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Nenhures

Nenhures

15
Fev25

Vance em Munique

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Atrasei-me a cozinhar o almoço (o esparregado, verídico claro, e com malagueta, requebro da minha lavra, estava bom) e por isso manducando vi na tv em directo o discurso do vice-presidente americano Vance em Munique numa (parecia que não) conferência sobre segurança.
 
Fiquei estupefacto, tanto que o pitéu que preparara (não almoçava sozinho) não me escorria. Lembrei-me durante aquela estuporada arenga do "O Americano Tranquilo" de Greene, como tantas vezes me ocorre - já o escrevi em blog várias vezes, é o livro da minha vida, li-o pela primeira vez na adolescência, nessa mesma o reli e mais três vezes ao longo da vida. E logo nessa juventude, da primeira vez, me deparei com aquilo de Fowler, o protagonista, não ser apenas o meu alter ego. Mas sim de o perceber o meu ego, uma condenação a uma relativa mas brutal infelicidade e a uma essencial impotência. Ainda assim não bebi ao almoço. Claro que quem nunca leu o livro não perceberá a minha alusão...
 
Vance elaborou, estupidamente, sobre as rezas e a (sua) moral. Chegado ao fim do dia beberiquei. É dia dos namorados e, como tal, tive um jantar romântico. Em "bromance", como agora se diz. O que um tipo como Vance aceitará, homens como deve "de ser" que se gostam e comem juntos, falam da vida que escorre (finda até, já...) e de mulheres (escasseiam, claro, que a gente fenece e desperdiçámos as mais valiosas). E de outras coisas, também.
 
Regresso a casa, não a desoras. E antes de ir ao Filmin, ver um qualquer clássico, passo pelo FB. E vejo uns coirões a louvar o discurso do Vance. "Labregos", escrevi-os há dias em postal de blog. Como é possível louvar uma coisa daquelas? A Carolina - minha filha, jovem que hoje soube que seguirá para belíssimo lugar e posto -, a Teolinda - minha irmã, não tão jovem que sempre está em belíssimo lugar e posto -, proíbem-me de usar o léxico abrangente português. Mas em assim sendo como posso eu (greeniano Fowler) dizer estes imbecis?
 
São uns morcões! Alguns são mesmo uns doutores morcões! E - que não restem dúvidas - é evidente que falo (também) de si, seu caralho!

02
Fev25

De Setúbal à Graça

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Foi um sábado cheio. Dado o gentil convite que a Lígia Águas me fizera fui à biblioteca municipal de Setúbal "apresentar" o meu "Torna-Viagem". Para isso fui acompanhado por umas dúzias de amigos, os quais destemidamente cruzaram o Tejo. Começámos por visitar a bela exposição do Miguel Navas na Casa de Cultura. Depois enchemos uma ala no Adega do Zé, para um cultural almoço.
 

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Saciados os convivas avançou-se até à sessão - enchendo a sala, e nessa reencontrando amigas que não via há trinta anos, assim emocionando-me -, na qual a Patricia Portela fez o favor de me louvar e algo provocar. Eu defendi-me como pude, tentando em atrapalhada verve reclamar o que Nerval um dia disse (ainda que depois tenha escrito coisas bem diferentes): "Como são felizes, os ingleses, por poderem escrever e ler capítulos de observação desprovidos de qualquer mistura da invenção romanesca!".
 
Depois seguiu-se uma inusitada venda de livros, um verdadeiro frenesim comercial. Pois alguns amigos haviam-me ordenado "se vais apresentar o livro tens de levar exemplares...". Assim fiz, encomendando alguns e transportando-os para o efeito. Após isso houve fragmentação da mole, alguns avançaram aos seus destinos, outros derivaram para jantarada na capital do choco. Eu e alguns outros refugiámo-nos num simpático pequeno largo entre a Luísa Todi e a Bocage, bebeu-se algo acompanhado de tremoços. Nesse entretanto um dos convivas, sorridente, disse-me "fizeste bem em pontapear a exposição sobre o colonialismo, estão a remendar aquilo" (irados resmungos que eu fiz há alguns meses) - decerto que os erros factuais, que da anacrónica sanha nunca se expurgarão. Ri-me com isso...
 
