas paragens, tão necessária para plantações (onde as havia) e para ... o trabalho forçado. Tudo isto está escrito, nos arquivos e em livros.
 
2. Nesse rumo foi-se instalando o colonialismo moderno, a "ocupação efectiva", de facto terminada lá pelos anos 20s. Na tal I República, trapalhona. E, depois, no Estado Novo, competente q.b., mesmo que se algo trôpego colónia adentro. O regime europeu em África foi bastante diversificado, consoante o país colonizador, os tipos de colonos chegados, as características dos colonizados. As especificidades de cada uma das colónias. Ainda assim tinha duas características básicas:
 
a) racismo: a crença na legitimidade da tutela exercida sobre os locais, pretos. Estes considerados inferiores por condição racial, assim individual e colectiva. Ou por um estado transitório, seu contexto, seu "atraso", assim também colectivo, mas possibilitando a ascensão "civilizacional" individual. Grosso modo, diferenças ditas como entre a visão segregacionista e a assimilacionista. Na administração portuguesa conviveram as duas visões, até mesmo coabitaram, desde a mais desbragada consideração da impossibilidade dos pretos ascenderem, até à crença de que "a seu tempo" evoluiriam a contento. Cerca de 1950 vingou a mais aprazível versão oficial assimilacionista - que tinha sido esfacelada desde a tal República -, aquilo de "os rapazes fazem-se". E na década de 60 - após a reforma de Adriano Moreira, imposta não pela sua magnitude mas pelos "ventos da História" - as barreiras raciais administrativas foram muito aliviadas, as sociais algo matizadas, nesgas de assimilacionismo urbano medraram.
 
São essas nesgas que sempre surgem convocadas no memorialismo dos ex-colonos, a ladainha dos actuais sexagenários e septuagenários do "eu tinha indianos e mulatos, e até negros na minha turma de Liceu", "nós lá em casa tratávamos bem os empregados", "nunca vi racismo", "os pretos andavam na rua", etc. São estes aromas benevolentes que permitem que um tipo como Rui Ramos vá em 2024 à rádio disparatar "a descolonização começou em 1961", para encanto de Maria João Avillez - essa que eu ouvi, com estes ouvidos que o forno cremará, clamar diante de uma elite moçambicana muito crítica (demasiado crítica, em meu entender) "vocês não gostam de nós?, depois de tudo o que fizemos por vocês?!!". Isto não serve para entender o real. O passado. E um bocadinho do presente.
 
b) opressão e sobreexploração: as formas de opressão eram várias e os seus conteúdos diversos. Também há muita coisa escrita - sim, sei que muita da literatura anticolonial era muito militante, antes e depois das independências, a gente torce o nariz às formas selectivas dessas narrativas e análises. Mas é preciso não querer ver os âmbitos em que desvalorizações e a proibições eram exercidas para as ignorar, ou dulcificar. E depois a sobrexploração. Dir-se-á (e bem) que em Portugal também os direitos laborais (e outros) eram escassos. Mas por ali eram diferentes: a corveia ("trabalho por papas") - para o Estado e para os privados que tivessem boas ligações com a administração - era pesadíssima. E imensa - e não é preciso ser um esquerdalho para relembrar isso, leia-se o bispo da Beira, Soares de Resende, um prelado conservador (um dos seus livros levou como título "Ordem Anticomunista"), exasperado com a apropriação continuada do trabalho  africano. E as culturas comerciais forçadas, que eram imposições muito gravosas sobre os pequenos agricultores (quase toda a gente), praticadas em muitas áreas. Entenda-se, tudo isto se associava a castigos corporais recorrentes. Que as crianças e adolescentes urbanos não viam ou, pelo menos, não percebiam - e por isso, por não saírem do seu anacrónico saudosismo, continuam a remoer espúrias negações.
 
Após 1961, as reformas legislativas alteraram os regulamentos mais impositivos e discriminatórios. Pouco depois Salazar já falava de um futuro (imaginado como algo longínquo) de "comunidade de países lusófonos", conjugação de interesses e sentimentos sedimentada pela unidade da língua portuguesa - mas ainda não lhe ocorrera a necessidade de um novo acordo ortográfico. Mas ainda que em alguns núcleos, particularmente urbanos, a situação se tivesse matizado, permitindo alguma mudança no acesso de nichos da população negra a serviços, até empregos, as formas de opressão e sobreexploração não desapareceram, pura e simplesmente. As práticas continuaram, avulsas porventura mas não apenas episódicas. Pois as categorias mentais, as concepções ordenadoras dos interrelacionamentos, mesmo sendo vividas de formas distintas tanto por colonos como por colonizados, não desaparecem num ápice (como clamam os "críticos" actuais, no histrionismo de apontarem perenidade imorredoira entre os portugueses das formas extremas do ideário colonial), nem as condições económicas casam com imediatas alterações radicais, principalmente se sob uma administração autoritária e socialmente enviesada.
 
3. E em tudo isto a repressão. Em Portugal vivemos não só o cinquentenário dos "gloriosos capitães de Abril" como continuamos a louvar a "resistência antifascista". Ora o 28 de Maio e o subsequente Estado Novo advieram da devastada e perversa I República - e 2010 podia ter-nos ensinado isso, mas não vejo ninguém na imprensa (no "Público" ou quejandos) a insistentemente exigir o ensino dos detalhes da trapalhada republicana aos petizes do secundário... E a ditadura salazarista sobreviveu décadas com a anuência de forças armadas, policiais e da... população.  Houve repressão, claro. A qual depois da II Guerra Mundial se atenuou (os tais "ventos da História"). Continua-se a ouvir falar das desgraçadas mortes de José Dias Coelho ou Catarina Eufémia (Delgado é um caso muito diverso) mas o certo é que mortandade foi escassa. Não estou a dizer que foi uma ditamole. Mas sim que tal como o tratamento dado aos presos políticos "doutores" ou "filhos de doutores" era diferente do dado aos do "povo", também a repressão em África era muito mais carregada. 
 
