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Nenhures

Nenhures

13
Ago24

Passado colonial

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(Isto não é um ensaio, e muito menos um artigo. É um desabafo. )
 
Na fotografia estou eu no Mossuril, impante quarentão ladeando o velho canhão pátrio. Não estava ali traumatizado, nem me sentia um Atlas com o peso da História aos ombros. Nem o devia estar. Nem sentir...
 
1. Para quem não saiba o Mossuril foi durante séculos um dos cais de embarque para a Ilha de Moçambique, que lhe está defronte. Esta - sempre romantizada, com laivos de poesia (há muita versalhada sobre o sítio) ou de devaneio turístico - foi sempre um entreposto, ali se carregavam as embarcações as quais seguiam Índico afora. E, como outras feitorias portuguesas em África (ditas "possessões"), sobreviveu séculos com as taxas alfandegárias e os ganhos comerciais dos... funcionários. Pois desde XVI - pelo menos - ali chegavam as caravanas vindas do interior, fronteiro ou muito distante. Trazidas por gentes várias que vieram a ser ditas macuas ("selvagens", na língua das gentes algo sualízadas do litoral, pois vistos como inferiores boçais do  mato), por ajauas, por outros. Algumas caravanas iam até ali, para Quelimane também, tal como ao Ibo, outras calcorreavam rumo a outros portos exportadores onde inexistiam portugueses, na demanda de melhores custos-benefícios.
 
Ao longo dos séculos vários foram os produtos transportados. A partir do primeiro quartel de XVIII e, acima de tudo, durante XIX o que mesmo cresceu, com enorme afinco - uma verdadeira "bolha" para falar como agora -, foi o comércio de escravos. Lá para meados de XIX isso foi ilegalizado mas continuou como "tráfico", e seguiu - assim mais lucrativo, qual bootleg da Lei Seca americana - até inícios de XX. Progressivamente mais difícil, e também mais raro, mas ainda assim numa azáfama de transportadores terrestres, vindos cada vez de mais longe, pagando portagens aos sucessivos "donos da terra" - tipo as chefaturas ekoni do interior de Cabo Delgado ou os namarrais que se chegaram à Ilha para cobrar ainda mais caro (mas a mitografia nacional veio a torná-los "heróicos", por se terem oposto à ocupação portuguesa). E uma azáfama de transportadores marítimos, árabes, suaílis, franceses, holandeses diz-se, brasileiros também e muitos. E portugueses.
 
Lá mesmo para o final, século XX já encetado, os portugueses (e julgo que também os franceses, mas assim apenas de memória não o posso afiançar) tiveram um episódio cristão bem denotativo: embarcavam-se os desgraçados, no convés estava um padre, "baptizava" as criaturas, elas "assinavam" um papel, e eram "elevadas" a cristãos trabalhadores livres, "contratados". E seguiam às ilhas índicas. (Vá lá, chamai herege a este ateu.) Depois isso acabou - dizia-se, e bem, "Britain rules the waves" e era cada vez mais difícil, pois esses não queriam mesmo tais práticas.
 
Já República feita, mandando a maçonaria e os antepassados dilectos do PS - mais os terroristas que hoje seriam do Bloco -, os portugueses adaptaram-se. E viraram-se para arregimentar gentes, enviando-as também como "contratados" para São Tomé, às roças que por lá medravam. Iam para a... vida toda. Seguiam tantos, e também recrutados para as minas sul-africanas (trabalho que dava gigantesco lucro ao... Estado, tipo os médicos cubanos de agora que pagamos a Havana, mas vivendo então bem pior), que os administradores do centro e norte contestavam tais práticas, pois faziam escassa a mão-de-obra por essas paragens, tão necessária para plantações (onde as havia) e para ... o trabalho forçado. Tudo isto está escrito, nos arquivos e em livros.
 
2. Nesse rumo foi-se instalando o colonialismo moderno, a "ocupação efectiva", de facto terminada lá pelos anos 20s. Na tal I República, trapalhona. E, depois, no Estado Novo, competente q.b., mesmo que se algo trôpego colónia adentro. O regime europeu em África foi bastante diversificado, consoante o país colonizador, os tipos de colonos chegados, as características dos colonizados. As especificidades de cada uma das colónias. Ainda assim tinha duas características básicas:
 
a) racismo: a crença na legitimidade da tutela exercida sobre os locais, pretos. Estes considerados inferiores por condição racial, assim individual e colectiva. Ou por um estado transitório, seu contexto, seu "atraso", assim também colectivo, mas possibilitando a ascensão "civilizacional" individual. Grosso modo, diferenças ditas como entre a visão segregacionista e a assimilacionista. Na administração portuguesa conviveram as duas visões, até mesmo coabitaram, desde a mais desbragada consideração da impossibilidade dos pretos ascenderem, até à crença de que "a seu tempo" evoluiriam a contento. Cerca de 1950 vingou a mais aprazível versão oficial assimilacionista - que tinha sido esfacelada desde a tal República -, aquilo de "os rapazes fazem-se". E na década de 60 - após a reforma de Adriano Moreira, imposta não pela sua magnitude mas pelos "ventos da História" - as barreiras raciais administrativas foram muito aliviadas, as sociais algo matizadas, nesgas de assimilacionismo urbano medraram.
 
São essas nesgas que sempre surgem convocadas no memorialismo dos ex-colonos, a ladainha dos actuais sexagenários e septuagenários do "eu tinha indianos e mulatos, e até negros na minha turma de Liceu", "nós lá em casa tratávamos bem os empregados", "nunca vi racismo", "os pretos andavam na rua", etc. São estes aromas benevolentes que permitem que um tipo como Rui Ramos vá em 2024 à rádio disparatar "a descolonização começou em 1961", para encanto de Maria João Avillez - essa que eu ouvi, com estes ouvidos que o forno cremará, clamar diante de uma elite moçambicana muito crítica (demasiado crítica, em meu entender) "vocês não gostam de nós?, depois de tudo o que fizemos por vocês?!!". Isto não serve para entender o real. O passado. E um bocadinho do presente.
 
b) opressão e sobreexploração: as formas de opressão eram várias e os seus conteúdos diversos. Também há muita coisa escrita - sim, sei que muita da literatura anticolonial era muito militante, antes e depois das independências, a gente torce o nariz às formas selectivas dessas narrativas e análises. Mas é preciso não querer ver os âmbitos em que desvalorizações e a proibições eram exercidas para as ignorar, ou dulcificar. E depois a sobrexploração. Dir-se-á (e bem) que em Portugal também os direitos laborais (e outros) eram escassos. Mas por ali eram diferentes: a corveia ("trabalho por papas") - para o Estado e para os privados que tivessem boas ligações com a administração - era pesadíssima. E imensa - e não é preciso ser um esquerdalho para relembrar isso, leia-se o bispo da Beira, Soares de Resende, um prelado conservador (um dos seus livros levou como título "Ordem Anticomunista"), exasperado com a apropriação continuada do trabalho  africano. E as culturas comerciais forçadas, que eram imposições muito gravosas sobre os pequenos agricultores (quase toda a gente), praticadas em muitas áreas. Entenda-se, tudo isto se associava a castigos corporais recorrentes. Que as crianças e adolescentes urbanos não viam ou, pelo menos, não percebiam - e por isso, por não saírem do seu anacrónico saudosismo, continuam a remoer espúrias negações.
 
