(Este postal ficou mais de um mês resguardado em "rascunho" para o apartar de qualquer associação, implícita que fosse, à execrável acusação a Marcelo Rebelo de Sousa de "traição à pátria", levantada pelo partido CHEGA)
"Há diversas modalidades de Estado: os estados socialistas, os estados corporativos e o estado a que isto chegou! Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos" (Capitão Salgueiro Maia, no discurso mobilizador às suas tropas na partida para a revolução de 25 de Abril de 1974)
Nestes anos da sua presidência tem sido reduzida a crítica a Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), algo notório face às constantes invectivas aos outros agentes políticos, tantas vezes abrasivas. Mesmo quando se debatem algumas das suas decisões - as recentes dissoluções da assembleia ou posições avulsas sobre medidas legislativas, para exemplos maiores -, isso advém da elite política e surge sempre num cuidadoso registo plácido, denotando a quase intocabilidade de MRS. A qual muito ultrapassa o tradicional respeito pelo estatuto simbólico da presidência, o que é visível se comparando com o crivo crítico que recaía sobre todos os seus antecessores presidenciais. E diante da sua frenética actuação, esse corropio flanante e palavroso sobre o país, reina a "distracção" pública, restam apenas alguns dichotes, quantos deles em registo complacente... Até nos casos, recorrentes, que denotam alguma sua descompensação, a qual é apenas referida em surdina e/ou em tom de jocosa simpatia - como, para exemplos, os seus comentários a um decote ou, ainda pior, o já recuado, e absurdo, episódio durante a vigência da "distância social" no COVID, quando se deixou partilhar bocados de bolos com as crianças circundantes (compare-se a acrimónia com que, décadas passadas, tantos ainda referem o episódio em que Cavaco Silva comeu atabalhoadamente uma fatia de bolo-rei com o silêncio amnésico sobre este gritante disparate político comensal). Em suma, MRS tem "boa imprensa" e grande popularidade, esta constantemente visível.
O relevante é entender como pôde um homem com as suas características pessoais e o seu percurso político assumir tamanha relevância e captar tanto apreço, este que o vem blindando às críticas. Ou seja, como as representações e os anseios que a população tem sobre política e políticos coincidiram, casaram até, com a arquitectura que Rebelo de Sousa fez de si mesmo. Dito de outro modo, "Marcelo" reflecte "o estado a que isto chegou", o presente do regime.
Apesar da sua ligação ao PSD, MRS reconfigurou-se, encenando-se como se suprapartidário, reclamando uma ligação "directa" com o eleitorado, assente em "afectos" e "confiança" recíprocos. Esta evidente deriva populista (um populismo "manso", pois sem anseios ditatoriais) foi o primeiro grande abalo do sistema político-partidário deste regime, o qual tantas transformações está a conhecer nos últimos anos - e quero crer que muito devido a esta inflexão "marcelista". E é o exemplo maior dos frutos da modalidade de exercício político televisivo (não tão nova assim, pois antes já incumbara dois primeiros-ministros, Santana Lopes e Sócrates), também ela curto-circuitando o registo partidário, simulando a tal relação directa com o eleitorado - tornado uma mole de "telespectadores" -, e desnecessitando da mediação de um "campo político".