Regressei à capital, indo a jantar de sexagésimo aniversário de amiga, ocorrido no para mim desconhecido "A'Paranza", aos Anjos, um simpático restaurante mas... italiano. Era um universo mais "académico", face ao qual me recolhi, restringindo-me a fugaz investida contra a referida "anacrónica sanha decolonial", tendo obtido a rendição total sobre o assunto. Em dia festivo para mim (e não só) logo abdiquei do "sem quartel" oratório, sempre exigível nessa matéria, e retirei-me junto ao pequeno bar onde me dediquei a ensinar aos - simpaticíssimos - italianos da casa os diferentes conteúdos semânticos dos termos "saideira" e "abaladiça". Mais tarde fui recompensado com grapa(s)... Quando os comensais terminaram o longo repasto (vi passar inúmeras iguarias ... italianas) acompanhei uma amiga - que já vinha da passeata sadina - até sua casa, à Graça (um cavalheiro nunca deixa uma senhora sozinha calcorreando as noites dos bairros populares).
  
Cumprida a nobre função, ajoujado pela mochila com os remanescentes exemplares do "Torna-Viagem", esses que não havia conseguido impingir, lá pelas 2 da manhã, constatei que não tomara o pequeno-almoço e que talvez fosse conveniente acomodar-me antes de dormir. Entrei numa tasca nos baixios daquele bairro. Comi uma "sande" de presunto (apesar da tensão alta que me importuna o destino), bebericando uma imperial e olhando o grupo de felizes universitários que ali se divertiam com placidez (e com um punhado de amigas lindíssimas, não apenas jovens), nisso despertando-se-me a nostalgia, pois mesa tão similar a tantas que vivi há décadas.
 

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De súbito apareceu o Zé Maria, amigo moçambicano agora músico residente no Secret Garden LX, não poderia haver melhor conclusão para um dia de "Torna-Viagem"... Aliás, poderia, bastaria para tal que não estivessem ele e seus amigos, bem chateados - pois a eles recusava o velhote tasqueiro servir as apetitosas sandes de presunto, as quais entretanto aviava aos meus patrícios... Pois é, é que "ele" há destas coisas, a gente-nós, "brrrancos", é que nem notamos.
 
Enfim, em suma, hoje acordado fiquei a olhar para o punhado de livros que me sobraram, "raisparta, que vou fazer disto?"... Mas não seja por isso, foi mesmo um belo sábado. Obrigado aos amigos excursionistas...
 
(Para quem se possa interessar: o meu "Torna-Viagem" só se encontra no portal da plataforma editorial Bookmundo, através desta ligação: https://publishpt.bookmundo.com/books/366121 )

01
Fev25

A Cultura Portuguesa

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Fruto do surto de imigrantes e da desestruturação do serviços estatais de controlo fronteiriço - os anos de governação de Costa foram de pungente incompetência, e não só nesta matéria - mas também eco dessa problemática na Europa, grassa por cá uma atrapalhada discussão sobre a imigração. Os repugnantes fascistas alardeam, sem pudor e assertivos, a sua boçalidade. Os esquerdalhos bolçam, convictos, alimentando-os. Ali ao "Bloco Central" o secretário-geral do PS inflectiu agora um pouco o seu discurso, no rumo do bom senso, o que chocou muitos dos seus cúmplices. Mas logo os do PSD, em vez de acolherem essa via acusam-no de "eleitoralismo", mostrando-se epígonos da infecunda tralha que fez do PSD o PSD, restringidos não aos respectivos umbigos mas sim aos seus imundos prepúcios. É o estertor do regime, prisioneiro de gente capim.
 
Santos terá dito que aos imigrantes cumpre adaptarem-se à "cultura portuguesa". Logo à "esquerda" se insurgiram. Por exemplo, a socratista Ana Catarina Mendes - que foi deputada por Setúbal (pobre concelho), ministra e agora vai como eurodeputada - terá posto a mão na anca e dito que não sabia o que isso era. Uma jovem autarca bloquista, Escaja, foi a um desses programas ao laréu clamar que "a cultura portuguesa é uma merda". É notório que a nenhuma destes - e de vários outros - socratistas ou esquerdistas passa pela cabeça a simplérrima distinção entre "adaptar" e "adoptar". E isto nem lhes é demagogia, são mesmo apenas esta miséria! E entretanto, presumo que lá para outras bandas, os mithás ribeiros deste rincão preparem romarias à espada de Afonso Henriques, entoando "São Jorge", para comprovarem a existência da tal "cultura" daquela que dizem "Nação", para sublinharem o seu imbecil apreço pelo Estado Novo. Sem rebuço, estamos entregues aos bípedes...
 