Após 1961, as reformas legislativas alteraram os regulamentos mais impositivos e discriminatórios. Pouco depois Salazar já falava de um futuro (imaginado como algo longínquo) de "comunidade de países lusófonos", conjugação de interesses e sentimentos sedimentada pela unidade da língua portuguesa - mas ainda não lhe ocorrera a necessidade de um novo acordo ortográfico. Mas ainda que em alguns núcleos, particularmente urbanos, a situação se tivesse matizado, permitindo alguma mudança no acesso de nichos da população negra a serviços, até empregos, as formas de opressão e sobreexploração não desapareceram, pura e simplesmente. As práticas continuaram, avulsas porventura mas não apenas episódicas. Pois as categorias mentais, as concepções ordenadoras dos interrelacionamentos, mesmo sendo vividas de formas distintas tanto por colonos como por colonizados, não desaparecem num ápice (como clamam os "críticos" actuais, no histrionismo de apontarem perenidade imorredoira entre os portugueses das formas extremas do ideário colonial), nem as condições económicas casam com imediatas alterações radicais, principalmente se sob uma administração autoritária e socialmente enviesada.
 
3. E em tudo isto a repressão. Em Portugal vivemos não só o cinquentenário dos "gloriosos capitães de Abril" como continuamos a louvar a "resistência antifascista". Ora o 28 de Maio e o subsequente Estado Novo advieram da devastada e perversa I República - e 2010 podia ter-nos ensinado isso, mas não vejo ninguém na imprensa (no "Público" ou quejandos) a insistentemente exigir o ensino dos detalhes da trapalhada republicana aos petizes do secundário... E a ditadura salazarista sobreviveu décadas com a anuência de forças armadas, policiais e da... população.  Houve repressão, claro. A qual depois da II Guerra Mundial se atenuou (os tais "ventos da História"). Continua-se a ouvir falar das desgraçadas mortes de José Dias Coelho ou Catarina Eufémia (Delgado é um caso muito diverso) mas o certo é que mortandade foi escassa. Não estou a dizer que foi uma ditamole. Mas sim que tal como o tratamento dado aos presos políticos "doutores" ou "filhos de doutores" era diferente do dado aos do "povo", também a repressão em África era muito mais carregada. 
 
É 1994, meu primeiro trabalho em Moçambique, estou em casa de Namwenda, um velho régulo, chefe mwekoni, está também Kolokoha, seu congénere - ambos postos da antiga chefatura macua-meto Inkigiri, dessas que in illo tempore haviam estado metidas até aos pescoços no comércio escravista. E mais uma dúzia de homens velhos, conselheiros, cabecilhas de parentelas. Eu estou a perguntar sobre as transições agrícolas do tempo colonial até àquele presente - mas deixo a conversa, animada, divagar. Até porque o que me interessa nem são as tais mudanças, estas são só pretexto. Contam-me que "antes de ter entrado a Frelimo", durante a "guerra dos macondes", os portugueses prenderam vários chefes macuas - entre os quais Namwenda - e levaram-nos para a prisão do Ibo. De sevícias em sevícias alguns haviam morrido, outros depois foram levados para a Machava (então Lourenço Marques) e desaparecido. Eram camponeses, macuas, nada tinham a ver com a guerra de independência - todos os que tenham visto filmes de guerra, tipo "Vietname", reconhecem a situação: passam os guerrilheiros a população encolhe-se, vêm os dos exércitos regulares e acusam-nos de cumplicidade e reprimem. Mas só ali, naquele episódio, já se fizera uma mole de "José Dias Coelho".
 
A conversa segue, longa tarde. Eu sei que o gravador cerceia a liberdade alheia e por isso escrevo, frenético, o que me vão dizendo. Voltamos à agricultura, ali chegou um projecto de incentivos à cultura comercial de milho e também de tabaco. Pergunto como eram os incentivos no tempo colonial. Sobre esse "fomento" logo falam da palmatoada, e descrevem. Eu sou jovem, inexperiente, e deixo escapar um esgar, impressionado. Namwenda fala, sorrindo, e todos se riem, pergunto a Tomás Brito, meu intérprete, qual a piada. Ele responde, traduzindo: "não foi você!". E todos se riem, percebendo o que está a ser traduzido mesmo que não entendam português. Eu sorrio e penso "foda-se!", "que lição!".
 
4. Ultimamente o tópico do "passado colonial" (de facto os do passados pré-colonial e colonial) tem sido sugado por um feixe de jornalistas e académicos oriundos de partidos de origens comunistas. As abordagens são panfletárias, enviesadas. As aleivosias historiográficas são constantes, as tiradas demagógicas comuns. Ora não me parece que seja necessário doirar a pílula do passado - o qual, aliás ,está patente em vários textos consistentes, e disseminados, e é interesseiro que esta gente surja repetidamente anunciando um estado de inocência da sociedade portuguesa sobre o seu passado.
 
Muito mais do que discutir as mariolices que se vão escrevendo conviria perscrutar a agenda política que tem essa minoria altissonante. De uma forma mansa poderei convocar a ideia de patriotismo de Orwell, que o disse um "conforto identitário". E o que esta extrema-esquerda identitarista deseja é romper o nosso "conforto identitário" português. Mas qual a sua agenda mais profunda, para além das pequenas benesses estatutárias (o apreço dos pares, por exemplo) e de pequenos financiamentos (os projectos, as performances, os colóquios)?
 
Cada um interprete como queira as ambições desta gente, neste seu afã de demonizar um passado que encerra numa visão que quer ser bicromática, a do mal e do bem, insensível à miríade de situações que - mesmo neste enquadramento colonialista - foram vividas. E que quer apagar os múltiplos reflexos e refracções que as variadíssimas dimensões do colonialismo tiveram e têm, em Portugal. E, mas isso então é que nada lhes interessa, nos países africanos antigas colónias.
 
O que me é relevante é não ser preciso higienizar o colonialismo, ou mesmo vasculhar em busca de um ou outro aspecto menos opressor para o poder contrapor, para perceber que estes tipos d'agora não querem entender melhor a História. Querem aldrabar - como o socratista Vale de Almeida quando clama ser Portugal um apartheid. Ou querem exercer a sua patética candura - como o (ex?)comunista Francisco Bethencourt quando vem perorar que é preciso pagar "reparações" para que as sociedades tenham um melhor  relacionamento futuro.
 
Há tempos conversava com um antigo - e excepcional - meu professor, PC "dos tempos", homem de esquerda profunda, o qual deve ter andado por esses movimentos pós-Perestroika, nem perguntei, e também ele incomodado com estas constantes patacoadas: "estes tipos sentem um défice de não terem feito a luta antifascista, anticolonialista, não tinham idade para isso, então afocinham agora nisto...", rematou. Ri-me, claro, concordando em parte, pois alguma coisa virá desse pobre entendimento autobiográfico.
 
Mas não basta como explicação global. Pois isto se faz pagar. Até a Gulbenkian, como vimos há pouco tempo, paga esta tralha.
 
