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Nenhures

Nenhures

12
Jan25

A demagogia do "não nos encostem à parede"!

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A fotografia é da manifestação de ontem promovida "contra o racismo", e que teve bastante afluência. A imagem colhida é significante: à frente vem um - muito provavelmente português oriundo de Portugal - decano cabeludo, comunista. Como tal um defensor de regimes genocidas, sociocidas, ditatoriais, sobreexploratórios dos trabalhadores, repressores dos direitos individuais e colectivos, perseguidores de comunidades estrangeiras e imigrantes. A sua inserção nesta acção alheia ao PCP aventa que o proto-ancião pertence ou simpatiza ao arquipélago de grupelhos m-l, tornando-o pior ainda, um abjecto hipócrita que passou a sua já longa vida dizendo-se fiel a princípios exactamente inversos ao que defende. Se é ele uma contradição visual, um careca cabeludo, não o é intelectualmente, mas apenas um aldrabão ideológico. Tal como o são os seus correligionários - eu recordo o que passou despercebido, a actual coordenadora do BE atreveu-se a defender a teoria imperialista de Hitler na televisão e depois foi eleita ao posto de chefe da coligação de grupelhos, demonstrando o grau de abjecção dessa gente.

Atrás dele vêm inúmeros manifestantes cujos fenotipos indiciam serem estrangeiros ou ex-estrangeiros, provenientes do subcontinente indiano. São imigrantes, quase de certeza explorados pelos seus empregadores - alguns portugueses, muitos estrangeiros, até seus compatriotas. Estão ali mobilizados por comunistas portugueses, mais ou menos aburguesados - esta peça da Lusa é antológica, entrevistando o antigo candidato do MDP/CDE (um artista que agora se diz nada advindo do marxismo) Ricardo Sá Fernandes, que se lamenta de ter chegado atrasado à manifestação por ter "estado num almoço que acabou tarde". Este tipo de gente anda há tanto tempo na berlinda que nem tem noção do seu ridículo.

E esse disparatado "manifestante" representa também o sentir dos feixes de "classe média" lisboeta que engrossaram a manifestação. Para esta gente - alguma viverá em condomínios, a maioria nas zonas "gentrificadas" - as preocupações com a segurança são coisa da "extrema-direita" e dos populistas do "Correio da Manhã". São contra a polícia - lembra-lhes "a PIDE" mesmo que a essa nunca a tenham visto e muito menos enfrentado. E são contra a existência de países, mesmo que não o percebam - só isso pode justificar que venham ladeando tipos que dizem "ninguém é ilegal".

Os mobilizados de origem estrangeira estão ali "contra o racismo", irados contra a polícia num processo político iniciado pela célebre rusga da rua do Benformoso. São explorados laboralmente? Por quem? São perseguidos pela legislação portuguesa? Por quais leis e suas interpretações? Pela polícia? Quantas detenções ilegais, quantos espancamentos, quantas violações de direitos, quantos atentados às suas propriedades cometeram os polícias?

Os polícias fizeram uma rusga na tal rua e encostaram os circunscritos à parede? Espancaram alguém, detiveram alguém ilegalmente, destrataram alguém?

1. No fim-de-semana passado aqui nos Olivais, na praça da Cidade do Luso, defronte à Escola Fernando Pessoa e aos dois restaurantes mais populares do bairro, houve uma rusga. Foram ali detidos cerca de 15 indivíduos - oriundos de Portugal, fregueses consabidos. Alguns algemados. Conta quem viu - entre risos - que um deles, personagem conhecida destas redondezas desde os "velhos tempos" da nossa juventude - e sempre arisco à estrita legalidade e às preocupações sanitárias -, tanto protestou que lá foi ... desalgemado. Vamos manifestar-nos aqui no bairro?

2. Há algum tempo um polícia matou um cidadão na Cova da Moura. Um drama, irreparável. E sem qualquer justificação. Seguiram-se "desacatos" (como lhes chamou alguma imprensa) durante dias, com destruição de propriedade pública e, acima de tudo, privada, em protestos contra a polícia devido ao seu racismo generalizado - a vítima era negro, ou mulato ("afrodescendente" no trôpego linguajar de agora). No fim-de-semana seguinte houve uma manifestação em Lisboa, congregando algumas centenas de pessoas, na sua maioria moçambicanos, na sua esmagadora maioria negros - provocada pela situação política no seu país. A reportagem televisiva que vi encontrou-os no final da Av. Fontes Pereira de Melo, entrando no Marquês. Naquele sábado vespertino vinham enquadrados pela polícia - o trânsito automóvel não tinha sido cortado, apenas gerido segundo a passagem da manifestação. À entrada do Marquês os manifestantes entoaram a palavra de ordem "Isto é que é polícia!!!". Nem um jornalista - nem um - pegou no assunto, que não dá jeito para o chinfrim dos esquerdalhos de "classe média".

Ora se alguém quiser ser um abjecto demagogo - como o tal Sá Fernandes, não o Zé mas o mano, ou as Mortáguas ou os Tavares, mais o pateta cabeludo careca da fotografia - poderá dizer "estão a ver, os pretinhos moçambicanos gostam da nossa magnífica polícia". Ou então pode ter a decência de contextualizar os fenómenos (no caso dos manifestantes moçambicanos era uma óbvia invectiva, comparativa, contra a feroz polícia do seu país, contrastante com a - efectiva - urbanidade da nossa).

3. Nem de propósito hoje, no dia seguinte à manifestação, na tal rua do Benformoso - onde parece que a polícia não deve entrar - "dois grupos de estrangeiros" (franceses gentrificadores?, norte-americanos em busca da Comporta?, espanhóis turistas?) envolveram-se em pleno dia numa rixa que originou sete feridos, causadas por "armas brancas" (naifas). Os tugas também fazem merda? Claro. É por isso que há rusgas...

Quanto à "classe média" lisboeta que vai às manifestações dos "bem-pensantes", nem um deles se interrogará sobre si-mesmo, sobre a imbecilidade militante que prossegue. E descansadamente, neste domingo, seguirão ao "El Corte Inglés" (ou, alguns, ao São Jorge...). Pois lá, ao menos - e só aqui entre nós - não há imigrantes...

22
Nov24

"Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário", no Museu de Etnologia

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Visitei ontem, detalhadamente, esta exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário", apresentada no Museu de Etnologia (ao estádio do Restelo). A exposição é constituída por painéis de textos e iconografia, que condensam 30 artigos, cada um de diferente autoria. São apresentados num catálogo, com 342 páginas, vendido a 40 euros. Foi-me emprestado. Entre os seus autores, na maioria historiadores, há muitos que li ao longo de anos, vários conheço pessoalmente, e de alguns sou amigo (pelo menos até lerem este postal...).
 
Deixo já a minha impressão (sabendo que diante dela muitos apenas confirmarão que eu sou um reaccionário do piorio, neocolono até e, pior do que tudo, um verme neoliberal). Como catarse da ira que (ainda) sinto.
 
Os textos invectivam, grosseiramente - de modo básico de tão simplista que é, e sob desonesto viés, tamanho que censório -, a presença e posterior ocupação portuguesa. Num patético discurso anticolonial, que nem anacrónico é pois tão medíocre resta. Ou melhor, rasteja, num lamaçal ideológico "bon chic bon genre". E que evidencia uma estuporada vontade "pedagógica" - distraída do facto de não estarmos já em Paris 1964 ou Lisboa 1974... Constituem 7 "fascículos", partes se se quiser ter boa vontade, com temas repetidos, de estrutura descuidada.
 
Os painéis estão pessimamente impressos - apesar da longa lista de patrocinadores... A disposição é pobre (a exposição quer-se concêntrica mas isso é inicialmente imperceptível, é preciso chegar alguém para nos informar, nem sinalética souberam colocar para obstar à amontoada montagem). Na iconografia associada abundam os erros de legendagem (por exemplo, uma fotografia está presente em três painéis com legendas diferentes, uma outra duas, etc.) - mas isso até é o menos diante dos constantes disparates apostos nos textos. Quase culmina com a transmissão de vídeos musicais do actual afro-pimba, com os habituais traseiros femininos em destaque, uma coisa ridícula.
 