A sua mensagem política foi "pessoalista" - mais um item populista na forma como quer simular uma política esvaziada de diferentes e mesmo divergentes conteúdos programáticos, como se apenas uma actividade "natural", a ser exercida por gente benévola, "boas pessoas" dotadas de "competência" actuando em prol de um propalado "bem comum". O que é muito mais (muito menos, de facto) do que a crença numa "tecnocracia", é mesmo a implícita defesa de uma "despolitização" da sociedade, algo sumamente antidemocrático. É evidente que a componente individual é importante na política, mas o centramento nessa dimensão, a "pessoalização", é um traço ideológico - e quantas vezes matéria-prima da emergência do referido populismo. Já em 2016 aqui o referi, esta pessoalização que MRS procurou não advém da sua personalidade, como muitos crêem, é sim um projecto político: neste Portugal europeu democrático de XXI ele mimetiza a postura política de seu pai, Baltazar Rebelo de Sousa, como governador-geral de Moçambique durante o ocaso colonial. É um populismo paternalista, que toma a sociedade como "grande família" a pacificar pela elisão dos (afirmados como pequenos) conflitos imanentes através da bonomia do simpático e disponível pater familias. Assim infantilizando a população, vista como "maturável" no tempo longo - alienando-a, entenda-se. De facto, exagerando (pervertendo) Lampedusa, no desígnio de que "é preciso que quase nada mude para que tudo continue na mesma". Ou seja, trata-se de um projecto político antidesenvolvimentista, no seu conservadorismo exarcebado e demagógico.
Tal como seu pai Baltazar, MRS é um homem probo - e isso é uma grande vantagem, diante de uma população martirizada pelo consulado socratista e exaurida pela evidente cumplicidade das elites políticas e culturais/mediáticas com o clientelismo que grassa e que tanto obsta à equidade social. Mas não foi esse o argumento brandido na sua ascensão, pois - honra lhe seja feita - sempre evitou mobilizar e/ou potenciar a ira popular, esse usual pathos do populismo mais rasteiro.
Pois a popular figura "Marcelo" é uma construção individualizada, autocentrada, independendo de propaladas aleivosias alheias. Assenta numa tripeça, como se a política fosse mera expressão das personalidades actuantes: a sua inteligência; a sua cultura; a sua bondade, esta constantemente patenteada na afectividade para com o "povo" (esse histriónico paradigma "Marselfie"). Esses itens seriam assim a sustentação de uma "competência", até extraordinária, desinteressada pois apenas dadivosa, e sempre realçada face aos (normais, pois sempre algo inevitáveis) erros e falhanços de todos os âmbitos executivos. Acontece que estas anunciadas "vantagens comparativas" - a tal tripeça - são também constituintes ideológicos, pois construções estratégicas, nisso políticas.
Será óbvio que MRS é um homem sagaz - já aqui reproduzi um texto de Artur Portela (Filho), de inícios de 1974, que lhe consagrava essa então ainda juvenil dimensão, matéria-prima da autoconstrução desde então realizada. Mas o importante é perceber o que constitui essa noção popular da "inteligência" na política. O primeiro factor, presente neste caso, é ter consciência de que essa valorização popular da "inteligência" refracta a velha ideia, verdadeiramente "futrica", oriunda do período anterior à massificação do ensino superior, do extremo respeito (até temeroso) pela figura do "lente" universitário. Imagem advinda de uma universidade hierática, elitista, e na qual vigorava não só a violência moral como a estratificação estatutária. Alheia à democraticidade, à (auto)crítica e a prevalência da investigação. E palco de até insanos ardis clientelistas. Qualquer pessoa das gerações mais idosas saberá que a Faculdade de Direito de Lisboa (sempre dita a "Clássica") - o palco onde MRS foi activo agente - era um exemplo disto.