É 1994, meu primeiro trabalho em Moçambique, estou em casa de Namwenda, um velho régulo, chefe mwekoni, está também Kolokoha, seu congénere - ambos postos da antiga chefatura macua-meto Inkigiri, dessas que in illo tempore haviam estado metidas até aos pescoços no comércio escravista. E mais uma dúzia de homens velhos, conselheiros, cabecilhas de parentelas. Eu estou a perguntar sobre as transições agrícolas do tempo colonial até àquele presente - mas deixo a conversa, animada, divagar. Até porque o que me interessa nem são as tais mudanças, estas são só pretexto. Contam-me que "antes de ter entrado a Frelimo", durante a "guerra dos macondes", os portugueses prenderam vários chefes macuas - entre os quais Namwenda - e levaram-nos para a prisão do Ibo. De sevícias em sevícias alguns haviam morrido, outros depois foram levados para a Machava (então Lourenço Marques) e desaparecido. Eram camponeses, macuas, nada tinham a ver com a guerra de independência - todos os que tenham visto filmes de guerra, tipo "Vietname", reconhecem a situação: passam os guerrilheiros a população encolhe-se, vêm os dos exércitos regulares e acusam-nos de cumplicidade e reprimem. Mas só ali, naquele episódio, já se fizera uma mole de "José Dias Coelho".
 
A conversa segue, longa tarde. Eu sei que o gravador cerceia a liberdade alheia e por isso escrevo, frenético, o que me vão dizendo. Voltamos à agricultura, ali chegou um projecto de incentivos à cultura comercial de milho e também de tabaco. Pergunto como eram os incentivos no tempo colonial. Sobre esse "fomento" logo falam da palmatoada, e descrevem. Eu sou jovem, inexperiente, e deixo escapar um esgar, impressionado. Namwenda fala, sorrindo, e todos se riem, pergunto a Tomás Brito, meu intérprete, qual a piada. Ele responde, traduzindo: "não foi você!". E todos se riem, percebendo o que está a ser traduzido mesmo que não entendam português. Eu sorrio e penso "foda-se!", "que lição!".
 
4. Ultimamente o tópico do "passado colonial" (de facto os do passados pré-colonial e colonial) tem sido sugado por um feixe de jornalistas e académicos oriundos de partidos de origens comunistas. As abordagens são panfletárias, enviesadas. As aleivosias historiográficas são constantes, as tiradas demagógicas comuns. Ora não me parece que seja necessário doirar a pílula do passado - o qual, aliás ,está patente em vários textos consistentes, e disseminados, e é interesseiro que esta gente surja repetidamente anunciando um estado de inocência da sociedade portuguesa sobre o seu passado.
 
Muito mais do que discutir as mariolices que se vão escrevendo conviria perscrutar a agenda política que tem essa minoria altissonante. De uma forma mansa poderei convocar a ideia de patriotismo de Orwell, que o disse um "conforto identitário". E o que esta extrema-esquerda identitarista deseja é romper o nosso "conforto identitário" português. Mas qual a sua agenda mais profunda, para além das pequenas benesses estatutárias (o apreço dos pares, por exemplo) e de pequenos financiamentos (os projectos, as performances, os colóquios)?
 
Cada um interprete como queira as ambições desta gente, neste seu afã de demonizar um passado que encerra numa visão que quer ser bicromática, a do mal e do bem, insensível à miríade de situações que - mesmo neste enquadramento colonialista - foram vividas. E que quer apagar os múltiplos reflexos e refracções que as variadíssimas dimensões do colonialismo tiveram e têm, em Portugal. E, mas isso então é que nada lhes interessa, nos países africanos antigas colónias.
 
O que me é relevante é não ser preciso higienizar o colonialismo, ou mesmo vasculhar em busca de um ou outro aspecto menos opressor para o poder contrapor, para perceber que estes tipos d'agora não querem entender melhor a História. Querem aldrabar - como o socratista Vale de Almeida quando clama ser Portugal um apartheid. Ou querem exercer a sua patética candura - como o (ex?)comunista Francisco Bethencourt quando vem perorar que é preciso pagar "reparações" para que as sociedades tenham um melhor  relacionamento futuro.
 
Há tempos conversava com um antigo - e excepcional - meu professor, PC "dos tempos", homem de esquerda profunda, o qual deve ter andado por esses movimentos pós-Perestroika, nem perguntei, e também ele incomodado com estas constantes patacoadas: "estes tipos sentem um défice de não terem feito a luta antifascista, anticolonialista, não tinham idade para isso, então afocinham agora nisto...", rematou. Ri-me, claro, concordando em parte, pois alguma coisa virá desse pobre entendimento autobiográfico.
 
Mas não basta como explicação global. Pois isto se faz pagar. Até a Gulbenkian, como vimos há pouco tempo, paga esta tralha.
 
(A ver se um destes dias volto ao assunto, à tal agenda política desta gente)

 

08
Ago24

Medina e o Russiagate

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O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa aplicou agora à Câmara de Lisboa uma multa de um milhão de euros devido ao ao envio para a embaixada russa, durante largos anos, de dados pessoais de organizadores - portugueses e estrangeiros - de acções avessas ao regime de Putin decorridas no município. Ao escândalo chamou-se "Russiagate", epíteto minimalista pois a Câmara enviava também dados do mesmo teor, e por razões similares, às embaixadas da Venezuela, da China e de Israel. 
 