O que é estranho é que há não muito tempo no país esse assunto era muito abordado. Eduardo Lourenço disse qualquer coisa como "temos um excesso de identidade" (escrevo de cor, não consultando livros), e ele próprio - no seu elíptico ensaísmo - discorreu sobre isso, a equação cultura/identidade, Alfredo Margarido deu curta mas decisiva canelada nas asneiras do senso comum, João Leal mostrou-nos os rumos intelectuais dos seus construtores, Carlos Leone também, as pessoas entusiasmaram-se e compraram milhares (e louvaram) de exemplares do vácuo "Portugal, o medo de existir" de José Gil, alguns sociólogos e antropólogos escreveram sobre as mundividências rurais e suas transições para o urbano. Talvez XXI não tenha trazido muito de novo sobre isso, não sei, não é o meu ofício nem meu interesse crucial, não leio nem procuro mais sobre o assunto.
 
Mas quando o espaço público se enche de atoardas sobre uma putativamente inexistente "cultura nacional" muito lamento a inexistência de "intelectuais públicos" antropólogos - se não falam agora falarão quando? - que apartem os sentidos de "cultura", e ensinem (é o termo) a operacionalizá-los e, mais do que tudo, a entender o que é uma fluidez estruturante. Até porque nos arriscamos não só ao predomínio desta incúria intelectual como ao alardear da superficialidade convencida - há algum tempo caí do sofá quando vi o ar erudito de Paulo Portas a recomendar na tv o "O Crisântemo e a Espada" (1946) de Ruth Benedict, como se fosse a porta para entender o Japão actual, a sua "cultura nacional", uma coisa pungente independentemente da magnitude da autora, mulher do seu tempo, intelectual do seu tempo, livro do seu tempo... Pois não há mesmo antropólogos "intelectuais públicos" portugueses - o único que o poderia ser, dotado da densidade e gravitas para isso, legitimamente isentou-se do rumo, calcorreia a sua via. Estamos assim, e repito-me, entregues aos bípedes...
 
É fim do mês, estico os restos do rancho. Almocei massa com atum, este refogado com malaguetas. Ao tabuleiro, diante da televisão. Liguei para o Filmin, recomendável canal-cinemateca e de barata subscrição. Comecei o Lawrence da Arábia, que não vejo há mais de uma década. "Só o começo", prometi-me, no afã de regressar às minhas gratuitas inutilidades. Mas o filme é grandioso, e maravilhosa a subtil explicitude de O'Toole, fui-me deixando ficar, (re)descobrindo tudo aquilo, encantado. Dei comigo a dizer-me "que pobres, coitados, são os admiradores do Tarantino"...
 
E depois, um bom bocado depois, exultei. Parei e tirei esta fotografia, pois ali está a súmula de tudo isto. O'Toole e Omar Sharif atravessam uma terrível rota do deserto, um dos soldados de Sharif caiu do camelo durante a noite, o seu chefe recusa-se a recuar para o salvar, no fatalismo do que aquele era seu destino ("estava escrito"). O'Toole (Lawrence) insurge-se, vai sozinho salvar o "naufragado". Quando regressa, após inclemente travessia, Sharif, aliviado, passa-lhe o seu (precioso) cantil. E Lawrence (O'Toole) - essa peculiar figura do Império, do "Ocidente", retratado num filme típico mas passível de múltiplas leituras - responde-lhe "Nada está escrito", clamando, ainda ali trôpego, o primado da indeterminação, essa construção histórica e conflitual de uma civilização específica. Cultura.
 
E se eu tivesse a dimensão de um "intelectual público" faria deste fotograma a demonstração da mediocridade destes ignorantes demagogos. Mas sei que não o sou, sigo sapateiro sem rabecão. Por isso, acabrunhado, apago a televisão. Saio e vou beber uma cerveja com uma belíssima amiga, minha "mana". Depois tartamudeio comezinho com vizinhos. E sigo para tasquinhar um bom queijo com outra bela amiga. E com eles, mas muito mais com elas, afasto a tristeza de viver neste país de... bípedes. E de com estes, apesar deles, partilhar a "cultura portuguesa".
 