(A ver se um destes dias volto ao assunto, à tal agenda política desta gente)

 

27
Dez23

Um Natal Rácico

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Uma ríspida constipação tússica impôs-me um Natal solitário, para evitar contagiar a família. Isento da fartura de bacalhau, rabanadas, sonhos, coscorões e quejandos, e do fervilhante convívio com os mais-queridos, terei sido mais atento aos derrames televisivos, tanto às notícias dos dias como ao cardápio dos obrigatórios filmes da quadra. Ou seja, a dieta incrementou o meu estupor diante deste revanchismo sociopata do governo - e da sociedade - israelita, o qual amansei com uma panaceia tomada em duas cápsulas, num dia o filme "Pretty Woman", no seguinte o "Notting Hill". 

Hoje, e porque já menos alquebrado eximi-me a ver pela enésima vez o tão obrigatório "Pale Rider". Mas, pois ainda convalescente, enrolei-me em manta e de ceroulas e pantufas assisti a uma simpaticíssima entrevista com o dr. Montenegro, passeando pelo tão aprazível litoral de Espinho, durante a qual o candidato apresentou os itens fundamentais do seu programa eleitoral. Pouco depois, já eu de chá de cidreira em punho, acompanhei o comentário político do inefável dr. Júdice. O qual me deu uma novidade - ao saudar efusivamente um inquérito feito pelo Instituto Nacional de Estatísticas, incidindo sobre as dimensões "étnicas e raciais" da população. Impante com a conquista civilizacional do nosso Estado, o referido dr. Júdice não deixou de salientar que a França não faz este tipo de questionários, algo que considerou ser causa dos problemas que aquele país tem. Deixando assim implícito que ao invés de outros países que assumem tais metodologias classificatórias, onde decerto inexistirão os tais não elencados problemas...

Mas fiquei genuinamente supreendido. Pois não tinha conhecimento de tal inquérito nem, muito menos, de que o INE já assumira esta classificação dos habitantes do país. Distracção minha, pois esta é uma verdadeira vitória política da esquerda comunitarista, dita "identitarista". Há uma imensa literatura internacional sobre o assunto, uma muito militante paladina desta classificação dita "racial" e "étnica" das populações - com grande ênfase em documentação institucional e no "activismo intelectual", toda de retórica benfazeja, e muita dela com implícitos revolucionários -, outra a isso avessa.

Não me vou abalançar a fazer uma súmula disso, para nisso promover um qualquer requebro bloguístico. Julgo saber, pelo que li num artigo de um demagogo antropólogo, que o nosso país é um "apartheid". E também que a nossa população - pelo que também li de um outro qualquer demagogo - é maioritariamente crente num "racismo cultural". Um Inferno, luso. Ainda assim prefiro ir ler os resultados do Boxing Day. E esperar que amanhã já esteja eu rijo para ir levantar os últimos exames médicos, para em breve me apresentar ufano diante da consulta aprazada para o início do ano em que serei sexagenário, impregnado que estou desta moinha duvidosa sobre se esta velha carcaça ainda aguentará mais uns tempos. Pois, de facto, é-me isso bem mais relevante do que gastar tempo a discutir esta gente, coisa afinal sem qualquer préstimo.

Ainda assim, e antes dos resultados da bola inglesa, fui ver o inquérito. Está aqui. E começa mais ou menos assim o texto estatal: "A pergunta sobre a autoidentificação étnica, à qual os respondentes poderiam assinalar mais do que uma opção do grupo a que consideravam pertencer, compreende as seguintes possibilidades de resposta: asiático, branco, cigano, negro, origem ou pertença mista" (p. 2). Sorrio. E no monólogo deste sozinhismo murmuro um arrastado "foda-se...", enquanto me noto a menear a cabeça. E depois sai-me um "este país é mesmo dos Tavares...". "E dos Júdices", complemento enquanto me levanto, pois nem vale a pena argumentar. Escorropicho o chazinho de cidreira, já morno. E vou-me servir de um uísque.

E assim fico, um branco com um uísque.

09
Set23

Matar o Boer

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Acabo de ver que João Pedro Simões Marques publicou um artigo no "Observador", "A Culpa do Homem Branco". Onde aborda o silêncio da intelectualidade portuguesa sobre a actual polémica sul-africana (e  mesmo mundial, até pela intervenção do magnata Elon Musk) em torno da insistência do político Julius Malema em cantar em público a célebre canção anti-apartheid Dubul’ Ibhunu (Matar o Boer). Na qual a frase "aw dubul’ibhunu" [atira no boer] é ritmicamente repetida, e o mote “dubula dubula" [atira, atira] é omnipresente. Julgo que a canção - um hino anti-apartheid - é de 1993, escrita como homenagem a Chris Hani, líder do PC sul-africano e dirigente do ANC, assassinado nesse ano.
 
Apesar da sua letra ser linear, explícita, como qualquer canção a Dubul’ Ibhunu é polissémica, com o sentido dependendo do contexto do entoar. E há literatura sobre isso (só no meu computador tinha três artigos de universitários sul-africanos sobre o assunto - e deixo aqui duas reportagens a dar algum contexto). E apesar dos tais múltiplos sentidos ela fora proibida em 2011 pelos tribunais sul-africanos, dado o seu carácter pouco irenista. Mas agora o peculiar político Julius Malema de novo a recuperou, tendo o tribunal revogado a proibição anterior.
 
A realidade (social, político-económica) da África do Sul é muito complexa e não tenho conhecimento actualizado para perorar sobre tudo aquilo. Mas parece-me óbvio - ainda para mais sabendo que tipo de político é Malema - que a insistente utilização da canção será tudo menos "progressista". Ou, pelo menos, é problemática dado que constitui e reproduz mundividências. E deixemo-nos de rodeios - três décadas depois do final do "apartheid" político-jurídico as desigualdades sociais e económicas do país não podem fazer esquecer o rumo do poder ANC e reduzir a situação a uma continuidade do velho regime. E muito menos podem convocar o apagamento das características ideológicas e práticas do radical populista Julius Malema, o "cantador"-mor de agora...
 
E assim João Pedro Simões Marques terá razão no seu artigo - só li o resumo, pois não sou assinante do "Observador". De facto, numa intelectualidade "activista" portuguesa, sempre pronta a "indignar-se" com o estado do mundo global - seja com uma saída mais ríspida de Melloni, uma hungarice de Orban, umas bastonadas defronte das jacqueries de magrebodescendentes, uma queixa em Kiev sobre qualquer bombardeamento sofrido, mas também com "fait-divers" como uma beijoca espanhola, um aparte de Morrisey, ou até mesmo (imagine-se!) um cruising de estrela de Hollywood, para além das boutades de Von Trier e coisas dessas, já para não falar de nacos de textos (e canções) de antanho -, a tal intelectualidade portuguesa, dizia eu, cala-se diante desta austral "mata o branco".
 
Não que se pudesse esperar que o que estes clérigos viessem a dizer sobre isto fosse de aproveitar - normalmente não se aproveita o que dizem, e ainda por cima nada perceberão da complexa África do Sul. Mas é interessante a atitude silenciosa - pois demonstra o pobre olhar que têm sobre o mundo. E a vacuidade do seu constante perorar "activístico".
 