Mas mais relevante é perceber qual a importância da "inteligência" na política. Pois esta será letal se afastada da ponderação - da chamada "gravitas". E MRS tem dado constantes sinais de que é desprovido dessa tal "gravitas", ou por estratégia - por encenação para construir a tal aparente "relação directa", "popularucha" por assim dizer, com o eleitorado - ou por deficiência própria, devida à sua personalidade. E, em última análise, há que articular a tal "inteligência" com a fundamental "competência". Em tempos referi, sendo MRS um constitucionalista - e nisso assentando muito da sua fama de "inteligente" - é espantoso que sem qualquer hesitação tenha conduzido o país, em plena grande crise internacional, para um longuíssimo período de governo de gestão, - devido ao défice de legislação dos votos dos emigrantes, algo que era consabido mas que o distraído constitucionalista presidente desconsiderou. Apenas por falta de ponderação. Ou seja, e este caso é apenas exemplo, ainda que maior, MRS tem um exercício ininteligente dos seus poderes. Entenda-se, é um presidente incompetente. E demonstra-o de forma constante, seja em questões sistémicas, seja em questões conjunturais - o que é exemplificável na atrapalhação, verdadeiramente inconsciente, como se refere às formas como se deve comportar diante outros chefes de Estado, como aqui referi, e o próprio Santana Lopes também apontou. Já para não falar às disparatadas poses nas visitas oficiais aos países africanos da CPLP, de efeitos políticos contraproducentes invisíveis aos coros de assessores e jornalistas superficializados. Para além do errático presidente durante a crise do COVID-19, incapaz de prever, incapaz de influenciar positivamente.
Quanto à sua "grande cultura" não será necessário grande elaboração. MRS construiu a sua imagem pública na televisão, falando sobre imensos livros e nisso disseminando a percepção da tal grande "cultura" ("humanista", dizia-se), em particular junto da população pouco lida ou até mesmo iletrada. Mas, de facto, MRS inaugurou na nossa televisão o actual registo "tik-tok", pairando sobre novidades bibliográficas, flanando sem denotar qualquer profundidade analítica ou ...ponderação intelectual. De facto, será muito difícil aludir a algum seu pensamento (em texto ou discurso) minimamente relevante sobre questões actuais. Ou passadas. Pois desde há décadas que MRS perora. Apenas isso. E já em 2008 - longe de imaginar o sucesso que MRS viria a ter - aqui enunciei o rasteiro popularucho a que MRS descia, patético até, na ânsia de cooptar o apreço do "povo". Mundividência que lhe é constante, como quando, aconchegado no futebolismo, chegou, já presidente a um inadmissível "grau zero": "O Catar não respeita os direitos humanos, mas, enfim, esqueçamos isso" pois o que (lhe) importa é concentrar na selecção nacional de futebol, um dito absolutamente impensável se proveniente de algum dos seus antecessores.
Finalmente, há a tal "bondade" - o célebre "marselfismo". Acontece que os que o conhecem, directa ou indirectamente, dele têm visão bem diferente. MRS não é um homem fiável, dizem-no viperino e maledicente, o inverso da imagem consagrada no popular "Marcelo". Ou seja, o célebre episódio da "vichyssoise" com Paulo Portas não foi apenas um exemplo de ardil maquiavélico na disputa política, mas sim um traço constante de personalidade desagradável, transformada em triste mundividência.
Ou seja, a personagem política "Marcelo" autoconstruíu-se em torno de uma coreografia das suas características individuais, em função de uma perspectiva pessoalista. Acontece que para além da probidade - que, repito, MRS decentemente nunca reclamou em termos políticos -, os outros factores fundamentais, e ensaiados, dessa coreografia, a tal "tripeça", não têm correspondência com a realidade. Não digo com isto que MRS não seja "bom" para com os (verdadeiros) seus, não seja "inteligente" ou não seja "culto". Digo que essas suas hipotéticas características privadas, pessoais, não têm correspondência com o seu exercício público, político das funções presidenciais.
E o recente caso em que MRS surgiu, inopinadamente, a reclamar que Portugal "pague reparações" pelo multissecular passado ultramarino é um caso extremo dessa incompetência presidencial. Em primeiro lugar, porque isso não lhe proveio de um pensamento próprio, reflectido. Há já 7 anos referi a pobreza do saber histórico e do pensamento político de MRS sobre essas questões, aquando das suas disparatadas acções e declarações em visita ao Senegal ("Marcelo e a escravocracia", "Portugal e as Escravaturas"), durante as quais ecoou, com total despropósito, o vetusto e ignaro mito do Portugal como "pioneiro do abolicionismo". E agora, sete anos depois, e sem ter voltado ao assunto, aparece em sentido contrário, em declarações "confusionistas", amalgamando um feixe diversificado de questões, políticas e ideológicas. Nisso promovendo não o debate mas o despique, não o esclarecimento do passado e seus efeitos no presente mas sim a agit-prop, de conteúdos avessos. E implicando, pior ainda, reacções internacionais.