*****
 
AdendaQuando lamento a mudez da antropologia (disciplina onde abundam esganiçados "activistas" e um ou outro degenerado socratista) tenho razão. Vejo agora de manhã que o historiador Rui Ramos disse ontem no Observador o necessário (estou grato a quem me ofereceu o acesso ao artigo) - "ai, o Rui Ramos é de direita", guincharão em falsete vários daqueles a quem o Estado, pouco mas certo, paga para ensinar as novas gerações de intelectuais!... Ramos, que é um intelectual público, nisso criticável e legível, deixou o artigo aqui
 
Como é importante e o texto não é de acesso livre roubo extracto, longo: "Pedro Nuno Santos a reconhecer que a política de portas escancaradas à imigração do governo de António Costa estava errada. (...) Para os últimos abencerragens de uma esquerda woke que ontem se julgava o futuro e hoje descobre que é o passado, tudo isto é uma rendição à “extrema-direita”. Se é rendição, temos de reconhecer que os partidos de governo dos regimes ocidentais não cederam sem luta. Durante anos, fizeram da imigração descontrolada um tabu. Mencioná-la já era “racismo”. No fim, nenhuma censura bastou para calar sociedades desequilibradas pelo afluxo súbito, caótico e ilegal de milhões de estrangeiros.
 
As sociedades ocidentais foram sujeitas à mais extraordinária de todas as experiências. As necessidades de mão-de-obra barata são reais. Mas tentou-se satisfazê-las abolindo as fronteiras. Nações antigas viram-se sob a ameaça de serem reduzidas a uma espécie de aeroportos internacionais, por onde as pessoas passassem sem nada mais terem em comum do que o acatamento de certas regras. Mas o fundamento das democracias liberais ou do Estado social não é simplesmente a obediência à lei, mas a comunhão de valores a que chamamos “nação”. As nações não são dados naturais: são o resultado da história, de séculos de conflito e compromisso. Na sua origem, não está qualquer homogeneidade, mas uma pluralidade que, sem desaparecer, chegou a um sentimento de solidariedade e destino comum que faz pessoas muito diferentes identificarem-se entre si. É a nação que explica que possamos ser diversos sem cairmos sempre em guerras civis. É um património que subjaz a quase tudo o que é precioso no Ocidente: a liberdade, a igualdade, a coesão social, o pluralismo. É a isso que chamamos “segurança”, que não é apenas a contenção da criminalidade, mas o sentimento de estarmos em casa.
 
Nada disto tem a ver com a cor da pele, dos olhos ou dos cabelos ou com origens geográficas, nem com todas as religiões ou ideologias. É uma questão de valores comuns. O problema das migrações descontroladas não é só a chegada de pessoas que não partilham tais valores, mas a proposta woke, que pareceu dominar os regimes ocidentais, de que não deveríamos pedir nem esperar adesão ou sequer respeito por esses valores. Foi o projecto woke, inspirado pelo ódio da extrema-esquerda ao Ocidente, que acima de tudo criou insegurança. O resto são tremendas dificuldades logísticas, que agravaram a falta de habitação e o colapso dos serviços públicos. O caos migratório não é compatível com qualquer integração. Através da imigração nestas condições, aquilo que a oligarquia fez foi reconstituir a massa de trabalhadores pobres e pouco qualificados (...)".

30
Jan25

Em Setúbal

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Depois de amanhã, sábado dia 1 de Fevereiro, irei a Setúbal. De manhã, ao meio-dia, junto a alguns amigos visitarei a exposição do Miguel Navas, na Casa de Cultura da cidade. Depois petiscarei, frugalmente, num qualquer sítio da simpática Luísa Todi, ou nas suas redondezas. E às 16 horas lá irei à biblioteca conversar sobre o meu livro "Torna-Viagem" (o tal que só se compra por encomenda aqui). Para me amparar nisso irá a Patrícia Portela, escritora mesmo, que me fará (espero) alguns elogios pejados de sarcasmo. E, finalmente, se houver tempo e energia, ali nas nas cercanias beber-se-á um chá (o "das cinco", mais ou menos), e falar-se-á do que ocorrer... Se alguém tiver paciente disponibilidade para se associar será muito bem-vindo.
 
E cumpre-me agradecer a gentil divulgação que o Xetúbalblog fez da sessão.