Por isto tudo recupero este meu postal, de há cinco anos - para quem tiver paciência está aqui. O qual é uma memória de episódio de há quase 30 anos, quando trabalhei na África do Sul. Nele não falo da "Dubul’ Ibhunu" (Kill the Boer) mas sim da sua parente de então, entoada nos comícios do velho e radical Pan-African Congress, a "One Settler, One Bullet". Não só sobre a sua pertinência para aquele país naquela era - e nisso implicitamente aludindo à sua pertinência para agora, nas tais três décadas passadas.
 
Mas também como isso me serviu, já na altura, em Maio de 1994, quando regressei a casa, para perceber a tontice total dos "intelectuais" "activistas" cá do burgo. Estão agora como eram, nada aprenderam. Não porque sejam de facto incapazes de aprender com o mundo. Mas porque se absorvessem algo isso desmontaria o capital que lhes dá dividendos. O qual é, exclusivamente, a atitude...

29
Jul23

História, Escravismo e Racismo

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Fiz a 4ª classe em 1974. Como tantos dos miúdos de então aprendera já a História de Portugal nesta magnífica colecção de cromos, um original de 1953 que teve múltiplas reedições até meados dos 1970s (sobre ela ver este texto). A qual bem me marcou - e no final da licenciatura ainda fiz um trabalho sobre "o Zarolho e o Maneta" indo-europeu de Dumézil na história nacional, apenas devido às memórias dos cromos.
 
Tão impressiva ficou essa memória que ainda há dias dissertei no café sobre personagens cruciais na nossa história pátria - Deuladeu Martins (também ela figura dumeziliana, se se quiser...), Geraldo Sem-Pavor, Martim Moniz, etc. -, das quais tenho como exclusiva imagem e único saber o que aprendi naquela mítica colecção.
 
Nesse mesmo dia continuei, e explanei na esplanada a súmula do meu sempre adiado ensaio imorredoiro sobre o actual regime politico português: oscilamos entre a concepção que privilegia a indução da iniciativa empresarial privada (e muito ligada à silvicultura, note-se) e a preferência por um Estado redistributivo de índole caritativa (solidário, diz-se hoje). Ou seja, mantém-se a oposição entre D. Dinis (o tal silvícola PSD) e a Rainha Santa Isabel (o PS)- cujo debate político (conhecido como "Milagre das Rosas) apenas conheço através do cromo desta colecção.
 
Dito isto, em 1974/5 entrei no então Ciclo Preparatório e tive uma excelente professora de História, Margarida Cabral. Depois, já no Ensino Secundário, os meus pais remeteram-me para a escola oficial, os "Viveiros" de então - "não quis que fosses um menino de colégio" veio-me a dizer o meu pai uns anos depois, justificando ideologicamente a aberrante decisão.... Ainda assim ainda tive dois excelentes professores de História, no 10º ano (Abílio Esteves) e 11º ano (injustamente esqueci-lhe o nome). Em todos esses anos nunca me ensinaram a História de Portugal sob o molde de uma narrativa glorificadora da Gesta Pátria, mitificando a grandeza dos Feitos Imorredoiros. Nunca! Não esqueci os cromos mas fiquei com uma outra visão do rumo nacional. Jovenzinho subi à universidade. Tive uma disciplina de História Contemporânea - com Miriam Halpern Pereira, assistida por António Costa Pinto. Líamos a própria Halpern Pereira, Valentim Alexandre, José Capela, em 1984, há 40 anos! Mitos, Grandiloquência Patriótica? Nem um laivo!
 
Uma década depois fui trabalhar para a (excelente) Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Nesta, grosso modo, houve duas épocas, com alguma diferença que não abissal. Sob o primeiro Comissário Vasco Graça Moura predominou uma abordagem historiográfica menos "analítica" (opto pelo termo mais "liso") e mais manuseável para a sua apresentação pública. Depois, sob o segundo Comissário, António Manuel Hespanha, e sem desprimor pela espectacularização comemorativa, privilegiou-se uma historiografia "analítica", mais problematizadora dos processos históricos - um rumo que foi continuado pelo terceiro Comissário Joaquim Romero de Magalhães. É justo dizer que nessa década e meia não se enfatizou a vertente do escravismo, mas ela não foi apagada. E que bastantes investigações foram apoiadas e/ou publicadas, com vasta disseminação. Mas mais ainda: nesta semana andei a limpar velhos dossiers e redescobri uma luminosa conferência do Hespanha, "As narrativas da interculturalidade", de Março de 1997. Não posso precisar se foi proferida em Lisboa ou em Maputo, mas nessas breves 8 páginas ele problematizava as questões fundamentais da história da expansão portuguesa, das formas de a analisarmos actualmente e a necessidade de sobre elas reflectirmos em termos de política, interna e externa. E o homem era o Comissário-Geral das Comemorações dos Descobrimentos Portugueses...
 
Depois fui 18 anos para Moçambique e não andei propriamente a ler a história pós-medieval portuguesa. Entretanto a minha filha fez o "liceu" no estrangeiro e assim não conheci os actuais livros escolares portugueses. Mas não acredito que - apesar da consabida influência da intelectualidade do PS - o ensino da História tenha regredido até aos modos patrioteiros colonialistas dos tempos do Ultimatum e da I República. Ou do Estado Novo...
 
Todas estas memórias (aborrecidas, os velhos inutilizados têm a mania de chatear os outros com os seus passados, coisas de "has been...") vêm-me a propósito das constantes publicações na imprensa sobre a necessidade de "trazer a lume" a "Escravatura" portuguesa, de "descolonizar a história de Portugal", de nisso afrontar o "racismo sistémico, estrutural" que polui os portugueses, qual necrose das suas almas. Todos eles clamam que a história portuguesa se reduz a um rosário de malevolências e que nada disso tem sido dito, na academia, no ensino, na sociedade. São falsários. Alguns são militantes políticos ("activistas", diz-se agora) demagógicos. Outros são académicos falsários, o que é muito mais grave. Alguns outros são apenas jornalistas, e como tal não precisam de adjectivos desqualificativos.
 
O outro dia vi uma reportagem da SIC, anunciada com a habitual pompa e "gravitas" por Rodrigo Guedes de Carvalho, chamada "Pretérito Imperfeito". Uma patetice pegada... Entre a colecção de dislates - e disso eximo o actual ministro da Cultura, ali respondendo com bom senso às patacoadas da repórter - saliento uma investigadora de Coimbra. Analisando os "manuais escolares" denunciava, com veemência, o facto de ser ensinado que os portugueses comerciavam "especiarias, marfim e escravos". E que não se diz, reclamava, "pessoas escravizadas". Ou seja, para esta intelectual "abissal" se eu conseguisse arranjar um lugar de professor de História (o ensino do secundário está vedado aos antropólogos, talvez por a corporação andar há décadas entretida nestas maluquices ideológicas e descurar o rumo profissional dos licenciados), eu deveria ensinar aos petizes que o comércio na era das navegações se centrava em "pessoas escravizadas", "marfim animal" e "especiarias vegetais". Caso contrário as pobres crianças (uns "monstros", como disse um psicanalista célebre) não compreenderão...
 