A delação municipal ocorreu durante a presidência de Fernando Medina. Quando foi confrontado com a ignomínia Medina sacudiu a água do capote, tendo imolado um qualquer quadro médio camário, feito "bode expiatório". Depois seguiu a Ministro das Finanças, cargo no qual soube embelezar as contas. Os correligionários gabaram-no. Entretanto o governo caiu, o PS fez ascender o truculento Santos. 
 
Medina, sagaz, querendo-se qual "peixe de águas profundas" 2.0, recuou, e deixa-se marinar aguardando o óbvio, que Santos esboroe. Após esse futuro evidente os da "esquerda democrática" acolherão o seu regresso, lembrarão o quanto retocou os recantos da baixa lisboeta e as referidas contas públicas. Ser-lhes-ão indiferentes as denúncias dos que se erguiam contra Putin, Maduro, Xi Jinping. E dos defensores da Palestina. E se confrontados com a ignomínia de Medina argumentarão que a responsabilidade foi de um... bode expiatório, já imolado.
 
Sobre isto escrevi em 11 de Junho de 2021: Que a Câmara de Lisboa informe as embaixadas locais sobre os organizadores de manifestações é inaceitável. Que Medina venha clamar que se está a fazer um "aproveitamento político" mostra bem que segue alheio ao fundamental: pois isto é algo "político", remete para os valores fundacionais da democracia. E mostra uma mundividência antidemocrática (policiesca, mesmo) no topo da administração.
 
Há quem o queira eximir Medina, aventando que nada soube disto - e mesmo quem aluda aos milhares de trabalhadores da câmara, mole que será suficiente para encontrar um atávico amanuense expiatório. Esta notícia (em 2019 o gabinete de Medina confirmava esta prática) comprova o contrário. Medina está há muito tempo na Câmara, o seu gabinete há pelo menos dois anos que sabe destes procedimentos - muito provavelmente conhece-os e pratica-os desde que entrou em funções. Ou Medina não sabe o que se passa no seu gabinete, mesmo sobre uma matéria tão delicada e fundamental como esta - o que seria um caso de incompetência funcional e de incapacidade em seleccionar os colaboradores mais próximos. Ou sabe, e "deixou correr" ao longo de anos (até aos protestos dos cidadãos luso-russos em Janeiro passado, que a imprensa foi calando mas muito provavelmente fazendo chegar ao pessoal camarário).
 
Se não é diante de algo desta monta, que remete para os valores centrais de democracia, que se pede "responsabilidade política" esta deixa de ser convocável. Deixemo-nos de rodeios, este homem não serve, nem para a Câmara nem para quaisquer postos políticos. Pois, como isto mostra, não serve a democracia. E não é um qualquer apressado face-lifting que o esconderá.

08
Ago24

Sublevação em Inglaterra

jpt

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(Oswald Mosley, retrato do artista quando jovem)

Na semana passada aconteceu um desgraçado ataque em Southport, tendo como corolário o assassinato de três meninas e ferimentos em mais algumas. De imediato explodiu o boato que teria sido um imigrante ilegal (um dos boat people que continuadamente atravessam o Canal da Mancha) muçulmano, recém-chegado ao país. Parece que não, o miserável assassino será um filho de imigrantes ruandeses (país maioritariamente cristão), nado e criado na Grã-Bretanha. Mas pouco interessa a verdade, o boato espalhou-se, fundamentalmente através da rede Telegram (a recomendada pelo ditador Maduro, esse tão do apreço de parlamentares portugueses). Impulsionadas por essa incessante "partilha" mentirosa, turbas de milhares de britânicos têm-se manifestado, violentamente, em várias cidades - e não são apenas os degenerados tatuados, típicos do velho holiganismo futebolístico e que tão emulados vêm sendo pela ralé ocidental, pois as imagens mostram gentes com, pelo menos, aparência de serem "peles limpas".

Opõem-se à imigração, perseguem imigrantes, atacam seus locais ou de requerentes de asilo, templos e albergues, preferencialmente se muçulmanos. E empresas ou escritórios associáveis a trabalhos com a imigração. A polícia britânica afadiga-se, há milhares de detenções, já condenações a pesadas penas de prisão para alguns dos vândalos. Musk, o histriónico Citizen Kane actual (e apoiante de Donald Trump, o golpista tão do apreço de parlamentares portugueses) apoia o disseminar dos boatos e a continuidade das "jacqueries" na Grã-Bretanha, anunciando uma "guerra civil".

No centro de Londres instituições universitárias alertam os seus alunos para particulares cautelas nos próximos dias. Para restringirem a sua mobilidade. Especialmente se forem muçulmanos. Ou mesmo apenas "não-brancos". Peço, com veemência, à minha filha para se deixar ficar em casa, mesmo que ela possa perfeitamente passar por inglesa.

Não fosse ela cruzar-se com a escumalha imunda que, entre desmandos violentos, urra "CHEGA! CHEGA!". Siamesa, mas mais rija, da corja que para aqui anda a excitar-se. Mais mansa, por enquanto.