16
Jan25

No "Convidado Extra"

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Como avisara fui ontem à Rádio Observador, onde tive uma muito simpática conversa com o João Paulo Sacadura no seu programa "Convidado Extra", 3/4 de hora subordinados ao tema "o que é que andas(te) a fazer na vida?", e isto desde a mais tenra ... puberdade, que o homem me vasculhara. Ficou disponível aqui: https://observador.pt/programas/convidado-extra/como-explicar-a-frelimo-que-o-seu-tempo-acabou/
 
Logo que terminou a emissão recebi duas mensagens: uma queridíssima amiga, originária do Atlântico austral, louvando a conversa mas criticando "o sotaque lisboeta, a comer algumas palavras tornando-as imperceptíveis!", e eu a ficar-me atrapalhado, até rubro mesmo que sozinho... E logo a seguir um velho amigo (nunca me esqueço que me esmurrou no dia da festa dos meus ... 10 anos) a invectivar-me "quase não falaste do teu Torna-Viagem!!! assim não consegues vender, tens de aprender a falar...!". Pois, não tenho jeito, mesmo.
 
Mas, insisto, a conversa foi-me muito simpática. Quem tiver paciência bastará clicar.

05
Jan25

A minha mãe

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A minha mãe, Marília, teria feito hoje - e também ontem e anteontem - 98 anos. Nascera durante a meia-noite de 3 para 4, os pais tiveram uma decisão "neutral" e registaram-na a 5. Eram assim, sempre, três dias de celebrações. E continua um pouco assim, no entre-família da qual ficara matriarca, agora que já passam 4 anos desde a sua morte.
 
É sempre difícil falar dos pais. Mais do que tudo porque não os vasculhamos, há um "evitamento" geracional (como dizem os antropólogos). E porque tendemos ao sentimentalismo. Felizmente...
 
Nasceu em Mafra. Pois filha de militar - o meu avô foi um tenente do 28 de Maio. E sobrinha de vários, todos terminados em coronéis - dizia-se na família que isso se devia a terem sido "anglófilos" na II GM, assim descurados na ascensão ao generalato. Lembro-me de em miúdo ouvir o meu pai dizer dos almoços de família que pareciam a Grécia, então sob o "regime dos coronéis". O meu avô era o benjamim, o único que não fora à Flandres. Família transmontana, sua mãe de Gimonde, às faldas de Bragança, seu pai de Mogadouro - minha mãe ufana de ser da família, dizia, o velho posto de capitão-mor (um "régulo", viria eu a dizer...). Quando fomos conhecer Trás-os-Montes, em 2013, parámos em Mogadouro - terra que tem o encanto do castelo não ter sido reconstruído. A Carolina, nos seus 11 anos, logo trouxe uma pedra das cercanias da ruína para oferecer à sua ciosa avó...
 
Casou jovem. E partiu para a Beira, enviuvando muito cedo, já com três filhos. Regressou a Lisboa, a casa dos pais, com sua prole. O que decerto lhe foi traumático. Nesse rumo não se licenciara. Veio a estudar línguas, também em Inglaterra. Era verdadeiramente bilingue - lembro-me de em São Martinho do Porto várias vezes turistas franceses se surpreenderem, genuinamente, por ela não o ser, julgavam-na compatriota casada com português. Foi secretária. Julgo que ascendeu a secretária de Ferreira Dias, então relevante presidente da CRGE (a actual EDP), período no qual conheceu o meu pai, engenheiro da casa. Lamento um pouco - mas são coisas que não se perguntam, muito menos aos pais - nunca ter sabido qual o rumo do meu pai, o ainda jovem, e pelos vistos atrevido, engenheiro a rondar a secretária das chefias...
 
Depois, já nos anos 60s, transitou para a docência. Durante décadas no INP. Mais tarde acumulando com várias instituições de formação. Disso resultaram várias publicações técnicas, as últimas publicadas pela Universidade Aberta, ela já septuagenária. Pois continuou a trabalhar até muito tarde: lembro-me do meu pai lhe dizer, algo enfastiado, "tenho 80 anos, a partir de agora não vamos de carro para o Porto, vamos de comboio", isto nas suas idas para palestras e acções de formação.
 