E entretanto todas as semanas é publicada mais uma atoarda destas - no "Público", no "Expresso", nas televisões. Nisso pulula um conjunto de "activistas", entre performers, artistas, jornalistas, académicos, e entre estes vários antropólogos - desses que vão pisar os brasões municipais na Praça do Império mas que nem percebem que a avenida que sobe até ao "Humberto Delgado" (nome que apreciam) se chama Avenida (da Conferência) de Berlim, ignorância irreflectida e apenas festiva que bem justifica que lhe troquem os nomes na tv... -, um conjunto aparentemente avantajado de gente que vai botando textos desabridos e falsários. Pejados de jargão, anunciam um malvado ensino da História e uma concepção de Portugal que não é real.
 
E há meia dúzia de tipos que lhes vão respondendo, com o saber e o talento de cada um. Mas que nisso apenas incrementam o eco destes dislates. Agora vejo que saiu uma pomposa "declaração do Porto", vinda desses "activistas" - deve ter saído de uma actividade artístico-política que ocorreu quando estive nessa cidade há semanas. É um documentozito esquerdalho, uma "sobrevivência" dos tempos m-l, quais ressureições das FEC (m-l), PSR, PCP (R) e quejandas organizações revolucionárias. Dizendo-se contra o colonialismo e o racismo, ditos vigentes, o sumo das reclamações é uma discursata mal amanhada contra o capitalismo.
 
E tal como o país nada ligou a esses grupelhos nos 70s e 80s, bem que se podia fazer o mesmo a estes seus demagógicos descendentes. Haverá entre eles uma ou outra alma bem intencionada, pulularão intelectuais humanamente em busca de militâncias que propiciem tardias erecções. Mas de facto é uma tralha. "Aldrabística"...

30
Jun23

O anúncio da PSP

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Um homem não deve ligar às imbecilidades que vai lendo na imprensa, em particular aquelas imbecilmente partilhadas nas redes sociais. Mas há tardes…

Há anos o “Público” publicou uma série de entrevistas pindéricas sobre o racismo - julgo que vieram passar a livro. Um afamado antropólogo socratista, entusiasmado, veio a escrever no mesmo jornal que elas “provavam” a existência local do fenómeno - uma deriva “positivista” que às vezes dá jeito, possibilitando que este tipo de gente publique no mesmo boletim que “vivemos num apartheid”. Li algumas dessas peças - e lembro a conversa com uma das entrevistadas, cientista social estrangeira que bem acima está desta tralha, que me contava dos rumos entrevistadores. Explícitos para aqueles, como ela (e até eu) sabem da gigantesca diferença (intelectual, moral, deontológica) entre pôr o informante/entrevistado a falar do que queremos ou a dizer o que queremos. Enfim, almoçávamos nós em esplanada lisboeta e perguntou-me ela se eu lera as entrevistas. Respondi eu que vira algumas, com menosprezo, lembrando que uma delas clamava o racismo português, tamanho que não havia negros nas telenovelas e nos frascos de shampoo… E que a vítima entrevistada não suportava tal coisa, a “invisibilidade” racista, tão letal que partira ela, artista, para a ecuménica Berlim. Rimo-nos, apesar de não estarmos em dias e eras de grandes boas disposições.

Mas este gemebundismo vingou. Há pouco tempo o esquerdalhismo orgasmou-se com as tranças rastafari de um apresentador de telejornais, dando-lhes estatuto fundacional. Depois outra apresentadora de notícias, dotada de cuidado e vasto cabelo “afro”, chorava a morte do norte-americano Floyd enquanto esquecia as mortes contemporâneas, às mãos de similares polícias, de indo-descendente na Beira e de eslavo no aeroporto de Lisboa. A tal “invisibilidade” “racista” reduzia-se… e não só assim.

Há algum tempo entrei na loja da Vodafone do Vasco da Gama. Notei que estava decorada com vários cartazes de risonhos clientes da empresa, na sua maioria negros - o trabalho que as grandes empresas dão a modelos, profissionais ou amadores, é uma forma de luta contra a “invisibilidade” “racista”. Presumo que nas telenovelas aconteça o mesmo. Sorri e comentei o facto com a minha companhia, a melhor que poderia querer. Para seu incómodo, que notar estas coisas pode parecer mal, “racismo” até…

Regresso ao início. Vejo no FB partilhas de um texto jornalístico de um consabido demagogo comunista, que ali chega por via de alguém que há décadas embrulha o seu vil otelismo assassino com berloques da “capela do Rato”. Somos agora racistas, diz esta gente, porque a PSP fez um anúncio para candidaturas usando a fotografia de um agente negro...

Há pessoas que aplaudem, “partilham”, “gostam” deste lixo. De gente. Eu nada digo. As minhas amadas filha e irmã proíbem-me de explicitar o que penso.

13
Jun23

A Caricatura de António Costa

jpt

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(Santiagu)
 
Há polémica sobre um cartaz usado pelos professores, caricaturando António Costa. Não discuto a justeza das reclamações da mole docente nem a tipologia das suas acções reivindicativas nem a política do governo na área correspondente - nem sequer isso de Costa ter mentido quando se deparou com manifestantes nas comemorações do 10 de Junho.
 
O assunto é a caricatura de Costa que foi usada. Não gosto dela. Mais pelo detalhe dos lápis espetados nos olhos - que poderá ter um qualquer significado que se me escapa mas ainda que assim seja é vudu em demasia para este ateu.
 
O relevante é que até Costa se vitimizou, jogando a "carta racial", invectivando de "racistas" os portadores da imagem. Sendo logo seguido pelos seus acólitos: clamam que o uso de lábios desmesurados é um "estereótipo racista" e implicitam que a cobertura porcina aposta à cabeça de Costa também o é. E exemplo mediático dessa filiação é Carmo Afonso - a colunista que há um ano se dizia perseguida, censurada e criminalizada devido à sua russofilia mas à qual o jornal da SONAE continua a atribuir página inteira. Misturando a sua reclamação de "racismo" pictórico com a convocação de um assassinato cometido há três anos por um geronte veterano de guerra, Afonso aponta que é racista quem não vê "racismo" nesta agressão pictórica ao PM, pois "os racistas não reconhecem o racismo". Ora, e por outros não falo, isso irrita-me: pois não é a burguesota lisboeta que um Zé Sá Fernandes chama para falar da história do "Frágil", russófila ainda por cima, que me vem chamar racista...
 
É a caricatura desagradável? É. Mas é feita para isso. Incomoda alguns (a mim o tal aparente vudu...)? É feita para isso. É deselegante? Depende de quem vê, mas sê-lo-á para muitos, pois procura-o ser. Têm os tipos que a usam razão ou razões? É outro assunto.
 
É racista? Não posso afiançar das intenções do autor - pois não sendo ele caricaturista publicado não posso associar esta obra ao seu historial, nisso tentando perceber o seu fundo ideológico. Mas olhando apenas para este desenho - que é o que é possível - é evidente que ele entronca, até filialmente, na tradição da caricatura política portuguesa. Por um lado, a extrema desvalorização dos agentes políticos, como exemplifico abaixo: Bordalo Pinheiro retratando-os como suínos, em célebre desenho que viria a ser retomado por Vilhena, Alonso mostrando-os como fezes, ou Leal da Câmara retratando o rei D. Carlos como porco (!). Por outro lado, a utilização de um ferrete ferino, como Cid na sua "africanização" de Eanes, sua "bête noire", mas que não tinha um teor racista. Ou desbragado, como Vilhena na sua travestização e mesmo transvestização de Soares (o que diriam hoje estes "justiceiros" wokes, os espertalhoucos, se caricaturas similares surgissem).
 