01
Ago24

Cultura em Maputo, Política aqui

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1. Um amigo, camarada de anos a fio em Moçambique, e que comunga o meu interesse pelo país e pelo que faz o nosso Estado nas relações bilaterais, e em particular nas questões culturais, avisa-me desta notícia: a nomeação de um novo adido cultural para a embaixada de Maputo, José Amaral Lopes, antigo secretário de Estado da Cultura e antigo presidente do Conselho de Administração do D. Maria II, deputado, entre várias outras posições de destaque. Dado o seu perfil "alto" é surpreendente a sua indicação para este posto, até modesto. Mas para todos que se interessam por estas matérias - a mescla entre "acção cultural externa" e "cooperação" - uma nomeação de alguém com este peso biográfico tem um significado: denota um grande e assisado interesse governamental no desenvolvimento destas relações culturais, decerto articulado com alguma capacidade para reforçar os  meios, materiais e humanos, dedicados a essas interacções. Fica-se assim - e mesmo que sem "pedir a Lua" - na expectativa de um período de grande desenvolvimento nas conjugações culturais entre ambos os países. Possamos nós fruir disso!

 

2. Paralelamente - mas sendo, de facto, uma irrelevância - a notícia desta nomeação tem um factor denotativo da mesquinhez intelectual dos mecanismos partidários, em particular os do PS. Amaral Lopes exerce actualmente as funções de presidente de junta de freguesia, eleito pelo PSD. Abandonará o posto para assumir estas novas funções.

O dirigente lisboeta do PS, David Amado, critica-o por ter abandonado a freguesia, dela fugido. Deixando assim até implícito um elogio ao actual presidente, dado que considera gravosa a sua substituição. Mas é a demonstração da total impudicícia desse dirigente socialista. Pois há poucos meses, nesta mesma sua concelhia partidária, um também presidente de junta de freguesia, o socialista Costa, abdicou das suas funções, indo (sem currículo que o justificasse) liderar um mecanismo televisivo de produção de opinião pública. Amado então nada contestou. Entretanto, aqui nos Olivais a socialista presidente de Junta, Rute Lima, aquando reeleita logo se foi a trabalhar para a nova Câmara PS de Loures, e vem por cá "exercendo" funções em regime "parcial". E Amado ficou mudo.

E já agora, até porque o postal é sobre "cultura"  e nisso "bibliotecas" - a do Camões em Maputo é muito relevante na cidade - convém relembrar que a biblioteca da Junta de Freguesia dos Olivais, a antiga Bedeteca, sita no Palácio do Contador-Mor (sempre associado aos Olivaes dos Maias) está fechada há mais de três anos. Devido a umas obras não estruturais, que se diz terem sido cabimentadas 2 vezes (!!!), e que se vieram arrastando por incúria da junta socialista - estando agora culminadas sem que a biblioteca reabra. Diz-se no bairro, e quem sabe, que estaria prevista a reabertura para o início deste Verão, depois para Outubro. Mas que deverá acontecer apenas cerca do Ano Novo - para agitar as águas em ano de eleições autárquicas. Sobre tudo isto - e tanto mais - não fala o tal David Amado. Nem as hostes socialistas.

15
Jul24

Questionário às pessoas que menstruam

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A Direcção-Geral de Saúde acaba de lançar este questionário sobre saúde menstrual, "para o qual convida à participação de todas as pessoas que menstruam."
 
Assim mesmo, "pessoas que menstruam"! Fui ler o questionário, a introdução e as 20 perguntas. Muito avisadamente em nenhum momento são essas pessoas insultadas com o anacrónico - e até vil - termo "mulher(es)".
 
Não digo mais nada, não vão algumas "pessoas que mentrua(va)m" das minhas relações próximas aborrecer-se comigo.

02
Jul24

A Ralé Britânica

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A BBC, que não é um tablóide mas sim a estação pública da pérfida Albion, esse decrépito e abjecto antigo império de onde vem essa ralé turística, tatuada e bêbeda, decidiu-se gozar com o grande atleta e nosso ídolo CR7, chamando-lhe "Misstiano Penaldo". Abandalhar um atleta numa falha é uma vergonha. Sendo uma estação de serviço público é miserável.
 
Isto é mesmo o exemplo da célebre "fleuma britânica". Ou seja, da arrogância daqueles imundos bárbaros, que nem os romanos conseguiram civilizar. Seria bom, desejável, que pelo menos durante dois ou três dias a escumalha britânica que cá anda em veraneio não fosse servida em bares e restaurantes. Que fossem confinados aos kebabs e quejandos que por cá pululam. E que a razão para tal lhes fosse explicada, naquele profundo e singelo "Fuck off". E isso serviria para nos mostrar - até fazer - menos servis. Até porque "contra os bretões marchar, marchar," sempre!

23
Jun24

(Após) Portugal-Turquia

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Repito a ligação para esta minha historieta, com mais de uma década (gosto tanto dela que a agreguei ao meu "Torna-Viagem", o livrinho que impingi aos amigos e conhecidos), uma conversa com uma polícia de trânsito sul-africano sobre Cristiano Ronaldo.
 
Passou a tal década (ou mais). Cristiano Ronaldo é o maior atleta da história portuguesa. Um símbolo, admirado por muitos de nós. E também mundo afora, polícias do Mpumalanga e outros - como a menina que ontem se perfilava diante dele durante os hinos, com as mãos na cara tamanha a emoção espantada, tocando-lhe para ver se ele era real, ou o petiz (malandrete), que aos 10 anos se escapou campo adentro para tirar uma fotografia com ele.
 
Mas CR7 é também um barómetro, mede o cretinismo nacional. Pois desde há décadas que é perene a raiva contra ele, as críticas constantes, a vir ao de cima a maldita inveja lusa contra o sucesso (se obtido "lá fora" então é pior). O que vem muito do mais rasteiro do clubismo, alguns, apesar de tudo, ainda o apupam pelas origens sportinguistas - e outros, ainda mais abjectos, pelas origens humildes. (E não esqueço o povo de Guimarães, num particular de 2013, a gritar vivas a Messi apenas para o macerar, a mostrar como é escumalha o "berço da Nação").
 