É também acompanhada de um conjunto de artefactos africanos, mobiliário nobiliárquico, alfaias agrícolas e, claro, os lendários "manipanços" - grosso modo desde uma (boa) peça da Reinata, as obrigatórias caraças de mapiko, passando por outras esculturas do Mali (??!!, o que estarão a fazer ali?) até à penúltima da exposição, uma porta Dogon (!!??, o que estará ali a fazer?) . O motivo desta associação escapou-se-me, mas presumo que para além do "ai, é tão gira esta peça, temos de a mostrar!", queiram no seu conjunto mostrar aos visitantes que os "pretinhos", perdão, os "afroascendentes" também tinham agricultura, chefes e, imagine-se, religião. E que, claro, sabiam trabalhar a madeira... E até tinham talento para isso. ("Atenção, também eram capazes de fazer olaria....").
 
Quanto ao livro, como é óbvio não pude ainda ler o calhamaço (342 páginas, repito). Mas no metro corri a ler o artigo de João Pina-Cabral e Joana Pereira Leite sobre o ocaso colonial em Moçambique. Apenas para ver se lá estava o disparate, demagógico de ignorante, espetado no resumo posto no painel respectivo (da autoria deles?). Não está, pelo menos de forma explícita. Mas, de qualquer forma, o que ali está pendurado envergonhará qualquer autor.
 
E estamos nós em 2024. Isto seria desesperante se não fosse ridículo. O ridículo da academia portuguesa.
 
Como qualquer antropólogo português sabe - ainda que nem todos o digam em público, mas todos o dizem em privado - o Museu de Etnologia (ao estádio do Restelo) foi há décadas entregue a uma Comissão Liquidatária, gerida por Joaquim Pais de Brito, a qual cumpriu o seu trabalho com denodo e eficiência. O mausoléu posterior tem sido gerido com a competência adequada.
 
Agora, em más horas, foram as cinzas remexidas. Ao que parece esta tralha estará "patente ao público" durante um ano. Como saberão os meus "amigos-FB" e leitores de blog - pelo menos os que (me) visitam de vez em quando - a minha filha e a minha irmã proíbem-me de usar o calão. Por isso escrevi este texto longo. A substituir o rol de palavrões peludos que fui dizendo ao longo das horas que ali desperdicei.

10
Out24

A Assembleia da República e o policiamento comunitário

jpt

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1. Fervilha o Whatsapp com o reenvio desta recomendação exarada pela Assembleia da República para que se alterem os processos de recrutamento de agentes da PSP e da GNR: mais pano para mangas para aqueles que "dizem o que é preciso ser dito", e que "ninguém tem coragem para dizer"...

Esta (de facto) propaganda parlamentar articular-se-á com a polémica em curso sobre o putativo aumento da criminalidade. É certo que Portugal é um país muito seguro. Mas muitos reclamam sobre a degenerescência actual dessa situação. Os números parecem indicar isso, ainda que estas estatísticas (como tantas outras) sejam sempre discutíveis, e discutidas... O governo, e outros, negam essa realidade, situando-a apenas na crescente sensação de insegurança subjectiva.

2. Não nego a hipótese da actual decadência da efectiva segurança pública (ainda que aqui nos Olivais tudo decorra na paz do Senhor...). Mas talvez muito deste debate público se origine na tal sensação de "insegurança subjectiva". Não creio que esta se deva à "imprensa", como muitos dizem - pois a atracção pelo tópico "criminalidade" é algo antigo na comunicação social. Porventura será alimentada pelas recentes (e legítimas) demonstrações de incómodo laboral efectuadas pelas polícias. E pelo eco (legítimo, ainda que um pouco "aproveitador") que o CHEGA foi fazendo disso.

Outro factor contribuirá para a tal "insegurança subjectiva", velho como o mundo, e nada nosso monopólio. Pois o recente surto imigratório faz medrar um desconforto face ao estrangeiro mais excêntrico, aos aportados menos parecidos com "turistas". É isso um erro de percepção: muita gente se arrepia, até cai num automático receio ali no metro ao ombrear com um uberista sikh ou trolha senegalês ou, já no restaurante, face a uma aparente vivandeira brasileira. Mas é uma reacção alienada - pois desconhecedora das verdadeiras condições de vida. Dado que as pessoas não se arrepiam aquando face a um qualquer facebuquista ou administrador não-executivo socialista, ou, pior ainda ("The horror, The horror"), se diante de um Medina ou uma Temido (nesta até votam em massa), gentes muito mais perigosas para a sua segurança pessoal, física e económica, actual e futura.

Também eu vou assim: há para aí um ano fui jantar com um bloguista do Delito de Opinião numa simpática esplanada em Alvalade. Cheguei antes e notei que ali estava Pedro Nuno Santos, então proto-chefe do PS. Resmunguei uns impropérios mudos e hesitei em telefonar ao amigo para mudarmos de sítio mas não o fiz, ele chegou e lá comemos, com gosto. Mas se no restaurante estivesse uma larga mesa advinda do "Chelas profundo", em obrigatório alarido, eu não teria hesitado no desvio comensal. Mesmo sabendo ser Santos muito mais perigoso para o parco futuro que me resta do que qualquer xunga vizinha...

3. Enfim, seja lá como for, é plausível a necessidade da melhoria nos formatos da acção policial, como até indicia a "recomendação" parlamentar. Não sabia o que é o "policiamento comunitário" - só conhecia a realidade em Moçambique, e presumi (acertadamente) que fosse algo diferente. Fui ler um texto da antropóloga Susana Durão. Do qual retirei tratar-se de uma dupla acepção: uma actuação policial mais interactiva com as populações; uma participação dos cidadãos no esforço de policiamento, sua planificação e enquadramento, talvez uma espécie de quase "cidadão-agente". O texto é de 2012, deixa entender que a via então em curso se centrava na acção dos agentes policiais. E vi ainda, muito em diagonal, o livro "Policiamento de Proximidade" do sociólogo Manuel Lisboa (que em tempos conheci quando cruzou Maputo) e Ana Lúcia Teixeira, também já com uma década. Enfim, de ambos os textos retirei que por cá se trata de um método de policiamento mais aproximado dos cidadãos, mais atento às preocupações destes. De certa forma é o "mais polícia na rua", mais segurança subjectiva e, porventura, objectiva. Algo que todos defenderão, tantos os que clamam a "desgraça" securitária actual como os que desta descrêem.

4. Assim o que esta "recomendação" parlamentar convoca não é o questionamento sobre a justeza do "policiamento comunitário". Mas a intervenção demonstra um pensamento pobre, e comprova ser já este pacificamente dominante, pois maioritário entre os partidos. Surgindo como se ungido pelas aparentes "boas causas" poucos criticam este rumo, esta crescente via do Estado em seccionar a população, postulando categorias sociais, instaurando-as nos censos e nas iniciativas estatais, promovendo quotas discriminatórias - agora até a elas apelando no recrutamento de agentes policiais. Tribalizando o país. Os partidos de esquerda anuem, claro - e os comunistas, principalmente os não-brejnevistas, pois esses mais atreitos ao "identitarismo", têm sempre a expectativa (utopia) de transformarem essas categorias-em-si em categorias-para-si ("comunidades-em-si" em "comunidades-para-si"), essa velha aspiração marxista de incrementar o conflito social para instaurar uma nova era. Também o PSD aprova - e nem supreendente é isso, consabido o rusticismo desse partido. Do póstumo CDS resta o jazigo. E surpreende-me nada ler sobre o que a IL diz disto (mas também, se calhar, não deveria esperar muito). E sobra o que sobra...

Esta tétrica mediocridade política portuguesa demonstra-se nos pormenores. Note-se na formulação da recomendação. Não apenas a utilização do termo "comunidades" - por mais habitual que seja hoje em dia, ainda custa não ver alguém dizê-lo impregnado do velho evolucionismo, da crença da passagem de grupos de solidariedade mecânica (rigorosa comunhão) para solidariedade orgânica (de complementariedade diversificada), da ascensão histórica de "comunidades" (simples) a "sociedades" (complexas). Entenda-se bem, "comunidades" é o actual sinónimo ideológico da velha "tribo", do cá esconso "clã", da racista "raça", do mais recente ademane "etnia". A crença, e a proposta, é que cada membro de cada uma dessa(s) "identidade(s)" tem características comuns, anseios comuns e "precisa" de políticas estatais específicas para o seu "grupo". Fazer ascender esta mediocridade à assinatura da 2ª figura do Estado apenas me convoca o desprezo.