A minha mãe era blasé, muito mesmo. "Mãeee...", arrastava eu, para lhe cercear o rumo. Aos 90 anos, já muito débil, foi operada em São José, para lhe tirarem a vesícula - "tem 50% de hipóteses de morrer na operação" disse-me a médica-chefe das Urgências, uma bela e ríspida coronela que depois do nosso embate inicial já me tratava como (quase)igual... Aquele serviço parecia "a guerra da Crimeia", como eu lhe disse, quando já éramos amigos. Tempos depois a minha mãe, que ali padecera um pouco, foi entrevistada por um trio médico, queriam a opinião dos pacientes sobre os cuidados recebidos. Foi o último grande show que dela assisti: o médico encarregado, já sexagenário, deliciado, os outros dois estupefactos. Pois a velhinha, na sua cadeira de rodas, louvava os serviços sob o mote "são magníficos, coitados, que mais se pode esperar desta gente?", aliás o mote era mesmo um "que mais se pode esperar deste mundo?". E ficaram os dois, diante da impaciência dos médicos júniores, quase uma hora a falar de ... Racine, Shakespeare, Stratford-upon-Avon, sei lá mais o quê... Ele, repito, encantado com a evidente excentricidade, habituado que estará à ladainha dos queixumes. "Como é que correu?", perguntaram-me depois os meus irmãos, preocupados com a saúde da mãe... "Nem acreditam!!", ria-me eu...
 
Tão blasé que nos 1970s fora sondada, anunciou, pelo seu colega no INP, Henrique Barrilaro Ruas (do qual vim a ser aluno, boa sorte a minha), para integrar uma lista eleitoral do PPM - o excelente PPM de então, entenda-se. "Não aceitei, claro. O que diria o teu pai!!", ria-se, antevendo a reacção do Camarada Pimentel, cunhalista ortodoxo... Para além dos resmungos da meia-idade gostaram-se até ao fim: "os teus pais são namorados", dizia-me a minha mulher, essa que quando nos juntámos causou junto deles a minha despromoção a genro.
 
A minha mãe cultivava a família, mas não na figura típica da mãe ou avó-cuidadora. Cultuava a memória do pai - oficial e cavalheiro do seu tempo, ao que intuí. E do seu irmão mais novo - piloto de caça, sedutor, motard, repentista de carro descapotável - morto antes de eu nascer, pois o avião - recondicionado da guerra da Coreia - lhe explodiu. E adorava o seu irmão Manuel, veterinário de animais de grande porte, uma verdadeira personalidade. Teve uma filha extraordinária. E três filhos bordejando cada um à sua maneira, em busca de um bom porto. Perdeu um cedo, o Artur morreu aos 51 anos, o que muito a abalou. E um ror de netos. Entre estes tinha um particular orgulho pelo trio que obtinha (e continua a obter) particular prestígio profisssional. Mas, benjamim que sou, sei que o afecto maior lhe caía para a neta na qual tanto se reconhecia, naquilo de criar com brio e gosto três filhos (quase)sozinha. E depois vieram os bisnetos, "coitadinhos" dizia. "Porquê?, mãe!", questionava-a, "Sei lá!", resumia, na displicência de se saber já de desuso para eles.
 
Nesse apreço pela família deixou dois livros de memórias familiares. Publicados na Escher - então a editora do Vasco Santos, que também publicava os antropólogos da minha criação: Filipe Reis, Nuno Porto, Paulo Raposo e o mestre deles, Raul Iturra. "Gosto mais dos seus livros" (sempre a tratei na terceira pessoa, e ao meu pai por "tu", e ambos me tuavam, coisas...), dizia-lhe eu, com toda a franqueza.
 
Um deles é este "Receitas da Mãe" (Escher 1991), um aparente livro de culinária. Ela não era grande cozinheira - aliás, era óbvio o seu menosprezo pelo fogão, e não só por viver assoberbada de trabalho. E mesmo a sua gulodice sénior era encenada, convivencial, nicava e ecoava isso como se fosse deriva pantagruélica.
 
Deixou-nos este livro de "Receitas da Mãe" que é um depósito de memórias havidas pelos familiares, de receitas por eles vividas, acumuladas. Para que possamos imaginar quem eram os nossos avoengos, o que comiam e como andavam, um pouco do como eram... E cada receita tem uma pequena história para a enquadrar. Como esta receita de
 
"Bacalhau da Peça
 
1918 - Comido a caminho de Miranda do Douro, na noite em que mataram o Presidente Sidónio Pais. O Pai e a Mãe iam de diligência para o Vimioso; de Vimioso até Miranda do Douro seguiam a cavalo.
 
Na muda da Malaposta, em Milhão, é que comeram o tal petisco, Bacalhau da Peça. Já era noite escura. O Pai era, nesse tempo, alferes e seguia para Miranda do Douro a tomar o comando do destacamento de fronteira - era ainda o tempo da I Guerra Mundial."
 
Faz-me falta a minha mãe, é óbvio, normal. E de com ela aprender a cultivar as memórias. (E também por isso hoje procurarei uma destas "receitas da mãe" para cozinhar).