É já um veterano - a sua idade acerca-se da que tinha Lopes quando foi campeão olímpico, Livramento campeão europeu de clubes, Agostinho no cume do Alpe d'Huez, Pepe na sua lenda de central insigne. É um veterano goleador... Os cretinos, que são minoria mas vasta, continuam a bolçar que "está velho", que "joga à mama", que "é egoísta", que "não joga nada".
 
Ontem, por parvas razões, vi parte do jogo da selecção num café lisboeta. A clientela, uma mole sorvedora de caracóis, passou a tarde clamando esses impropérios, enquanto perdigotava a repugnante molhanga. Retirei-me para casa, vi um John Ford que nunca vira ("Os Cavaleiros", com o Duke e o grande William Holden). Depois passei pelo FB, onde - apesar do "banho turco" - ainda havia básicos a repetirem impropérios contra o CR7.
 
Deitei-me, a ler o Dalton Trevisan que trouxera da Feira do Livro. Não haja dúvida, aquela desgraçada Curitiba de Trevisan é aqui mesmo.

05
Jun24

Marcelo: o estado a que isto chegou

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(Este postal ficou mais de um mês resguardado em "rascunho" para o apartar de qualquer associação, implícita que fosse, à execrável acusação a Marcelo Rebelo de Sousa de "traição à pátria", levantada pelo partido CHEGA)

"Há diversas modalidades de Estado: os estados socialistas, os estados corporativos e o estado a que isto chegou! Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos" (Capitão Salgueiro Maia, no discurso mobilizador às suas tropas na partida para a revolução de 25 de Abril de 1974)

Nestes anos da sua presidência tem sido reduzida a crítica a Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), algo notório face às constantes invectivas aos outros agentes políticos, tantas vezes abrasivas. Mesmo quando se debatem algumas das suas decisões - as recentes dissoluções da assembleia ou posições avulsas sobre medidas legislativas, para exemplos maiores -, isso advém da elite política e surge sempre num cuidadoso registo plácido, denotando a quase intocabilidade de MRS. A qual muito ultrapassa o tradicional respeito pelo estatuto simbólico da presidência, o que é visível se comparando com o crivo crítico que recaía sobre todos os seus antecessores presidenciais. E diante da sua frenética actuação, esse corropio flanante e palavroso sobre o país, reina a "distracção" pública, restam apenas alguns dichotes, quantos deles em registo complacente... Até nos casos, recorrentes, que denotam alguma sua descompensação, a qual é apenas referida em surdina e/ou em tom de jocosa simpatia - como, para exemplos, os seus comentários a um decote ou, ainda pior, o já recuado, e absurdo, episódio durante a vigência da "distância social" no COVID, quando se deixou partilhar bocados de bolos com as crianças circundantes (compare-se a acrimónia com que, décadas passadas, tantos ainda referem o episódio em que Cavaco Silva comeu atabalhoadamente uma fatia de bolo-rei com o silêncio amnésico sobre este gritante disparate político comensal). Em suma, MRS tem "boa imprensa" e grande popularidade, esta constantemente visível.

O relevante é entender como pôde um homem com as suas características pessoais e o seu percurso político assumir tamanha relevância e captar tanto apreço, este que o vem blindando às críticas. Ou seja, como as representações e os anseios que a população tem sobre política e políticos coincidiram, casaram até, com a arquitectura que Rebelo de Sousa fez de si mesmo. Dito de outro modo, "Marcelo" reflecte "o estado a que isto chegou", o presente do regime.

Apesar da sua ligação ao PSD, MRS reconfigurou-se, encenando-se como se suprapartidário, reclamando uma ligação "directa" com o eleitorado, assente em "afectos" e "confiança" recíprocos. Esta evidente deriva populista (um populismo "manso", pois sem anseios ditatoriais) foi o primeiro grande abalo do sistema político-partidário deste regime, o qual tantas transformações está a conhecer nos últimos anos - e quero crer que muito devido a esta inflexão "marcelista". E é o exemplo maior dos frutos da modalidade de exercício político televisivo (não tão nova assim, pois antes já incumbara dois primeiros-ministros, Santana Lopes e Sócrates), também ela curto-circuitando o registo partidário, simulando a tal relação directa com o eleitorado - tornado uma mole de "telespectadores" -, e desnecessitando da mediação de um "campo político".

A sua mensagem política foi "pessoalista" - mais um item populista na forma como quer simular uma política esvaziada de diferentes e mesmo divergentes conteúdos programáticos, como se apenas uma actividade "natural", a ser exercida por gente benévola, "boas pessoas" dotadas de "competência" actuando em prol de um propalado "bem comum". O que é muito mais (muito menos, de facto) do que a crença numa "tecnocracia", é mesmo a implícita defesa de uma "despolitização" da sociedade, algo sumamente antidemocrático. É evidente que a componente individual é importante na política, mas o centramento nessa dimensão, a "pessoalização", é um traço ideológico - e quantas vezes matéria-prima da emergência do referido populismo. Já em 2016 aqui o referi, esta pessoalização que MRS procurou não advém da sua personalidade, como muitos crêem, é sim um projecto político: neste Portugal europeu democrático de XXI ele mimetiza a postura política de seu pai, Baltazar Rebelo de Sousa, como governador-geral de Moçambique durante o ocaso colonial. É um populismo paternalista, que toma a sociedade como "grande família" a pacificar pela elisão dos (afirmados como pequenos) conflitos imanentes através da bonomia do simpático e disponível pater familias. Assim infantilizando a população, vista como "maturável" no tempo longo - alienando-a, entenda-se. De facto, exagerando (pervertendo) Lampedusa, no desígnio de que "é preciso que quase nada mude para que tudo continue na mesma". Ou seja, trata-se de um projecto político antidesenvolvimentista, no seu conservadorismo exarcebado e demagógico.