Mas mais ainda, veja-se como escreve a AR e assina Aguiar Branco: "comunidades específicas" "incluindo" "pessoas LGBT+" - de que universo se está a falar, se nestes termos e se numa proposta destas? E "comunidades" (...) "migrantes" - quem as constitui? Açorianos vindos para o continente, os últimos alentejanos chegados às cercanias do Pinhal Novo? Ou seja, hipocritamente, a AR e o seu presidente Aguiar Branco querem elidir que falam de imigrantes. E há também as "comunidades" (...) "comunidades ciganas". Votámos em quem escreve assim? 

5. Para enfrentar esta tralha não tenho saberes suficientes nem talento particular ("engenho e arte", para citar o poeta que o agora colunista do "Público" esqueceu quando era ministro da Cultura). Apenas consigo resmungar, para isso convocando alguns sublinhados meus, leituras antigas. Há umas décadas Hannah Arendt bombardeou correctamente a boa consciência europeia, anunciando-lhe que a democracia e o universalismo de cidadania aposto na defesa dos direitos humanos, inexistia nas situações coloniais. Isso deu azo a críticas a esse universalismo - "republicano", diz-se em contextos mais francófonos. Depois outros apupos vieram à hipocrisia universalista dos "direitos humanos". Há quem os ancore num anticolonialismo. Esquecendo (ou fazendo por esquecer) que a crítica à defesa dos "direitos humanos", e seu concomitante universalismo, engrandeceu fundamentalmente por ter sido uma arma das ditaduras brejnevistas, grosso modo desde o Acordo de Helsínquia - já após o colonialismo, frise-se -, uma forma discursiva do comunismo combater as democracias.

O que se vive agora é o embate entre dois modelos de organização social, sempre vividos de forma algo ambígua. As sociedades ancoradas na laicidade, exemplificadas pela república francesa. Feita de cidadãos individuais - não que isso implique (como dizem os falsários detractores) que os cidadãos não tenham outras pertenças, mas sim que o Estado os considera por igual, sem mediadores, sem grupos  intermédios. E as sociedades ancoradas no secularismo, mais ligadas ao mundo anglo-saxónico, nas quais os Estados reconhecem categorias sociais intermédias de pertença e através dessas diferenciam os cidadãos, cujo maior exemplo actual radica nos EUA.

Por cá os defensores desta última opção - normalmente agentes ambicionando estabelecer-se como "intelectuais orgânicos" (e remunerados) dessas projectadas "comunidades-em-si" - criticam violentamente a falsidade e a injustiça do modelo universalista ("francês", para facilitar). E encontram - mesmo sendo de esquerdas radicais - virtudes no modelo particularista ("secular", "americano"), uma contradição ideológica absurda, na qual não reparam nem quando saem à rua gritando contra as desgraças americanas...

6. "Lá fora" já alguns falaram sobre isto. Restrinjo-me a alguns dos tais meus sublinhados. Por exemplo,  Zizek escreveu em 2004 (usando o termo "multiculturalismo" que desde então foi acriticamente criticado pelos "sábios" da moda): "O multiculturalismo é (...) a forma ideal deste capitalismo planetário, a atitude que, de uma espécie de posição global vazia, trata cada cultura local à maneira do colono que lida com uma população colonizada - como "indígenas" cujos costumes devem ser cautelosamente estudados e "respeitados" (...) é uma forma de racismo denegada, invertida, auto-referencial, um "racismo com distância", respeita a identidade do Outro, concebendo-o como uma comunidade "autêntica" fechada sobre si mesma..." (Elogio da Intolerância, Relógio d'Água, 78). O antropólogo francês Jean-Loup Amselle - que não é um lepenista - disse "En participant a l'élaboration d'un modéle d'une France multiculturelle, les partisans comme les adversaires du métissage ont en commun de vouloir faire exister ces groupes en tant que tels, faisant de leur nomination une partie intégrante de leur devenir (...) La multiplication par l'État des ethnies au sein de la société française ne résoudra aucunement le racisme, elle metra au contraire en relief les tares du modèle français d'assimilation qui, on l'a vu, repose sur une base raciologique. Car ce n'est pas le modèle républicain qui s'oppose à la résolution du racisme dans notre pays, ce sont les insuffisances mêmes, son incapacité à être républicain jusqu'au bout, c'est-à-dire universel, qui l'empêchent d'exercer pleinement son devoir de hospitalité et équité.(Lógiques Métisses, Payot, 1990, x-xi). E "Mais étrangement (...) la place de l'universalisme n'est occupée aujourd'hui que par une puissance déclinante - la France républicaine - de sorte que cette dernière a toutes les caractéristiques d'une curiosité culturelle alors que l'Empire multiculturel américain peut se présenter sous les traits d'une puissance universaliste. C'est en effet au nome de l'universalisation da la différence et en tant que strucutures d'accueil de toutes les singularités qu'une puissance globale comme les États-Unis peut faire valoir sa legitimité et prétendre au leadership mondial." (L'Occident Décroché, Stock, 2008, 36-37). Etc.

Em Portugal, por cá? Os políticos pensam e escrevem como se vê. Na imprensa os colunistas preenchem .... colunas. Nas ciências sociais há os... socialistas (e maçónicos) e ainda os bloquistas. E os que esperam, anseiam, pelos subsídios. Como ser incómodo? E nisso vai plácida esta deriva, este "comboio descendente", "todos à gargalhada", em busca da etnia ou raça de cada um...

Adenda: para os não francófonos deixo tradução dos excertos (não venham os habituais resmungões protestar com a sua qualidade, pois são via Deep L.): 

1. Ao participarem na elaboração de um modelo de França multicultural, os partidários e os opositores da mestiçagem têm em comum o desejo de fazer existir estes grupos enquanto tais, fazendo da sua nomeação parte integrante do seu futuro (...) A multiplicação pelo Estado dos grupos étnicos no seio da sociedade francesa não resolverá de modo algum o racismo; pelo contrário, porá em evidência os defeitos do modelo francês de assimilação que, como vimos, assenta numa base racial. Com efeito, não é o modelo republicano que impede a resolução do racismo no nosso país; são as suas insuficiências, a sua incapacidade de ser republicano até ao fim, isto é, universal, que o impedem de exercer plenamente o seu dever de hospitalidade e de equidade.

2. Mas, estranhamente (...), o lugar do universalismo é hoje ocupado apenas por uma potência em declínio - a França republicana -, pelo que esta última tem todas as caraterísticas de uma curiosidade cultural, enquanto o império multicultural americano pode apresentar-se sob a forma de uma potência universalista. De facto, é em nome da universalização da diferença, e como estruturas que acolhem todas as singularidades, que uma potência global como os Estados Unidos pode afirmar a sua legitimidade e reivindicar a liderança mundial.

 

07
Out24

Conversa de café a propósito da Penha de França

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Lisboa.pt - Website oficial do Município

Ficou o país estupefacto com o desbragado triplo assassinato da semana passada, ocorrido na Penha de França. Bebo aqui nos Olivais um café com um "sobrinho" crescido em Bruxelas, o qual me diz ser este tipo de situações agora por lá recorrente, em particular em Anderlecht, devido à migração acontecida de grupos de "empreendedores" ligados ao comércio de drogas químicas, diz-se que ali advindos de Marselha. Não que associássemos este nosso infausto caso a algo similar, apenas referia ele, agora cá recém-chegado, a diferença entre o escândalo aqui sentido e a já rotineira forma de apreensão da violência de rua que passou a vigorar lá na Bélgica.

No dia seguinte na mesma esplanada foram-se agregando vizinhos, gastando um pouco do outonal sábado. Conversas muito variadas, e animadas. Nisso um dos presentes aflora como o mariola Ventura abocanhou politicamente o caso da Penha da França, não só agitando a sua "besta negra" cigana como até aventando - em cúmulo de despudor - a dúvida sobre o carácter político dos assassinatos, como se fossem um atentado avesso aos seus simpatizantes.