E acima de tudo na utilização de traços físicos dos retratados/invectivados, exagerados até de modo histriónico, procurando o grotesco, por vezes agressivo, outros vezes até carinhoso. A penca adunca de Sá Carneiro (anti-semitismo, poderia dizer um seu fanático defensor), as lendárias sobrancelhas de Cunhal - aqui exemplificados com Vilhena - os rotundos lábios de Freitas do Amaral, como os viu António. Ou os lábios de António Guterres, em recente caricatura de Santiagu, premiada pelo estatal Museu Nacional da Imprensa e elogiada pelo seu director Luís Humberto Marcos.
 
Para estes lábios não há racismo?, dir-se-ia diante do atrevido e demagógico coro dos ofendidos de agora. Deixemo-nos de confusões. Este caso não se trata de um grupo de coirões a gozar com o feitio físico de um qualquer desvalido solitário - apoucando-o por isso, nisso insecurizando-o -, oriundo de Nepal, Senegal ou alhures, isso sim racismo. Trata-se de uns contestatários, talvez irritantes, agredindo simbolicamente um primeiro-ministro - cuja ascendência patrilinear é de portugueses asiáticos (goeses católicos), mas aqui invectivado tal e qual como se político unicamente descendente daqueles bárbaros que vinham com Pelágios e Urracas.
 
Tudo o resto é a mistura da falta de encaixe de António Costa, denotativo do autoritarismo sobranceiro com que vem olhando o país, e do afã dos acólitos, avençados ou assalariados, a aproveitaram-se destes estuporados "ares dos tempos"...
 

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(António)

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(Augusto Cid)

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(Augusto Cid)

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(Leal da Câmara)

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(Alonso)

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(Vilhena)

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(Vilhena)

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(Vilhena, recriando Bordalo Pinheiro)

 

13
Jun23

A desfaçatez da moamba

jpt

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Razão tem a ex-deputada Katar Moreira, os portugueses são o cúmulo da desfaçatez. Urge cancelá-los! Ainda bem que ela não verá esta minha publicação, que decerto lhe despertaria (ainda mais) ira. Pois aqui se retrata o jantar de um português, “branco” ainda por cima - e por isso um dos tais da desfaçatez -, lisboeta em véspera de Santo António: uma (magnífica) moamba com funge (caracata, se se quiser, xima de mandioca para facilitar), que lhe foi ofertada pelo autor. Sendo este um outro “branco”, português, que nem nunca viveu em África. E ainda pior, tudo isto acontece em festa de Santo Padroeiro. Malvados colonos colonialistas, gulosos na sua tal desfaçatez. Enfim, brancos!

31
Mai23

O Conde de Ferreira

jpt

Há 11 anos José Capela publicou o livro "Conde de Ferreira e Cª: Traficantes de Escravos", colecção de biografias de comerciantes de escravaturas ("negreiros") do século XIX. Quando ele morreu deixei no "Canal de Moçambique" esta muito breve recensão a esse livro (e a outro que ele publicara no ano seguinte, uma verdadeira pérola: "Delfim José de Oliveira..."). Foi uma espécie de homenagem minha, pois Soares Martins (de pseudónimo Capela) fora muito importante na minha vida e tinha (e tenho) para ele uma enorme gratidão. E um grande respeito intelectual, também (mas não só) por ter passado décadas a vasculhar documentos e a publicar, sem pejo nem adornos, sobre como o comércio de escravos foi estruturante no pré-colonialismo português em Moçambique. E como isso moldou as características do subsequente regime colonial - apesar das tralhas lusotropicalistas e lusófonas que vão subsistindo, já para não falar das dulcificadas invocações dos "bons velhos tempos", que tanto misturam as normais (e respeitáveis) memórias individuais de juventude com pronunciamentos de cariz sociológico. Enfim, talvez com um bocadinho de exagero, mas cheguei aos 50 anos com a sensação de que se tive algum "maître à penser" acabou por ser ele... sem que isso possa macular a sua memória devido às atoardas que vou botando. Mas já estou a divagar, avante,
 
Nesse "Conde de Ferreira..." Capela deixou explícito que vários desses comerciantes de escravos regressaram do Brasil mais ou menos após a ilegalização da actividade e se integraram na sociedade do novo regime liberal (e o financiaram), usando as doações beneficientes para ascenderem socialmente. Nisso também patrocinando instituições que ainda existem (misericórdias, hospitais, etc.).
 
Sei agora por intermédio do historiador João Pedro Simões Marques que aconteceu o que eu esperava há já anos - os cirugiões plásticos da História descobriram o Conde de Ferreira (tão presente por esse Portugal afora, ainda que quase ninguém saiba quem foi). E o "Público" (claro) já está em ardores de expurgar as tais instituições dessa memória...
 
Eu continuo na minha, ao que consta na documentação da época (ainda que um pouco posterior) o malvado D. Pedro I não só castrou um aio devido aos seus ilegítimos actos sexuais (um antecessor do prof. Ventura e seus acólitos, está visto) como matou por mãos próprias uns esbirros do seu pai (e terá até comido parte do coração de um deles, a crer ou no cronista ou na colecção de cromos a que tive acesso). E apesar de tudo isso, que tanto agride os actuais valores, continua ali, plantado no centro do nosso Mosteiro de Alcobaça, como símbolo de amor, ainda por cima. Não será, mesmo, de acabar o que os franceses começaram, e rebentar-lhe com a tumba? Ou, pelo menos, retirá-la dos nossos olhos, evitar aquele elogio à memória da ditadura, da pena de morte e da castração por infidelidade amorosa (invertida ou não)?

28
Mai23

A Esquerdalhada

jpt

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(Texto [também] para o Jorge Forjaz, que me escreveu sobre o meu "Descolonizar a Língua Portuguesa" resmungando "Se não te referisses e adjectivasses tanto a esquerdalhada tinhas mais razão" e ao qual eu anunciei "vou-te responder" para dele receber um sorridente "Com direito a resposta? Oh lá lá". Entre viagens e outros afazeres demorei-me demasiado na resposta...)

***

Num postal recente usei o termo "esquerdalhada" (que me é habitual). E logo três amigos me enviaram mensagens, pois com ele incomodados. Nos comentários recebidos (no meu mural de Facebook) também surgiu algum desconforto - e mesmo imprecações. Naquela plataforma a ligação ao texto foi partilhada por outros - o que lhes agradeço - em cujos murais também notei algumas reacções desagradadas, até furiosas. Isto mostra a vigência de um sentimento pelo qual sobre os locutores de “esquerda” não se deve verbalizar menosprezo ou desrespeito pelas suas atrapalhadas ou aldrabadas opiniões.

Reacções ao invés das esperadas face à rapaziada da direita. Sobre esta há dois termos que vão surgindo: o mais raro “direitinhas” - em tempos consagrado em banda desenhada publicada no “Diário”, o jornal do PCP dirigido por Miguel Urbano Rodrigues -, mas que não vinga muito dado o tom pouco ferino que aquele sufixo sempre dá. E o mais habitual - e quase automático - “fascistas” (ou “faxos”), uma evidente desvalorização ética e intelectual.