Tal como seu pai Baltazar, MRS é um homem probo - e isso é uma grande vantagem, diante de uma população martirizada pelo consulado socratista e exaurida pela evidente cumplicidade das elites políticas e culturais/mediáticas com o clientelismo que grassa e que tanto obsta à equidade social. Mas não foi esse o argumento brandido na sua ascensão, pois - honra lhe seja feita - sempre evitou mobilizar e/ou potenciar a ira popular, esse usual pathos do populismo mais rasteiro.

Pois a popular figura "Marcelo" é uma construção individualizada, autocentrada, independendo de propaladas aleivosias alheias. Assenta numa tripeça, como se a política fosse mera expressão das personalidades actuantes: a sua inteligência; a sua cultura; a sua bondade, esta constantemente patenteada na afectividade para com o "povo" (esse histriónico paradigma "Marselfie"). Esses itens seriam assim a sustentação de uma "competência", até extraordinária, desinteressada pois apenas dadivosa, e sempre realçada face aos (normais, pois sempre algo inevitáveis) erros e falhanços de todos os âmbitos executivos. Acontece que estas anunciadas "vantagens comparativas" - a tal tripeça - são também constituintes ideológicos, pois construções estratégicas, nisso políticas. 

Será óbvio  que MRS é um homem sagaz - já aqui reproduzi um texto de Artur Portela (Filho), de inícios de 1974, que lhe consagrava essa então ainda juvenil dimensão, matéria-prima da autoconstrução desde então realizada. Mas o importante é perceber o que constitui essa noção popular da "inteligência" na política. O primeiro factor, presente neste caso, é ter consciência de que essa valorização popular da "inteligência" refracta a velha ideia, verdadeiramente "futrica", oriunda do período anterior à massificação do ensino superior, do extremo respeito (até temeroso) pela figura do "lente" universitário. Imagem advinda de uma universidade hierática, elitista, e na qual vigorava não só a violência moral como a estratificação estatutária. Alheia à democraticidade, à (auto)crítica e a prevalência da investigação. E palco de até insanos ardis clientelistas. Qualquer pessoa das gerações mais idosas saberá que a Faculdade de Direito de Lisboa (sempre dita a "Clássica") - o palco onde MRS foi activo agente - era um exemplo disto.

Mas mais relevante é perceber qual a importância da "inteligência" na política. Pois esta será letal se afastada da ponderação - da chamada "gravitas". E MRS tem dado constantes sinais de que é desprovido dessa tal "gravitas", ou por estratégia - por encenação para construir a tal aparente "relação directa", "popularucha" por assim dizer, com o eleitorado - ou por deficiência própria, devida à sua personalidade. E, em última análise, há que articular a tal "inteligência" com a fundamental "competência". Em tempos referi, sendo MRS um constitucionalista - e nisso assentando muito da sua fama de "inteligente" - é espantoso que sem qualquer hesitação tenha conduzido o país, em plena grande crise internacional, para um longuíssimo período de governo de gestão, - devido ao défice de legislação dos votos dos emigrantes, algo que era consabido mas que o distraído constitucionalista presidente desconsiderou. Apenas por falta de ponderação. Ou seja, e este caso é apenas exemplo, ainda que maior, MRS tem um exercício ininteligente dos seus poderes. Entenda-se, é um presidente incompetente. E demonstra-o de forma constante, seja em questões sistémicas, seja em questões conjunturais - o que é exemplificável na atrapalhação, verdadeiramente inconsciente, como se refere às formas como se deve comportar diante outros chefes de Estado, como aqui referi, e o próprio Santana Lopes também apontou. Já para não falar às disparatadas poses nas visitas oficiais aos países africanos da CPLP, de efeitos políticos contraproducentes invisíveis aos coros de assessores e jornalistas superficializados. Para além do errático presidente durante a crise do COVID-19, incapaz de prever, incapaz de influenciar positivamente.

Quanto à sua "grande cultura" não será necessário grande elaboração. MRS construiu a sua imagem pública na televisão, falando sobre imensos livros e nisso disseminando a percepção da tal grande "cultura" ("humanista", dizia-se), em particular junto da população pouco lida ou até mesmo iletrada. Mas, de facto, MRS inaugurou na nossa televisão o actual registo "tik-tok", pairando sobre novidades bibliográficas, flanando sem denotar qualquer profundidade analítica ou ...ponderação intelectual. De facto, será muito difícil aludir a algum seu pensamento (em texto ou discurso) minimamente relevante sobre questões actuais. Ou passadas. Pois desde há décadas que MRS perora. Apenas isso. E já em 2008 - longe de imaginar o sucesso que MRS viria a ter - aqui enunciei o rasteiro popularucho a que MRS descia, patético até, na ânsia de cooptar o apreço do "povo". Mundividência que lhe é constante, como quando, aconchegado no futebolismo, chegou, já presidente a um inadmissível "grau zero": "O Catar não respeita os direitos humanos, mas, enfim, esqueçamos isso" pois o que (lhe) importa é concentrar na selecção nacional de futebol, um dito absolutamente impensável se proveniente de algum dos seus antecessores.