E a conversa segue, abordando as formas elípticas como a comunicação social e os sempre pressurosos "populares" convocados a prestarem declarações ao microfone foram referindo o assassino, seus acompanhantes e seu meio de origem. Ou seja, a elisão radical do termo "cigano" entre a locução dominante e a opção por formulações alusivas. Eu pouco seguira os noticiários mas reparara no tópico da pertença do criminoso a "famílias numerosas", a utilização de uma estereótipo de parentesco (e co-residência) - quiçá sustentado por algum empiria, não o posso afiançar dado que nada tenho lido sobre dimensões actuais de parentelas e residências em Portugal. Mas é notório que há um expurgar pelos estratos "letrados", e pelo o "povo" que vai à tv, da alusão pública a "ciganos", ao invés do seu brandir pelos sectores mais direitistas. E, também, da sua presença nos discursos globais... se, e quando, em privado. E tudo isto, esta retórica higienizada, alimenta o tal mariola, o tipo "que diz as verdades", "aquilo que mais ninguém tem coragem de dizer"...

Ali à mesa, no passo seguinte, uma senhora vizinha, educada e culta, diz asisadamente, que concorda com essa abstenção da referência identitária, pois não se devem alimentar as generalizações abusivas. No que eu concordo totalmente, pois um desmando, um traço comportamental, uma característica psicológica de um qualquer indivíduo não deve ser atribuído a outros que com ele partilhem alguns traços comuns socioculturais e, ainda menos, fenotípicos (os genotípicos nem para aqui são chamados). Ou seja, implicitava a minha vizinha  - tal como os múltiplos locutores ao longo dos últimos dias - que dizer ser este assassino um "cigano" é alimentar o preconceito, fomentar generalizações abusivas. Aplaudo. Até porque esta postura é o substrato de uma concepção liberal (que não associológica), o primado da autonomia individual - algo que é bem diferente de outras perspectivas dominantes, como a (demo-)cristã, as marxistas ou os agora muito viçosos secularismos "identitaristas" de extracção marxista, que presumem características comuns aos pertencentes a grupos socioculturais e por isso convocam políticas e posturas peculiares para cada um deles.

E sigo na verve. Recordando que há escassas semanas nas cercanias de Castelo de Vide um indivíduo sequestrou e disparou sobre duas mulheres. A imprensa logo o intitulou "espanhol" - identidade com a qual temos relações históricas complexas. Talvez não tanto naquela velha raia. Mas sim país afora. Ainda resmungamos os "Filipes", apupamos o injustiçado defenestrado Miguel de Vasconcelos, tal como ainda sorrimos o "de Espanha nem bom vento nem bom casamento". Mas, muito mais importante, germina o sentir anti-turismo, resmunga-se o quase monopólio espanhol do querido olival. E não só o nosso ministro da Defesa veio agora agitar a "chaga" (para ele, pobre homem, sintoma que é da múmia mental CDS) de Olivença. E, para irmos à política, só um país politicamente incompetente é que continua com mesuras aos Borbón, ao PSOE ou ao VOX, face a décadas de desrespeito fluvial espanhol. Ou seja, não falta matéria-prima, histórica e actual, para acicatar o anti-espanholismo. Mas isso não impede que a imprensa escarrapache nos cabeçalhos ser "espanhol" o cadastrado sequestrador, e intentado violador e assassino.

Mais perto dos Olivais do que a Penha de França é Moscavide. E também por isso logo ali à mesa recordei um outro caso. Há quatro anos um indivíduo lá foi assassinado, uma horrível conclusão de uma questiúncula entre vizinhos. O energúmeno assassino expressou, antes e depois, a sua aversão aos negros - o assassinado, o actor Bruno Candé, era-o... O miserável, agora preso, é um antigo combatente na guerra colonial. Foi um rastilho. De imediato organizações e vária imprensa usaram o caso para afirmar um "racismo sistémico" português - ou seja, de um crime praticado por um indivíduo se generalizou predisposições e pressupostos para a globalidade dos seus compatriotas, dos que têm a sua "identidade".

Logo na época notei pouco ter significado para os "bem-pensantes" que, logo no dia seguinte ao assassinato, tivesse o Sport Lisboa e Olivais - um clube popular, pobre, histórico pois 5º filial do SLB, recordista de anos seguidos na velha III divisão de futebol - colocado na sua página um dorido "Morreu um dos nossos" - Candé seria associado, terá sido praticante desportivo. Denotativo de inclusão, inserção, até "sistémica" se se quiser... Mas nada disso contou (nem conta) nos discursos demagógicos. Como também não contavam (nem contam) perguntas de cariz mais sociológico: houve centenas de milhares de portugueses mobilizados para as guerras em África. (E, também, centenas de milhares de portugueses foram "retornados"). Foi afirmado aquele assassinato como um caso exemplar do "racismo sistémico" - entenda-se, universalizado, ainda que vivido de diferentes formas -, dos portugueses, e dito ser esse extremado entre antigos combatentes, estes também aventados como universo ainda dotado de armamento. Face a essa verdadeira hiper-generalização seria normal questionar, investigar, que formas organizadas ou avulsas houve entre essa gigantesca amálgama de antigos combatentes (e de antigos colonos) de perseguição armada, violenta, física ou moral, sobre os africanos ou seus descendentes que residiam ou vieram a residir em Portugal neste último meio século. Algo que sedimentasse aquela extrapolação do assassinato que o energúmeno cometera por causa de uma querela encetada devido a um cão... Perguntar isso para quê, pois como é possível duvidar que se um "português" assassina um "negro" todos nós "portugueses" somos racistas?

A conversa morreu ali, falta de empenho alheio, atitude totalmente legítima ("agora tenho de aturar este tipo?", terá pensado a respeitável vizinha). Mais tarde, já em casa, vejo no Facebook um outro vizinho a partilhar um sentido texto de um jornalista sobre o crime da Penha da França. Nele se aventa que o assassino sofrerá de uma "adição", um desequilíbrio contextualizador. Sorrio, triste. Também eu ao saber do acontecido pensei nisso, de imediato imaginei um "Scarface", histriónico descompensado a la Al Pacino... Mas é importante identificar a ideologia que subjaz esta nova língua, e este anglicismo dessa é típico, de um sociologês (esse que entende que o contexto social causa e, quantas vezes, justifica os actos individuais, fazendo regredir a autonomia indivual aos mínimos ... quase biológicos).

Não vou explicar, prefiro ilustrar: imagine-se que eu deixo de fumar. Ao 5º dia este meu vizinho Quim - também ele olivalense - vem ter comigo à esplanada. Depara-se comigo a protestar com o dono da casa porque a minha chávena de café não está bem quente!!! Dirá logo ele, o Quim, "calma, estás irritadiço devido ao teu vício do tabaco" e até se rirá, acalentando-me no meu esforço sanitário. Entretanto, ali mesmo, tomamos conhecimento de que aqui perto um qualquer "agarrado" deu uma pedrada num velhote para lhe roubar a carteira - coisa que hoje em dia no bairro já inexiste, felizmente, gentrificado e pacificado que está o "Olivais". Dirá logo algum vizinho, ou talvez mesmo o Quim, que o ladrão sofre de uma "adição". Assim seguindo eu, mero chato, com o culposo e pecaminoso "vício", e o ladrãozeco, pobre vítima da tal "adição". 

Enfim, isto é uma conversa de café, sem grande coerência - excepto a do tal "racismo sistémico" de que padeço, pois sou de identidade "portuguesa", e de "etnia" branca, dirão alguns... Desarrumada e até infindável. Mas fico ainda com um resmungo, até à próxima sessão de esplanada: continuem a pensar assim. E, acima de tudo, a falar assim... E um dia destes até os ciganos, fartos do que "parece", votarão no Ventura.

 

(Fico grato à equipa da SAPO pelo destaque dado a este postal, na sua colocação no Delito de Opinião)

29
Set24

O Racismo Sistémico

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Às vezes até com alguma amizade, a maioria das vezes sem ponta disso, gente das minhas áreas de formação diz-me "direitolas" - visceralmente avesso que sou a estes demagogos das "identidades", do "género", da "depuração da fala", do "racismo sistémico", e das tralhas associadas.
 
Talvez este seja um exemplo explícito da pantomina que são estas correntes locutoras. Imagine-se o escândalo que correria mundo afora (e Portugal esquerdalho adentro) se um grande central branco desse um estalo num pequeno roupeiro "racializado". Mas o enorme preto Rudiger dá um tabefe a um incomodado branco Manolin? Nada dizem estes "identitaristas", que isto não lhes dá jeito. Não lhes anima o objectivo, a gritaria que entendem possibilitar-lhes o acesso a uns nacos do erário público. E a uns empregozitos, precários ou não. Porque, entenda-se bem, para essa gentinha, a esquerdalhada burguesota, "it's economy, stupid!". O subsídio, o contratozito, o parco financiamento...