Ou seja, se eu, ou outrem, diante dos dislates agora até algo habituais daqueles que se propõem decepar genitais alheios, hastear bandeiras nacionais em edifícios oficiais nas antigas colónias ou louvaminhar as inexcedíveis qualidades do colonialismo português (o qual “nunca existiu”, a crermos na douta bibliografia, titulada sem a ironia do texto que glosa), falar de “direitinhas”, de “fascistas” (ou mesmo de “fdp’s” por extenso, como fiz há pouco - quando o professor Ventura inculpou Costa de um duplo assassinato) não tenho ecos abespinhados. E isso não se restringe às peculiaridades do agora CHEGA. Pois sou tão velho que me lembro de ver o tal insulto “fascistas” atribuído a gente como… Franco Charais e Pezarat Correia. Ou António Barreto. E desde então Ferreira Leite ou Vítor Gaspar e um vasto etc. foram assim ditos, e também estrangeiros, estes até mesmo nazis, como Merkel ou Bento XVI. E tais epítetos não colhem apenas silêncios mas mesmo anuências - mesmo entre aqueles que os assumem como meras metáforas (e não são as invectivas, sarcásticas ou insultuosas, quase sempre metafóricas?).

Mas o apreço “neutral” pelo desapreço face à malta à direita é até mais abrangente: nenhum amigo se preocupa quando afloro eu - como aqui o fiz - os dizeres, de facto apenas onomatopaicos, dos negacionistas das alterações climáticas, estes sempre urrando que tal coisa é mito emanado do “marxismo cultural”, deístas pagãos que são, e nisso obtusos crentes de que da divindade Mercado nada de negativo pode brotar. “Sempre as houve”, “dizem que há aquecimento mas está a chover”, expectoram ainda que doutores e engenheiros. E mesmo que pais e avós extremosos das suas “boas famílias” fazem trocadilhos brejeiros com o nome da célebre jovem ecologista sueca, num verdadeiro Cialis deste senil imbecilismo “liberal”.

Tal como não li agravos quando propus o regresso ao útero materno dos energúmenos anti-vacinas do Covid-19 - como, por exemplo, aqui - saídos das grutas mais recônditas do reaccionarismo pimpão, desvairados avessos à intrusão estatal que lhes quis injectar químicos pois entendendo-a escrava das apetências lucrativas das farmacêuticas - ainda que depois não hesitem em encharcar-se (e às respectivas parentelas) em tão dispendiosas quimio e radioterapias que os Estados compram às tais farmacêuticas interesseiras para a eles - e seus próximos - prolongar as verborrágicas vidas. Ou ainda, para último exemplo, quando resmungo contra a rústica inintelectualidade de alguma direita portuguesa, incapaz de avisar um irritante, e de histriónica ignorância, casal nortenho de que a Escola tem mesmo como tarefa Educar Para a Cidadania.

Em suma, neste ambiente é aceitável, e até saudável, usar do sarcasmo para invectivar a “direita” mas é inaceitável, pois ofensivo, escarnecer da “esquerda”. Como se esta, e os seus fiéis, tenha uma universal virtude. Qual uma superior decência e uma acrescida potência.

É um traço interessante porque o pejorativo (e quantas vezes enojado) “esquerdalho” - e o correlativo “grupelho” - são termos que não têm um “pedigree” de “direita”. De facto, emanaram de uma força de esquerda, aplicados às moles de patetas m-l de então, essas que agora se apresentam sob as pestíferas vestes “identitaristas”: tratava-se do feixe de excitados sociopatas que o secretário-geral abordou no seu “O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”, entretanto travestido (ou transvestido, não sei...) num tal de “identitarismo”.

Também por isso esta expressão pejorativa não recai sobre o amplexo PCP. Não só por estas razões históricas mas ainda devido a dados estéticos: mesmo na sua decadente situação intelectual actual - longe vai a época em que o PCP tinha quadros como Luís Sá, Barros Moura, João Amaral, ou Vital Moreira a renovar Marx, para além da tutela de Cunhal, e fica-se agora pelos esparvoados tuítes do tão elogiado António Filipe - o "partido" tem alguma... "correcção formal". Como se uma espécie de quadratura do quadrado, algo que o torna algo imune a algum tipo de críticas mais sarcásticas ou ríspidas: foi decerto por esse desvelo estético, nisso ético, que nesta era de tamanhas retóricas “cuidadoras” das “minorias etnoculturais” puderam os comunistas emanar um comunicado oficial - após a invasão russa da Ucrânia - louvando a excelência das políticas soviéticas relativas às “minorias [étnico-]nacionais” sem que tivessem sequer tremido o Carmo e a Trindade “identitarista”, "multicultural".

Também, fora dos dizeres presentes no espectro partidário, não aplico, nem se costuma aplicar, este tipo de sarcasmo a discursos desenvolvimentistas - de facto muito ausentes da cena pública portuguesa. Mesmo que nestes abundem os utopismos e, bem pior, sejam frequentemente poluídos pela recepção das "causas" e linguajares típicos de alguns movimentos identitaristas ocidentais. É como se a adesão, sob variadas formas, ao ideário do "desenvolvimento humano" blinde algumas das vozes mais impensantes que sob ele se agregam, como por exemplo os palradores do "empoderamento", que nem fabianos se percebem, ou os que mesclam a temática do "género" com as questões da sexualidade, imaginando que o mundo é uma Nova Inglaterra hollywoodesca.

De facto esta “esquerdalhada”, demagógica - e nisso desonesta - ou apenas tonta, e sempre histriónica, não é a “esquerda” mas apenas (plurais) feixes internos à “esquerda”. Por cá muito em voga e muito visíveis dada a descabida influência que têm na imprensa e nas universidades. E tendo alguns agentes de verve fácil muito escapa esta mole ao crivo crítico. Nessa pluralidade loquaz, e abrangência temática, torna-se algo difícil descrever (e assim definir) este cadinho de textos oriundos do “radicalismo pequeno-burguês de fachada identitarista” sem recorrer a laivos de alguns locutores, qual galeria de ilustrações, uma chinoiserie

Mas fazê-lo acabará por ser desagradável. Pois não só eu não leio muitos desses constantes textos idolátricos - até os evito -, como à maioria daqueles a que chego faço-o por conselho de alguns cruéis amigos, malévolos nos seus verrinosos avisos “já viste o que fulano de tal botou?”. Ora isso tem um corolário, pois sou conduzido (deixo-me conduzir) a ler as trapalhadas botadas por gente que conheço ou com a qual tenho conhecimentos comuns, afinal uma pequena “lisboa” do Minho à Madeira. E assim o meu sacar da cimitarra, a volúpia assassina, pode parecer ad hominem. Quando não é, mas sim uma aversão higiénica face a destrambelhados argumentos colectivos individualmente expostos. E, por vezes, mas apenas no caso dos socratistas, um afã sociocida, portanto também colectivo.