Recordo, MRS é o presidente da república. Tem instrumentos e influência. Lembro até aquilo do "Alto Patrocínio..." Poderia nestes anos ter induzido e dinamizado a reflexão colectiva, de especialistas, de generalistas, da população em geral. Nisso induzindo programas, conferências, publicações, etc., convocando a atenção social sobre estas temáticas. Que obstassem ao tétrico panorama actual sobre estas questões do passado colonial e suas refracções actuais, em que mesmo os grandes intelectuais patinam na mais tétrica das mediocridades: recordo que no último mês ouvi o consagrado historiador Francisco Bethencourt dizer na televisão ser necessário pagar reparações às antigas colónias para que os países tenham melhores relações - isto pode parece ao incauto uma coisa acertada mas é uma atoarda ignorante, indigna de infundamentada, arrepiando ver alguém com aquele estatuto disparatar assim por mera militância; e, em sinal contrário, ouvir uma atoarda de similar indignidade intelectual do também consagrado historiador Rui Ramos, perorando na rádio que "a descolonização começou em 1961". Entenda-se bem, o passado ultramarino (no sentido de pré-colonial e colonial) português, e suas hipotéticas actuais refracções no presente, vêm apenas servindo para alguns intelectuais se situarem numa "topologia ideológica" e, tantas vezes, simularem uma "acção política", nisso arrastando os sempre exarcebados "activistas". À "direita" e à "esquerda"...
O Presidente MRS poderia ter dinamizado, preparado, este debate. Mas não o fez. De repente, num contexto internacional, "deu-lhe na cabeça" e "amandou" umas "bocas", tudo e todos confundindo. Pois não tem uma entourage nem um "bloco político" em seu torno que o aconselhem. E não tem a tal gravitas... É um presidente errático, nisso incompetente. Acima de tudo porque infundamentado. E este caso do "pagamento de reparações" é um caso exemplar, extremo, dessa sua... irrelevância.
Há já dois anos, a propósito de mais um patético episódio, quando MRS beijou um ventre grávido, aqui escrevi: "Honestamente, a sensação é que Rebelo de Sousa não está bem. Porventura macerado por efeito de insucessos políticos, ou por outras razões desconhecidas, a sua coreografia está descalibrada. E em assim sendo este tipo de atitudes continuarão, e aumentará o seu descabimento. Começa pois a ser óbvio que urge a intervenção da sua "entourage". Mas qual?, é a pergunta. Que núcleo político, real, está em torno do Presidente da República Portuguesa? Que o possa ajudar neste momento que começa a parecer crítico.".
E o problema é esse, não é o da "solidão" pessoal do presidente como a superficial imprensa agora começa a referir. É o da "solidão" política, da extrema pessoalização do exercício político. O da sua infundamentação. E nisso o da incapacidade de entender a sociedade e de a abordar, sob o viés próprio de um quadro colectivo particular de opções, colectivamente defendido. Entenda-se, política... Ora a ascensão de MRS e a perenidade da sua popularidade - apesar de tudo isto - tem uma explicação, que não se resume ao seu talento cénico. MRS e "Marcelo" mantêm-se pois contrapõem-se, aliás, são popularmente contrapostos aos outros agentes políticos. Assim sendo ele é o grande sinal da degenerescência deste regime político-partidário. MRS/"Marcelo" é - mesmo - "o estado a que isto chegou". E este "estado" é mau.
Díficil tarefa, reconstrutora, espera o seu sucessor. Quem?
(Adenda: Agradeço à equipa da SAPO o destaque dado a este postal que anteoriormente publiquei no Delito de Opinião)