13
Ago24

Passado colonial

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(Isto não é um ensaio, e muito menos um artigo. É um desabafo. )
 
Na fotografia estou eu no Mossuril, impante quarentão ladeando o velho canhão pátrio. Não estava ali traumatizado, nem me sentia um Atlas com o peso da História aos ombros. Nem o devia estar. Nem sentir...
 
1. Para quem não saiba o Mossuril foi durante séculos um dos cais de embarque para a Ilha de Moçambique, que lhe está defronte. Esta - sempre romantizada, com laivos de poesia (há muita versalhada sobre o sítio) ou de devaneio turístico - foi sempre um entreposto, ali se carregavam as embarcações as quais seguiam Índico afora. E, como outras feitorias portuguesas em África (ditas "possessões"), sobreviveu séculos com as taxas alfandegárias e os ganhos comerciais dos... funcionários. Pois desde XVI - pelo menos - ali chegavam as caravanas vindas do interior, fronteiro ou muito distante. Trazidas por gentes várias que vieram a ser ditas macuas ("selvagens", na língua das gentes algo sualízadas do litoral, pois vistos como inferiores boçais do  mato), por ajauas, por outros. Algumas caravanas iam até ali, para Quelimane também, tal como ao Ibo, outras calcorreavam rumo a outros portos exportadores onde inexistiam portugueses, na demanda de melhores custos-benefícios.
 
Ao longo dos séculos vários foram os produtos transportados. A partir do primeiro quartel de XVIII e, acima de tudo, durante XIX o que mesmo cresceu, com enorme afinco - uma verdadeira "bolha" para falar como agora -, foi o comércio de escravos. Lá para meados de XIX isso foi ilegalizado mas continuou como "tráfico", e seguiu - assim mais lucrativo, qual bootleg da Lei Seca americana - até inícios de XX. Progressivamente mais difícil, e também mais raro, mas ainda assim numa azáfama de transportadores terrestres, vindos cada vez de mais longe, pagando portagens aos sucessivos "donos da terra" - tipo as chefaturas ekoni do interior de Cabo Delgado ou os namarrais que se chegaram à Ilha para cobrar ainda mais caro (mas a mitografia nacional veio a torná-los "heróicos", por se terem oposto à ocupação portuguesa). E uma azáfama de transportadores marítimos, árabes, suaílis, franceses, holandeses diz-se, brasileiros também e muitos. E portugueses.
 
Lá mesmo para o final, século XX já encetado, os portugueses (e julgo que também os franceses, mas assim apenas de memória não o posso afiançar) tiveram um episódio cristão bem denotativo: embarcavam-se os desgraçados, no convés estava um padre, "baptizava" as criaturas, elas "assinavam" um papel, e eram "elevadas" a cristãos trabalhadores livres, "contratados". E seguiam às ilhas índicas. (Vá lá, chamai herege a este ateu.) Depois isso acabou - dizia-se, e bem, "Britain rules the waves" e era cada vez mais difícil, pois esses não queriam mesmo tais práticas.
 
Já República feita, mandando a maçonaria e os antepassados dilectos do PS - mais os terroristas que hoje seriam do Bloco -, os portugueses adaptaram-se. E viraram-se para arregimentar gentes, enviando-as também como "contratados" para São Tomé, às roças que por lá medravam. Iam para a... vida toda. Seguiam tantos, e também recrutados para as minas sul-africanas (trabalho que dava gigantesco lucro ao... Estado, tipo os médicos cubanos de agora que pagamos a Havana, mas vivendo então bem pior), que os administradores do centro e norte contestavam tais práticas, pois faziam escassa a mão-de-obra por essas paragens, tão necessária para plantações (onde as havia) e para ... o trabalho forçado. Tudo isto está escrito, nos arquivos e em livros.
 
2. Nesse rumo foi-se instalando o colonialismo moderno, a "ocupação efectiva", de facto terminada lá pelos anos 20s. Na tal I República, trapalhona. E, depois, no Estado Novo, competente q.b., mesmo que se algo trôpego colónia adentro. O regime europeu em África foi bastante diversificado, consoante o país colonizador, os tipos de colonos chegados, as características dos colonizados. As especificidades de cada uma das colónias. Ainda assim tinha duas características básicas:
 
a) racismo: a crença na legitimidade da tutela exercida sobre os locais, pretos. Estes considerados inferiores por condição racial, assim individual e colectiva. Ou por um estado transitório, seu contexto, seu "atraso", assim também colectivo, mas possibilitando a ascensão "civilizacional" individual. Grosso modo, diferenças ditas como entre a visão segregacionista e a assimilacionista. Na administração portuguesa conviveram as duas visões, até mesmo coabitaram, desde a mais desbragada consideração da impossibilidade dos pretos ascenderem, até à crença de que "a seu tempo" evoluiriam a contento. Cerca de 1950 vingou a mais aprazível versão oficial assimilacionista - que tinha sido esfacelada desde a tal República -, aquilo de "os rapazes fazem-se". E na década de 60 - após a reforma de Adriano Moreira, imposta não pela sua magnitude mas pelos "ventos da História" - as barreiras raciais administrativas foram muito aliviadas, as sociais algo matizadas, nesgas de assimilacionismo urbano medraram.
 
São essas nesgas que sempre surgem convocadas no memorialismo dos ex-colonos, a ladainha dos actuais sexagenários e septuagenários do "eu tinha indianos e mulatos, e até negros na minha turma de Liceu", "nós lá em casa tratávamos bem os empregados", "nunca vi racismo", "os pretos andavam na rua", etc. São estes aromas benevolentes que permitem que um tipo como Rui Ramos vá em 2024 à rádio disparatar "a descolonização começou em 1961", para encanto de Maria João Avillez - essa que eu ouvi, com estes ouvidos que o forno cremará, clamar diante de uma elite moçambicana muito crítica (demasiado crítica, em meu entender) "vocês não gostam de nós?, depois de tudo o que fizemos por vocês?!!". Isto não serve para entender o real. O passado. E um bocadinho do presente.
 
b) opressão e sobreexploração: as formas de opressão eram várias e os seus conteúdos diversos. Também há muita coisa escrita - sim, sei que muita da literatura anticolonial era muito militante, antes e depois das independências, a gente torce o nariz às formas selectivas dessas narrativas e análises. Mas é preciso não querer ver os âmbitos em que desvalorizações e a proibições eram exercidas para as ignorar, ou dulcificar. E depois a sobrexploração. Dir-se-á (e bem) que em Portugal também os direitos laborais (e outros) eram escassos. Mas por ali eram diferentes: a corveia ("trabalho por papas") - para o Estado e para os privados que tivessem boas ligações com a administração - era pesadíssima. E imensa - e não é preciso ser um esquerdalho para relembrar isso, leia-se o bispo da Beira, Soares de Resende, um prelado conservador (um dos seus livros levou como título "Ordem Anticomunista"), exasperado com a apropriação continuada do trabalho  africano. E as culturas comerciais forçadas, que eram imposições muito gravosas sobre os pequenos agricultores (quase toda a gente), praticadas em muitas áreas. Entenda-se, tudo isto se associava a castigos corporais recorrentes. Que as crianças e adolescentes urbanos não viam ou, pelo menos, não percebiam - e por isso, por não saírem do seu anacrónico saudosismo, continuam a remoer espúrias negações.
 
Após 1961, as reformas legislativas alteraram os regulamentos mais impositivos e discriminatórios. Pouco depois Salazar já falava de um futuro (imaginado como algo longínquo) de "comunidade de países lusófonos", conjugação de interesses e sentimentos sedimentada pela unidade da língua portuguesa - mas ainda não lhe ocorrera a necessidade de um novo acordo ortográfico. Mas ainda que em alguns núcleos, particularmente urbanos, a situação se tivesse matizado, permitindo alguma mudança no acesso de nichos da população negra a serviços, até empregos, as formas de opressão e sobreexploração não desapareceram, pura e simplesmente. As práticas continuaram, avulsas porventura mas não apenas episódicas. Pois as categorias mentais, as concepções ordenadoras dos interrelacionamentos, mesmo sendo vividas de formas distintas tanto por colonos como por colonizados, não desaparecem num ápice (como clamam os "críticos" actuais, no histrionismo de apontarem perenidade imorredoira entre os portugueses das formas extremas do ideário colonial), nem as condições económicas casam com imediatas alterações radicais, principalmente se sob uma administração autoritária e socialmente enviesada.
 