31
Dez24

O fim de 2024

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Para encerrar o ano 2024: muitos me têm contactado nos últimos tempos para perguntar o que penso eu sobre Moçambique. Como se fosse eu um "moçambicanólogo" (qual kremlinólogo dos tempos da "guerra fria"). Sei lá, só que espero o melhor. Mas avanço duas impressões:
 
1) perguntam-me, incessantemente, o que penso sobre as posições portuguesas - como se elas fossem mesmo relevantes. Respondo: falta, evidentemente, ponderar a opinião daqueles (se ainda os há) que põem as botas no matope. Ou, vá lá, que bebem 2Ms ou Manicas no "caniço". ("Estás a falar de ti, Teixeira?", "Sim.", respondo, arrogante). Como tal fica isto, que os portugueses sufragam há uma década.
 
2) em Moçambique neste 2024 tentaram dar um 20/24 ao Frelimo. Falhou. Para menos males, ouçam o presidente Chissano. Mesmo que não concordem com ele. Pois... Paz.
 
3) cá na nossa terra? Nunca esquecer o mandamento fundamental: delenda PS est... São eles execráveis. Com o resto a gente aguenta.
 
Finalmente, neste reveillon, "não guies bêbedo".

30
Dez24

Rescaldo do 2024

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Acaba o 24, o ano em que eu e parte substancial da minha "velha guarda" ficámos sexagenários. 23 não me fora mal , uma espécie de inflexão ao último (largo) quinquénio, até a augurar bons novos tempos... "Falsas ilusões", pois afinal o 24 foi-me um espalhanço, pessoal, laboral. A anunciar o abissal?...
 
Melhor momento, como se primaveril, neste Abril passado, (auto)publiquei o meu "Torna-Viagem" (o tal que só se compra através desta ligação), algo que era para ter feito há algum tempo. O livro teve alguns leitores, simpáticos. Apresentei-o no que esperei ser uma bela festa no Roda Viva, reconfortante, congregando amigos de vários núcleos da vida. Foi-o, estou-lhes grato.
 
Mas foi-me também dia exemplar da vida. Na véspera soubera que amiga mais que queridíssima estava a morrer, "anda cá despedir-te" avisaram-me!... E eu nem sequer sabia da doença, mostrando-me o quão ensimesmado arredio ando. Algo a esmorecer qualquer felicidade que de tudo aquilo, mero livreco, pudesse advir. Tal como desvaneceu a importância da birra familiar que me era então dedicada. Bem como a dos arrufos femininos pré e pós acontecimento, que me rodeavam. A tornar ainda mais viçosa a carapaça da tristeza, por vezes disfarçada de frenesim festivo. Rumo típico das gentes da minha minoria étnica, os acédios...
 
O resto do ano foi isso. Com inéditas zangas para comigo - será que envelhecem os circundantes e não eu, que sigo lindo, jovial e aprazível? À hora do rescaldo cíclico, ritual, não o posso crer. Pois um tipo pode assomar-se e clamar para sim mesmo que a única perda relevante é a da placenta. Mas não é a verdade. Todo este resto, a minha gente e o nosso tempo são o ouro que resta.
 
Desejos para 25? Alguma energia para esse garimpo, se possível. E que não nasçam tumores. Ela que venha cardíaca...
 
("Demasiado intimista, Zezé!", dirão os da velha guarda. "Sim, e depois?...").

26
Dez24

O meu Natal

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Nos últimos dias amigos perguntavam-me o conciliar "Como vais passar o Natal?" - tal como agora perguntarão o sequencial "Como foi?". Fraternidades às quais deixo eu o sempre "Como sempre". Esmiuço-me, 

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na noite da Consoada culminei em lar de família querida (re)vendo o natalício indefinitely de "Notting Hill". Fora antes frugal - "pai, não estás a comer nada!", ouvi de familiar mais-que-muito-querida -, evitando a impante doçaria, restringindo-me a mera lasca do peixe seco e a uma dupla tira de ave, tasquinhando, registei-o, um queijo de ovelha.  No dia seguinte, o propriamente dito - e porque isento que estou desde há anos de almoço comum -, (re)vi comigo mesmo o "Love Actually". Após o que regressei ao conforto do lar comungado, repetindo-me no apreço pelo - pequeno - queijo, e tendo mordido um coscorão, pois tem de ser...