Finalmente, há a tal "bondade" - o célebre "marselfismo". Acontece que os que o conhecem, directa ou indirectamente, dele têm visão bem diferente. MRS não é um homem fiável, dizem-no viperino e maledicente, o inverso da imagem consagrada no popular "Marcelo". Ou seja, o célebre episódio da "vichyssoise" com Paulo Portas não foi apenas um exemplo de ardil maquiavélico na disputa política, mas sim um traço constante de personalidade desagradável, transformada em triste mundividência. 

Ou seja, a personagem política "Marcelo" autoconstruíu-se em torno de uma coreografia das suas características individuais, em função de uma perspectiva pessoalista. Acontece que para além da probidade - que, repito, MRS decentemente nunca reclamou em termos políticos -, os outros factores fundamentais, e ensaiados, dessa coreografia, a tal "tripeça", não têm correspondência com a realidade. Não digo com isto que MRS não seja "bom" para com os (verdadeiros) seus, não seja "inteligente" ou não seja "culto". Digo que essas suas hipotéticas características privadas, pessoais, não têm correspondência com o seu exercício público, político das funções presidenciais.

E o recente caso em que MRS surgiu, inopinadamente, a reclamar que Portugal "pague reparações" pelo multissecular passado ultramarino é um caso extremo dessa incompetência presidencial. Em primeiro lugar, porque isso não lhe proveio de um pensamento próprio, reflectido. Há já 7 anos referi a pobreza do saber histórico e do pensamento político de MRS sobre essas questões, aquando das suas disparatadas acções e declarações em visita ao Senegal ("Marcelo e a escravocracia", "Portugal e as Escravaturas"), durante as quais ecoou, com total despropósito, o vetusto e ignaro mito do Portugal como "pioneiro do abolicionismo". E agora, sete anos depois, e sem ter voltado ao assunto, aparece em sentido contrário, em declarações "confusionistas", amalgamando um feixe diversificado de questões, políticas e ideológicas. Nisso promovendo não o debate mas o despique, não o esclarecimento do passado e seus efeitos no presente mas sim a agit-prop, de conteúdos avessos. E implicando, pior ainda, reacções internacionais.

Recordo, MRS é o presidente da república. Tem instrumentos e influência. Lembro até aquilo do "Alto Patrocínio..." Poderia nestes anos ter induzido e dinamizado a reflexão colectiva, de especialistas, de generalistas, da população em geral. Nisso induzindo programas, conferências, publicações, etc., convocando a atenção social sobre estas temáticas. Que obstassem ao tétrico panorama actual sobre estas questões do passado colonial e suas refracções actuais, em que mesmo os grandes intelectuais patinam na mais tétrica das mediocridades: recordo que no último mês ouvi o consagrado historiador Francisco Bethencourt dizer na televisão ser necessário pagar reparações às antigas colónias para que os países tenham melhores relações - isto pode parece ao incauto uma coisa acertada mas é uma atoarda ignorante, indigna de infundamentada, arrepiando ver alguém com aquele estatuto disparatar assim por mera militância; e, em sinal contrário, ouvir uma atoarda de similar indignidade intelectual do também consagrado historiador Rui Ramos, perorando na rádio que "a descolonização começou em 1961". Entenda-se  bem, o passado ultramarino (no sentido de pré-colonial e colonial) português, e suas hipotéticas actuais refracções no presente, vêm apenas servindo para alguns intelectuais se situarem numa "topologia ideológica" e, tantas vezes, simularem uma "acção política", nisso arrastando os sempre exarcebados "activistas". À "direita" e à "esquerda"...

O Presidente MRS poderia ter dinamizado, preparado, este debate. Mas não o fez. De repente, num contexto internacional, "deu-lhe na cabeça" e "amandou" umas "bocas", tudo e todos confundindo. Pois não tem uma entourage nem um "bloco político" em seu torno que o aconselhem. E não tem a tal gravitas... É um presidente errático, nisso incompetente. Acima de tudo porque infundamentado. E este caso do "pagamento de reparações" é um caso exemplar, extremo, dessa sua... irrelevância.

Há já dois anos, a propósito de mais um patético episódio, quando MRS beijou um ventre grávido, aqui escrevi: "Honestamente, a sensação é que Rebelo de Sousa não está bem. Porventura macerado por efeito de insucessos políticos, ou por outras razões desconhecidas, a sua coreografia está descalibrada. E em assim sendo este tipo de atitudes continuarão, e aumentará o seu descabimento. Começa pois a ser óbvio que urge a intervenção da sua "entourage". Mas qual?, é a pergunta. Que núcleo político, real, está em torno do Presidente da República Portuguesa? Que o possa ajudar neste momento que começa a parecer crítico.".

E o problema é esse, não é o da "solidão" pessoal do presidente como a superficial imprensa agora começa a referir. É o da "solidão" política, da extrema pessoalização do exercício político. O da sua infundamentação. E nisso o da incapacidade de entender a sociedade e de a abordar, sob o viés próprio de um quadro colectivo particular de opções, colectivamente defendido. Entenda-se, política... Ora a ascensão de MRS e a perenidade da sua popularidade - apesar de tudo isto - tem uma explicação, que não se resume ao seu talento cénico. MRS e "Marcelo" mantêm-se pois contrapõem-se, aliás, são popularmente contrapostos aos outros agentes políticos. Assim sendo ele é o grande sinal da degenerescência deste regime político-partidário. MRS/"Marcelo" é - mesmo - "o estado a que isto chegou". E este "estado" é mau.

Díficil tarefa, reconstrutora, espera o seu sucessor. Quem?