3. E em tudo isto a repressão. Em Portugal vivemos não só o cinquentenário dos "gloriosos capitães de Abril" como continuamos a louvar a "resistência antifascista". Ora o 28 de Maio e o subsequente Estado Novo advieram da devastada e perversa I República - e 2010 podia ter-nos ensinado isso, mas não vejo ninguém na imprensa (no "Público" ou quejandos) a insistentemente exigir o ensino dos detalhes da trapalhada republicana aos petizes do secundário... E a ditadura salazarista sobreviveu décadas com a anuência de forças armadas, policiais e da... população.  Houve repressão, claro. A qual depois da II Guerra Mundial se atenuou (os tais "ventos da História"). Continua-se a ouvir falar das desgraçadas mortes de José Dias Coelho ou Catarina Eufémia (Delgado é um caso muito diverso) mas o certo é que mortandade foi escassa. Não estou a dizer que foi uma ditamole. Mas sim que tal como o tratamento dado aos presos políticos "doutores" ou "filhos de doutores" era diferente do dado aos do "povo", também a repressão em África era muito mais carregada. 
 
É 1994, meu primeiro trabalho em Moçambique, estou em casa de Namwenda, um velho régulo, chefe mwekoni, está também Kolokoha, seu congénere - ambos postos da antiga chefatura macua-meto Inkigiri, dessas que in illo tempore haviam estado metidas até aos pescoços no comércio escravista. E mais uma dúzia de homens velhos, conselheiros, cabecilhas de parentelas. Eu estou a perguntar sobre as transições agrícolas do tempo colonial até àquele presente - mas deixo a conversa, animada, divagar. Até porque o que me interessa nem são as tais mudanças, estas são só pretexto. Contam-me que "antes de ter entrado a Frelimo", durante a "guerra dos macondes", os portugueses prenderam vários chefes macuas - entre os quais Namwenda - e levaram-nos para a prisão do Ibo. De sevícias em sevícias alguns haviam morrido, outros depois foram levados para a Machava (então Lourenço Marques) e desaparecido. Eram camponeses, macuas, nada tinham a ver com a guerra de independência - todos os que tenham visto filmes de guerra, tipo "Vietname", reconhecem a situação: passam os guerrilheiros a população encolhe-se, vêm os dos exércitos regulares e acusam-nos de cumplicidade e reprimem. Mas só ali, naquele episódio, já se fizera uma mole de "José Dias Coelho".
 
A conversa segue, longa tarde. Eu sei que o gravador cerceia a liberdade alheia e por isso escrevo, frenético, o que me vão dizendo. Voltamos à agricultura, ali chegou um projecto de incentivos à cultura comercial de milho e também de tabaco. Pergunto como eram os incentivos no tempo colonial. Sobre esse "fomento" logo falam da palmatoada, e descrevem. Eu sou jovem, inexperiente, e deixo escapar um esgar, impressionado. Namwenda fala, sorrindo, e todos se riem, pergunto a Tomás Brito, meu intérprete, qual a piada. Ele responde, traduzindo: "não foi você!". E todos se riem, percebendo o que está a ser traduzido mesmo que não entendam português. Eu sorrio e penso "foda-se!", "que lição!".
 
4. Ultimamente o tópico do "passado colonial" (de facto os do passados pré-colonial e colonial) tem sido sugado por um feixe de jornalistas e académicos oriundos de partidos de origens comunistas. As abordagens são panfletárias, enviesadas. As aleivosias historiográficas são constantes, as tiradas demagógicas comuns. Ora não me parece que seja necessário doirar a pílula do passado - o qual, aliás ,está patente em vários textos consistentes, e disseminados, e é interesseiro que esta gente surja repetidamente anunciando um estado de inocência da sociedade portuguesa sobre o seu passado.
 
Muito mais do que discutir as mariolices que se vão escrevendo conviria perscrutar a agenda política que tem essa minoria altissonante. De uma forma mansa poderei convocar a ideia de patriotismo de Orwell, que o disse um "conforto identitário". E o que esta extrema-esquerda identitarista deseja é romper o nosso "conforto identitário" português. Mas qual a sua agenda mais profunda, para além das pequenas benesses estatutárias (o apreço dos pares, por exemplo) e de pequenos financiamentos (os projectos, as performances, os colóquios)?
 
Cada um interprete como queira as ambições desta gente, neste seu afã de demonizar um passado que encerra numa visão que quer ser bicromática, a do mal e do bem, insensível à miríade de situações que - mesmo neste enquadramento colonialista - foram vividas. E que quer apagar os múltiplos reflexos e refracções que as variadíssimas dimensões do colonialismo tiveram e têm, em Portugal. E, mas isso então é que nada lhes interessa, nos países africanos antigas colónias.
 
O que me é relevante é não ser preciso higienizar o colonialismo, ou mesmo vasculhar em busca de um ou outro aspecto menos opressor para o poder contrapor, para perceber que estes tipos d'agora não querem entender melhor a História. Querem aldrabar - como o socratista Vale de Almeida quando clama ser Portugal um apartheid. Ou querem exercer a sua patética candura - como o (ex?)comunista Francisco Bethencourt quando vem perorar que é preciso pagar "reparações" para que as sociedades tenham um melhor  relacionamento futuro.
 
Há tempos conversava com um antigo - e excepcional - meu professor, PC "dos tempos", homem de esquerda profunda, o qual deve ter andado por esses movimentos pós-Perestroika, nem perguntei, e também ele incomodado com estas constantes patacoadas: "estes tipos sentem um défice de não terem feito a luta antifascista, anticolonialista, não tinham idade para isso, então afocinham agora nisto...", rematou. Ri-me, claro, concordando em parte, pois alguma coisa virá desse pobre entendimento autobiográfico.
 
Mas não basta como explicação global. Pois isto se faz pagar. Até a Gulbenkian, como vimos há pouco tempo, paga esta tralha.
 
(A ver se um destes dias volto ao assunto, à tal agenda política desta gente)

 

27
Dez23

Um Natal Rácico

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Uma ríspida constipação tússica impôs-me um Natal solitário, para evitar contagiar a família. Isento da fartura de bacalhau, rabanadas, sonhos, coscorões e quejandos, e do fervilhante convívio com os mais-queridos, terei sido mais atento aos derrames televisivos, tanto às notícias dos dias como ao cardápio dos obrigatórios filmes da quadra. Ou seja, a dieta incrementou o meu estupor diante deste revanchismo sociopata do governo - e da sociedade - israelita, o qual amansei com uma panaceia tomada em duas cápsulas, num dia o filme "Pretty Woman", no seguinte o "Notting Hill". 

Hoje, e porque já menos alquebrado eximi-me a ver pela enésima vez o tão obrigatório "Pale Rider". Mas, pois ainda convalescente, enrolei-me em manta e de ceroulas e pantufas assisti a uma simpaticíssima entrevista com o dr. Montenegro, passeando pelo tão aprazível litoral de Espinho, durante a qual o candidato apresentou os itens fundamentais do seu programa eleitoral. Pouco depois, já eu de chá de cidreira em punho, acompanhei o comentário político do inefável dr. Júdice. O qual me deu uma novidade - ao saudar efusivamente um inquérito feito pelo Instituto Nacional de Estatísticas, incidindo sobre as dimensões "étnicas e raciais" da população. Impante com a conquista civilizacional do nosso Estado, o referido dr. Júdice não deixou de salientar que a França não faz este tipo de questionários, algo que considerou ser causa dos problemas que aquele país tem. Deixando assim implícito que ao invés de outros países que assumem tais metodologias classificatórias, onde decerto inexistirão os tais não elencados problemas...

Mas fiquei genuinamente supreendido. Pois não tinha conhecimento de tal inquérito nem, muito menos, de que o INE já assumira esta classificação dos habitantes do país. Distracção minha, pois esta é uma verdadeira vitória política da esquerda comunitarista, dita "identitarista". Há uma imensa literatura internacional sobre o assunto, uma muito militante paladina desta classificação dita "racial" e "étnica" das populações - com grande ênfase em documentação institucional e no "activismo intelectual", toda de retórica benfazeja, e muita dela com implícitos revolucionários -, outra a isso avessa.