Assim, mesmo se muito reconfortado, invadi-me com a nostalgia do "It's a Wonderful Time", esse que não mais reverei.

(Joni Mitchell, Both Sides Now)

Regressámos à casa própria. Aqui nos auriculares deixei, em contínuo incessante, esta carol. Trauteando "I've looked at clouds from both sides now ..."

23
Dez24

Pré-Natal 24

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No Metro, sigo em pé, como quase sempre. Vou tão embrenhado na deliciosa história de Madame Francinet, ela envolta no funeral do Monsieur Bebé e todos aqueles messieurs - releio um Cortázar de bolso, 34 anos depois!, demonstram-no os gatafunhos datados que lá deixara, isto na sequência de ter ido agora a Lagos falar sobre o monumento (de época, de época..., constatei nesta releitura sexagenária) "Rayuela" -, e tanto assim que distraído, falho a saída na Alameda, terei de ir até à do burguesote "El Corte Inglés", essa horrível patada na urbe que a dupla Sampaio & Soares nos deixou (já ninguém se lembra, somos municípes tão velhos que habituados às escaras, como se estas indolores...).

Nada praguejo à minha distracção, quase senil, pois será apenas breve atraso neste meu rumo a convívio que sei será alegre, juntando-me a gente que conheci há quarto de século, alguma outra há quinze anos ou isso - "fui muito feliz em Maputo!", ironizarei já de vinho na mão, "e acima de tudo fui lá jovem", mas isto já não direi, que não é noite para angústias melancólicas, ainda para mais porque os convivas surgem óptimos, os homens a aguentarem-se com esmero ("estás com um g'anda aspecto!" terá sido a frase mais trocada durante abraços e beijos...), as mulheres a manterem-se lindas, tanto que as desconfio em recursos ao sobrenatural, mezinhas de cá ou "vacinas" de lá...

Mas divago, pois estou no Metro, dizia, sigo em pé - como quase sempre -, embrenhado num livro. Quase a meu lado, encostado às traseiras de um banco, dando-me o seu perfil está um homem. Percebo-o asiático, olhando-o um pouco mais virei a dizê-lo nepalês. Feioso, barba mal semeada - que não descuidada -, na orelha direita apôs um brinco, mais agrafo do que argola. De súbito puxa para si a mulher que está à sua frente, agarrada ao varão central - e só então neles atento, olhando-os por cima dos meus óculos - abraça-a pela costas, com firmeza, gosto, ternura (talvez amor, quem o sabe?), uma evidente cena namorada, ela sua conterrânea, bonita. Deixa-se enleada, concede-lhe um breve olhar, apenas ápice, e regressa ao seu telefone, no qual vasculha o Facebook, e frenético está-lhe o dedo do "scroll down", vejo-o.

Mantenho os olhos baixos, como se no livro, mas aquela toda indiferença traz-me sorriso - não cruel, até solidário, pois nós homens "somos todos diferentes, todos iguais", nisto dos desamores, ocasionais ou perenes, diria eu ao tipo se fosse para lho dizer... Mas sorrio, nos tais olhos baixos, até mais por aquele império do Facebook. Nisso cruzo o olhar com uma mulher, dois bancos afastada. Vem bonita, a entrar nos setentas, belo cabelo prateado muito cuidado, um anorak azul marinho novo, um excelente cachecol vermelho, uma senhora - rumo ao "El Corte Inglés", decerto. Está ela com um enorme sorriso, a tender para o riso. Tanto que logo descruzamos os nossos olhares - teremos sido os únicos a atentar no breve desamor. Para logo de novo nos entreolharmos, brilhantes de humor, e desviarmo-nos, no esforço de evitar a risada, desajustada. Malvada, até.

O casal nepalês sai no Saldanha - tudo isto foi um lampejo -, rumo à sua felicidade possível. O meu soslaio encontra a senhora de regresso a si própria. Logo chegamos a São Sebastião, fim de linha. Enquanto arrumo a história de Madame Francinet no bolso - o tal "Blow-up e Outras Histórias" -, deixo, qual cavalheiro, passar quem se levanta dos bancos. E com a senhora troco um levíssimo, quase imperceptível, aceno, simultâneo. Apropriado aos que construíram uma memória conjunta.

E sigo lesto a juntar-me, jantando, a tantas outras memórias conjuntas.



(Desejo-lhe, minha senhora, um Feliz Natal, musical, como o deste presépio do Dino Jethá)

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Livro Torna-Viagem

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