(Adenda: Agradeço à equipa da SAPO o destaque dado a este postal que anteoriormente publiquei no Delito de Opinião)

15
Mai24

O Aeroporto "Luís de Camões"

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1. Da construção de aeroportos nada percebo. Diante do anúncio da construção do futuro serviço lisboeta ocorreu-me uma previsão e uma preocupação: a) já serei pasto de compostagem quando aquilo for inaugurado; b) que impacto poderá ter na Academia de Alcochete?
 
2. Na alvorada leio várias críticas, sarcásticas ou até indignadas. Não à construção, ou aos critérios da escolha - coisa mais complexas de abordar. Mas ao nome escolhido, o "Luís de Camões", matéria mais acessível ao perorar cidadão. Para mim a questão é simples, as estações aeroportuárias devem ser nomeadas como as ferroviárias: a estação do Rossio, o aeroporto da Portela de Sacavém... Sem mais.
 
Ainda assim, a dar-se um epónimo ao novo aeroporto poderia ser "Bartolomeu de Gusmão", recuperando-o até aos brasileiros, ou nisso "incentivando" o espírito daquilo da CPLP. Mas é óbvio que se tal acontecesse o jornal "Público", esta versão trimestral do presidente Rebelo de Sousa, a página "Buala", o partido LIVRE, a rede de "activistas", o professor Bethencourt, o colectivo CES coimbrão, as ramificações entre Campolide e as Forças Armadas, e outros, tudo se uniria a denunciar a inadequação dessa opção, dado o estatuto e vivência colonial do jesuítico Bartolomeu, desprovida que foi a sua vida de denúncias anti-racistas e de militâncias libertadoras.
 
Ou então, e seria a minha preferência, poder-se-ia escolher Aeroporto "Fernão Mendes Pinto", esse verdadeiro arquétipo do português histórico, o grande viajante errático, o maior narrador da tal "gesta". Mas também os "intelectuais orgânicos" e os "activistas" se ergueriam, avessos, pois ao mariola, por mais complexa de ambivalente seja a sua "Peregrinação", não se pode atribuir o estatuto de antepassado de Fanon, Said ou mesmo a condição de "subalterno".
 
3. Vêm estas aceradas críticas ao "Luís de Camões" de trabalhadores intelectuais, alguns sendo professores - universitários, liceais -, até mesmo pedagogos de questões literárias. São todos do mesmo universo "moral": a "esquerda", identidade que lhes servirá de unguento para o cieiro da alma, escalfeta do ânimo, pilates do intelecto. Pois se assim são nada sinistros seguem, lutam pelo "bem" e pelo "certo", capazes de análises profundas, assentes em conhecimentos desalienados. Invejo-os, deve ser bom ser tão bonito.
 
A nenhum destes intelectuais li críticas, resmungos que fossem, quando se percebeu que o antigo ministro da Cultura - o socratista Adão e Silva (um daqueles frenéticos publicistas que defenderam Sócrates até ao fim, como Galamba, Vale de Almeida, Câncio e quejandas execrandas figuras) - se esquecera de comemorar o quinto centenário de Camões, decidido para este ano.
 
As razões para tal são simples: não podem dizer mal da "esquerda", socratista ou outra, pois os "neoliberais" e os "fascistas" estão à espreita, sedentos... Daí que urge criticar, seja lá o que for, vindo da "direita", agora no governo. E, acima de tudo, não sabem que fazer do "Camões", agora que há estas críticas "decoloniais", "póscoloniais", e do próprio Professor Rebelo de Sousa.
 
4. Como tal, e ainda vamos só na madrugada seguinte, toca de criticar a opção, como "pirosa" ou coisa similar. E feita por um PM e seu governo, aos quais logo se aponta não serem militantes leitores, até especializados, de Camões.
 
De nada valerá dizer a estes sábios e pertinentes intelectuais que países nossos congéneres têm aeroportos nomeados por figuras grandes das culturas locais: "Aristóteles" (haverá melhor nome para um aeroporto?), "Liszt", "Prokofiev". Pois "com o piroso dos outros posso eu bem", logo ripostarão eles. E também de nada valerá opor-lhes o espúrio que é o habitual costume de nomear as instalações com nome de políticos, frenesim dos seus correligionários em busca de eternização (de Jan Smuts para Joanesburgo e daí para Oliver Tambo, para exemplo). Para além do extremo mau-gosto de chamar "Francisco Sá Carneiro" (já agora, o regime conseguiu ao fim de 45 anos ter uma versão sobre o incidente aéreo que o vitimou?) a um aeroporto inaugurado quando o antigo PM tinha... 11 anos.
 
Mas de nada valerá dizer-lhes isto. Pois são cultos, analíticos, pertinentes. De "esquerda", entenda-se. Ariscos aos poderes, julgam-se e dizem-se. Ariscos aos políticos, os de "direita", os que não lêem. Nem Camões nem o resto...
 
5. A estes intelectuais - universitários, liceais, liberais - desagrada o nome "Camões", pois "fascista", "colono" e, pior, "piroso". Mas a nenhum deles li críticas quando, há anos, o governo socratista mandou chamar "Humberto Delgado" ao aeroporto da Portela. Apupam este Montenegro e seus segundos por não terem lido Camões. Mas eles, os tais intelectuais, engoliram sem mais a mitografia do "reviralho", a grande democraticidade do afinal proto-generalíssimo Delgado. E, ainda que intelectuais - sábios e pertinentes -, não o leram. Nem aos seus elogios, ele homem feito, oficial instituído, II Guerra já avançada,  Wermacht URSS adentro, ao grande Adolf Hitler. Nada disso os incomodou...
 
Estes tipos não são ariscos. São bichanos... Uma "esquerda" bichana.
 
(Adenda: agradeço à equipa da SAPO o destaque dado a este postal, também colocado no Delito de Opinião.)

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