Não me vou abalançar a fazer uma súmula disso, para nisso promover um qualquer requebro bloguístico. Julgo saber, pelo que li num artigo de um demagogo antropólogo, que o nosso país é um "apartheid". E também que a nossa população - pelo que também li de um outro qualquer demagogo - é maioritariamente crente num "racismo cultural". Um Inferno, luso. Ainda assim prefiro ir ler os resultados do Boxing Day. E esperar que amanhã já esteja eu rijo para ir levantar os últimos exames médicos, para em breve me apresentar ufano diante da consulta aprazada para o início do ano em que serei sexagenário, impregnado que estou desta moinha duvidosa sobre se esta velha carcaça ainda aguentará mais uns tempos. Pois, de facto, é-me isso bem mais relevante do que gastar tempo a discutir esta gente, coisa afinal sem qualquer préstimo.

Ainda assim, e antes dos resultados da bola inglesa, fui ver o inquérito. Está aqui. E começa mais ou menos assim o texto estatal: "A pergunta sobre a autoidentificação étnica, à qual os respondentes poderiam assinalar mais do que uma opção do grupo a que consideravam pertencer, compreende as seguintes possibilidades de resposta: asiático, branco, cigano, negro, origem ou pertença mista" (p. 2). Sorrio. E no monólogo deste sozinhismo murmuro um arrastado "foda-se...", enquanto me noto a menear a cabeça. E depois sai-me um "este país é mesmo dos Tavares...". "E dos Júdices", complemento enquanto me levanto, pois nem vale a pena argumentar. Escorropicho o chazinho de cidreira, já morno. E vou-me servir de um uísque.

E assim fico, um branco com um uísque.

09
Set23

Matar o Boer

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Acabo de ver que João Pedro Simões Marques publicou um artigo no "Observador", "A Culpa do Homem Branco". Onde aborda o silêncio da intelectualidade portuguesa sobre a actual polémica sul-africana (e  mesmo mundial, até pela intervenção do magnata Elon Musk) em torno da insistência do político Julius Malema em cantar em público a célebre canção anti-apartheid Dubul’ Ibhunu (Matar o Boer). Na qual a frase "aw dubul’ibhunu" [atira no boer] é ritmicamente repetida, e o mote “dubula dubula" [atira, atira] é omnipresente. Julgo que a canção - um hino anti-apartheid - é de 1993, escrita como homenagem a Chris Hani, líder do PC sul-africano e dirigente do ANC, assassinado nesse ano.
 
Apesar da sua letra ser linear, explícita, como qualquer canção a Dubul’ Ibhunu é polissémica, com o sentido dependendo do contexto do entoar. E há literatura sobre isso (só no meu computador tinha três artigos de universitários sul-africanos sobre o assunto - e deixo aqui duas reportagens a dar algum contexto). E apesar dos tais múltiplos sentidos ela fora proibida em 2011 pelos tribunais sul-africanos, dado o seu carácter pouco irenista. Mas agora o peculiar político Julius Malema de novo a recuperou, tendo o tribunal revogado a proibição anterior.
 
A realidade (social, político-económica) da África do Sul é muito complexa e não tenho conhecimento actualizado para perorar sobre tudo aquilo. Mas parece-me óbvio - ainda para mais sabendo que tipo de político é Malema - que a insistente utilização da canção será tudo menos "progressista". Ou, pelo menos, é problemática dado que constitui e reproduz mundividências. E deixemo-nos de rodeios - três décadas depois do final do "apartheid" político-jurídico as desigualdades sociais e económicas do país não podem fazer esquecer o rumo do poder ANC e reduzir a situação a uma continuidade do velho regime. E muito menos podem convocar o apagamento das características ideológicas e práticas do radical populista Julius Malema, o "cantador"-mor de agora...
 
E assim João Pedro Simões Marques terá razão no seu artigo - só li o resumo, pois não sou assinante do "Observador". De facto, numa intelectualidade "activista" portuguesa, sempre pronta a "indignar-se" com o estado do mundo global - seja com uma saída mais ríspida de Melloni, uma hungarice de Orban, umas bastonadas defronte das jacqueries de magrebodescendentes, uma queixa em Kiev sobre qualquer bombardeamento sofrido, mas também com "fait-divers" como uma beijoca espanhola, um aparte de Morrisey, ou até mesmo (imagine-se!) um cruising de estrela de Hollywood, para além das boutades de Von Trier e coisas dessas, já para não falar de nacos de textos (e canções) de antanho -, a tal intelectualidade portuguesa, dizia eu, cala-se diante desta austral "mata o branco".
 
Não que se pudesse esperar que o que estes clérigos viessem a dizer sobre isto fosse de aproveitar - normalmente não se aproveita o que dizem, e ainda por cima nada perceberão da complexa África do Sul. Mas é interessante a atitude silenciosa - pois demonstra o pobre olhar que têm sobre o mundo. E a vacuidade do seu constante perorar "activístico".
 
Por isto tudo recupero este meu postal, de há cinco anos - para quem tiver paciência está aqui. O qual é uma memória de episódio de há quase 30 anos, quando trabalhei na África do Sul. Nele não falo da "Dubul’ Ibhunu" (Kill the Boer) mas sim da sua parente de então, entoada nos comícios do velho e radical Pan-African Congress, a "One Settler, One Bullet". Não só sobre a sua pertinência para aquele país naquela era - e nisso implicitamente aludindo à sua pertinência para agora, nas tais três décadas passadas.
 
Mas também como isso me serviu, já na altura, em Maio de 1994, quando regressei a casa, para perceber a tontice total dos "intelectuais" "activistas" cá do burgo. Estão agora como eram, nada aprenderam. Não porque sejam de facto incapazes de aprender com o mundo. Mas porque se absorvessem algo isso desmontaria o capital que lhes dá dividendos. O qual é, exclusivamente, a atitude...

29
Jul23

História, Escravismo e Racismo

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Fiz a 4ª classe em 1974. Como tantos dos miúdos de então aprendera já a História de Portugal nesta magnífica colecção de cromos, um original de 1953 que teve múltiplas reedições até meados dos 1970s (sobre ela ver este texto). A qual bem me marcou - e no final da licenciatura ainda fiz um trabalho sobre "o Zarolho e o Maneta" indo-europeu de Dumézil na história nacional, apenas devido às memórias dos cromos.
 
Tão impressiva ficou essa memória que ainda há dias dissertei no café sobre personagens cruciais na nossa história pátria - Deuladeu Martins (também ela figura dumeziliana, se se quiser...), Geraldo Sem-Pavor, Martim Moniz, etc. -, das quais tenho como exclusiva imagem e único saber o que aprendi naquela mítica colecção.
 
Nesse mesmo dia continuei, e explanei na esplanada a súmula do meu sempre adiado ensaio imorredoiro sobre o actual regime politico português: oscilamos entre a concepção que privilegia a indução da iniciativa empresarial privada (e muito ligada à silvicultura, note-se) e a preferência por um Estado redistributivo de índole caritativa (solidário, diz-se hoje). Ou seja, mantém-se a oposição entre D. Dinis (o tal silvícola PSD) e a Rainha Santa Isabel (o PS)- cujo debate político (conhecido como "Milagre das Rosas) apenas conheço através do cromo desta colecção.
 
Dito isto, em 1974/5 entrei no então Ciclo Preparatório e tive uma excelente professora de História, Margarida Cabral. Depois, já no Ensino Secundário, os meus pais remeteram-me para a escola oficial, os "Viveiros" de então - "não quis que fosses um menino de colégio" veio-me a dizer o meu pai uns anos depois, justificando ideologicamente a aberrante decisão.... Ainda assim ainda tive dois excelentes professores de História, no 10º ano (Abílio Esteves) e 11º ano (injustamente esqueci-lhe o nome). Em todos esses anos nunca me ensinaram a História de Portugal sob o molde de uma narrativa glorificadora da Gesta Pátria, mitificando a grandeza dos Feitos Imorredoiros. Nunca! Não esqueci os cromos mas fiquei com uma outra visão do rumo nacional. Jovenzinho subi à universidade. Tive uma disciplina de História Contemporânea - com Miriam Halpern Pereira, assistida por António Costa Pinto. Líamos a própria Halpern Pereira, Valentim Alexandre, José Capela, em 1984, há 40 anos! Mitos, Grandiloquência Patriótica? Nem um laivo!
 
Uma década depois fui trabalhar para a (excelente) Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Nesta, grosso modo, houve duas épocas, com alguma diferença que não abissal. Sob o primeiro Comissário Vasco Graça Moura predominou uma abordagem historiográfica menos "analítica" (opto pelo termo mais "liso") e mais manuseável para a sua apresentação pública. Depois, sob o segundo Comissário, António Manuel Hespanha, e sem desprimor pela espectacularização comemorativa, privilegiou-se uma historiografia "analítica", mais problematizadora dos processos históricos - um rumo que foi continuado pelo terceiro Comissário Joaquim Romero de Magalhães. É justo dizer que nessa década e meia não se enfatizou a vertente do escravismo, mas ela não foi apagada. E que bastantes investigações foram apoiadas e/ou publicadas, com vasta disseminação. Mas mais ainda: nesta semana andei a limpar velhos dossiers e redescobri uma luminosa conferência do Hespanha, "As narrativas da interculturalidade", de Março de 1997. Não posso precisar se foi proferida em Lisboa ou em Maputo, mas nessas breves 8 páginas ele problematizava as questões fundamentais da história da expansão portuguesa, das formas de a analisarmos actualmente e a necessidade de sobre elas reflectirmos em termos de política, interna e externa. E o homem era o Comissário-Geral das Comemorações dos Descobrimentos Portugueses...
 
Depois fui 18 anos para Moçambique e não andei propriamente a ler a história pós-medieval portuguesa. Entretanto a minha filha fez o "liceu" no estrangeiro e assim não conheci os actuais livros escolares portugueses. Mas não acredito que - apesar da consabida influência da intelectualidade do PS - o ensino da História tenha regredido até aos modos patrioteiros colonialistas dos tempos do Ultimatum e da I República. Ou do Estado Novo...
 
Todas estas memórias (aborrecidas, os velhos inutilizados têm a mania de chatear os outros com os seus passados, coisas de "has been...") vêm-me a propósito das constantes publicações na imprensa sobre a necessidade de "trazer a lume" a "Escravatura" portuguesa, de "descolonizar a história de Portugal", de nisso afrontar o "racismo sistémico, estrutural" que polui os portugueses, qual necrose das suas almas. Todos eles clamam que a história portuguesa se reduz a um rosário de malevolências e que nada disso tem sido dito, na academia, no ensino, na sociedade. São falsários. Alguns são militantes políticos ("activistas", diz-se agora) demagógicos. Outros são académicos falsários, o que é muito mais grave. Alguns outros são apenas jornalistas, e como tal não precisam de adjectivos desqualificativos.
 
O outro dia vi uma reportagem da SIC, anunciada com a habitual pompa e "gravitas" por Rodrigo Guedes de Carvalho, chamada "Pretérito Imperfeito". Uma patetice pegada... Entre a colecção de dislates - e disso eximo o actual ministro da Cultura, ali respondendo com bom senso às patacoadas da repórter - saliento uma investigadora de Coimbra. Analisando os "manuais escolares" denunciava, com veemência, o facto de ser ensinado que os portugueses comerciavam "especiarias, marfim e escravos". E que não se diz, reclamava, "pessoas escravizadas". Ou seja, para esta intelectual "abissal" se eu conseguisse arranjar um lugar de professor de História (o ensino do secundário está vedado aos antropólogos, talvez por a corporação andar há décadas entretida nestas maluquices ideológicas e descurar o rumo profissional dos licenciados), eu deveria ensinar aos petizes que o comércio na era das navegações se centrava em "pessoas escravizadas", "marfim animal" e "especiarias vegetais". Caso contrário as pobres crianças (uns "monstros", como disse um psicanalista célebre) não compreenderão...
 
E entretanto todas as semanas é publicada mais uma atoarda destas - no "Público", no "Expresso", nas televisões. Nisso pulula um conjunto de "activistas", entre performers, artistas, jornalistas, académicos, e entre estes vários antropólogos - desses que vão pisar os brasões municipais na Praça do Império mas que nem percebem que a avenida que sobe até ao "Humberto Delgado" (nome que apreciam) se chama Avenida (da Conferência) de Berlim, ignorância irreflectida e apenas festiva que bem justifica que lhe troquem os nomes na tv... -, um conjunto aparentemente avantajado de gente que vai botando textos desabridos e falsários. Pejados de jargão, anunciam um malvado ensino da História e uma concepção de Portugal que não é real.
 
E há meia dúzia de tipos que lhes vão respondendo, com o saber e o talento de cada um. Mas que nisso apenas incrementam o eco destes dislates. Agora vejo que saiu uma pomposa "declaração do Porto", vinda desses "activistas" - deve ter saído de uma actividade artístico-política que ocorreu quando estive nessa cidade há semanas. É um documentozito esquerdalho, uma "sobrevivência" dos tempos m-l, quais ressureições das FEC (m-l), PSR, PCP (R) e quejandas organizações revolucionárias. Dizendo-se contra o colonialismo e o racismo, ditos vigentes, o sumo das reclamações é uma discursata mal amanhada contra o capitalismo.
 
E tal como o país nada ligou a esses grupelhos nos 70s e 80s, bem que se podia fazer o mesmo a estes seus demagógicos descendentes. Haverá entre eles uma ou outra alma bem intencionada, pulularão intelectuais humanamente em busca de militâncias que propiciem tardias erecções. Mas de facto é uma tralha. "Aldrabística"...

30
Jun23

O anúncio da PSP

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Um homem não deve ligar às imbecilidades que vai lendo na imprensa, em particular aquelas imbecilmente partilhadas nas redes sociais. Mas há tardes…

Há anos o “Público” publicou uma série de entrevistas pindéricas sobre o racismo - julgo que vieram passar a livro. Um afamado antropólogo socratista, entusiasmado, veio a escrever no mesmo jornal que elas “provavam” a existência local do fenómeno - uma deriva “positivista” que às vezes dá jeito, possibilitando que este tipo de gente publique no mesmo boletim que “vivemos num apartheid”. Li algumas dessas peças - e lembro a conversa com uma das entrevistadas, cientista social estrangeira que bem acima está desta tralha, que me contava dos rumos entrevistadores. Explícitos para aqueles, como ela (e até eu) sabem da gigantesca diferença (intelectual, moral, deontológica) entre pôr o informante/entrevistado a falar do que queremos ou a dizer o que queremos. Enfim, almoçávamos nós em esplanada lisboeta e perguntou-me ela se eu lera as entrevistas. Respondi eu que vira algumas, com menosprezo, lembrando que uma delas clamava o racismo português, tamanho que não havia negros nas telenovelas e nos frascos de shampoo… E que a vítima entrevistada não suportava tal coisa, a “invisibilidade” racista, tão letal que partira ela, artista, para a ecuménica Berlim. Rimo-nos, apesar de não estarmos em dias e eras de grandes boas disposições.

Mas este gemebundismo vingou. Há pouco tempo o esquerdalhismo orgasmou-se com as tranças rastafari de um apresentador de telejornais, dando-lhes estatuto fundacional. Depois outra apresentadora de notícias, dotada de cuidado e vasto cabelo “afro”, chorava a morte do norte-americano Floyd enquanto esquecia as mortes contemporâneas, às mãos de similares polícias, de indo-descendente na Beira e de eslavo no aeroporto de Lisboa. A tal “invisibilidade” “racista” reduzia-se… e não só assim.

Há algum tempo entrei na loja da Vodafone do Vasco da Gama. Notei que estava decorada com vários cartazes de risonhos clientes da empresa, na sua maioria negros - o trabalho que as grandes empresas dão a modelos, profissionais ou amadores, é uma forma de luta contra a “invisibilidade” “racista”. Presumo que nas telenovelas aconteça o mesmo. Sorri e comentei o facto com a minha companhia, a melhor que poderia querer. Para seu incómodo, que notar estas coisas pode parecer mal, “racismo” até…

Regresso ao início. Vejo no FB partilhas de um texto jornalístico de um consabido demagogo comunista, que ali chega por via de alguém que há décadas embrulha o seu vil otelismo assassino com berloques da “capela do Rato”. Somos agora racistas, diz esta gente, porque a PSP fez um anúncio para candidaturas usando a fotografia de um agente negro...

Há pessoas que aplaudem, “partilham”, “gostam” deste lixo. De gente. Eu nada digo. As minhas amadas filha e irmã proíbem-me de explicitar o que penso.

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