Na realidade, mais do que avaliar da hipotética pertinência dos problemas sociais que são apontados ou das soluções que são propostas (quando o são) o que é mais notório é que neste eixo discursivo esquerdalho se tratam de expressões atitudinais, assentes numa vácua superficialidade embrulhada em retóricas histriónicas. O objectivo é sempre o de constituir "grupos"-para-si, entidades mobilizadas para o "activismo", numa burguesa refracção do velho ideário da - agora - "luta das identidades" como "motor da história". Mas ouvindo/lendo os pretensos "intelectuais orgânicos" o que logo se apreende é que na sua grandiloquência surgem como aquilo a que José Cutileiro aludiu no seu "Abril e Outras Transições”, nada mais do que discursos reconhecíveis como “when a man is talking rot”… 

Há três trombos fundamentais nestas vias discursivas, que passo a a exemplificar usando alguns casos que vão vegetando na minha memória. Um é o culto do "construtivismo", a académica ideia - pacífica em si mesma - de que as realidades sociais são socialmente construídas. E que nesses processos - o que é um bocadinho mais discutível - os formatos discursivos (os conteúdos linguísticos, para facilitar) são um material fundamental da edificação das lógicas e das mundividências, assim da miríade de valores e poderes presentes em cada sociedade. Há nisso uma espécie de linear determinismo, como se sociológico fosse, e que vem promovendo esta moda de depuração dos linguajares. Troque-se por miúdos: parece que o governo indiano - agora muito louvado na reemergência geopolítica dos BRICS, considerada fundamental pela esquerda radical para se combater a "episteme" obscurantista "ocidental" - acaba de retirar o evolucionismo darwiniano do ensino escolar. Em Portugal, membro da perversa hidra capitalista ocidental, esse ensino mantém-se, tal como os restantes itens da ciência contemporânea. No entanto para esta esquerda identitarista, prenhe de afã purificador da língua, tudo funciona como se o ensino (escolar e por outros meios) da ciência de nada sirva, pois continuamos a chamar "nascer do Sol" à alvorada e "pôr-do-sol" ao ocaso. Ou seja, crêem que apesar de alguns esforços pedagógicos as palavras nos condenam - e neste caso à mundividência da crença geocêntrica, pois as amarras linguísticas nos farão pretéritos a Copérnico e Galileu.

Tal concepção nota-se no eixo feminista - em sentido amplo, a defesa da igualdade e equidade de mulheres e homens, algo que é historicamente uma matéria de “esquerda”. Um dia li no "Público" um artigo de uma cientista social - muito louvado pelas minhas colegas moçambicanas especialistas em questões de Género, decerto que por conhecerem a autora - a clamar contra o universal masculino gramatical, como sendo este um instrumento de reprodução da opressão falocrática. Reparei que a senhora tinha aposto como epígrafe o Magritte do “ceci n’est pas une pipe” - estava eu a viver na Bruxelas do artista, o que mais me chamou a atenção. Ora a autora feminista passava o artigo a defender que “cachimbo” deve ser cachimbo - no tal ditirambo contra as algemas gramaticais, as masmorras sintácticas e os cadafalsos semânticos que considera serem e promoverem os malvados poderes -, sem perceber a sua gritante contradição. Não pude evitar pensar, e por várias razões, que tudo aquilo (preocupações gramaticais, textinho ufano e aplausos dos cientistas apoiantes) era uma esquerdalhice tonta, típica da esquerdalhada. E é apenas um exemplo de incultura aplaudida pelas "elites" "intelectuais", do ambiente geral cristalizado no patético uso das "Todes" ou "Todxs" e afins por burguesotes que assim se imaginam "radicais" e, mesmo, "cidadãos". E o passo avante desta deturpada perspectiva "construtivista" é o que agora grassa, a vertigem censória, a purga que se faz aos textos do passado e os limites censórios àqueles ainda em produção, convocados a associarem-se a determinadas "sensibilidades" em voga...

Mas este rumo não passa apenas por patetices como este exemplo que dei. Há muita demagogia, no rumo de um verdadeiro aldrabismo. Um dos vectores interessantes nestes "construtivistas" de cardápio é o facto de associarem esta crença de que os termos têm - por si só - efeitos sociais (perversos) à vontade de instaurarem a discriminação oficial de categorias raciais, uma evidente contradição. O debate sobre políticas equitativas é salutar e fundamental. Uma das dimensões desse debate - o qual em Portugal é muito frágil por deficiência intelectual societária - é o que opõe o secularismo comunitarista da esquerda identitarista aos adeptos da laicidade universalista, defensores de uma cidadania republicana. Os primeiros querem fragmentar a população em entidades discretas de cariz “étnico” e “racial” (ainda que não as saibam definir) para promoverem “discriminações positivas”. Este é um debate interno à “esquerda” mas também com a “direita” e o “centro”.

Ora, também no famigerado “Público”, li há anos um artigo - de alguém que se subscrevia com o nome da instituição científica estatal que o emprega (ou seja, convocando o empregador para sedimentar as suas opiniões políticas, uma manobra rasteira...) - no qual se defendia o tal recenseamento “étnico-racial” afirmando “numa sociedade aberta o Estado deve poder perguntar tudo” e “cumpre aos cidadãos comprovar a razão de não quererem responder”. Ou seja, o Estado deve exigir às pessoas que se identifiquem e situem segundo classes "étnicas" e "raciais", se pensem e actuem consoante tal, e sejam objecto de políticas estatais peculiares sob essa condição. Sendo assim a tal "sociedade aberta". A mim, diante desta torpe manipulação da célebre expressão de Popper, crucial no ideário liberal, ocorreu-me o óbvio, que o artigo era uma esquerdalhada, abjecta demagogia, talvez típica do seu autor, decerto que disseminada entre os seus admiradores. E convém perceber que este fervor racialista - apresentado como factor de equidade - implica a utilização das tais palavras que manipulam as mentes (como sempre assumem em relação a outros assuntos). Assim sendo, para estes esquerdalhos eu estou errado quando digo "todos" ou "todas" e estou errado quando não digo "negros" e "amarelos" - como se houvesse discriminações a fazer e outras a evitar. No fundo, o que este esquerdalhismo quer é sedimentar, enquistar, entidades conflituantes. E entretanto evitar que um cozinheiro "branco" apresente uma receita de moamba na televisão - e a desfaçatez é a minha. E não a dos esquerdalhos que se congregam em torno destes dislates.

Um segundo trombo desta "esquerda" radicalizada é o seu evolucionismo, metástase do seu marxismo vulgar. Pois nela habita a crença de que as sociedades evoluem (se direccionam num sentido positivo, pois é preciso traduzir isto num país onde amiúde se ouve o oxímoro "evolução negativa"), num rumo relativamente pré-determinado, "progressista" dizia-se. Nesse marxismo vulgar vigente o tal trombo é a crença de que as sociedades ocidentais, as do capitalismo pérfido, esgotaram as suas capacidades de se transformarem e daí a necessidade de uma qualquer "transição". A efectivação desta crença do actual "imobilismo" por "exaustão" social, conduzindo a um "atavismo", tem agora um tópico em Portugal - para este "esquerdismo", o tal "esquerdalhismo" folclórico, a sociedade portuguesa é um mero e malévolo epifenómeno do passado recuado.

Daí o surgimento, cinquenta anos depois das independências das antigas colónias, de uma série de paladinos da necessidade de afirmar o país como fruto de uma história escravista, como se esta moldasse o Portugal actual, lhe estivesse no âmago. A vontade é simples, transformar o ensino da História e a consciência nacional numa traumatizada versão de nós-próprios, de facto seguindo o desígnio de apoucar a identidade nacional, e nisso a comunidade nacional - pois esta dada a capitalismos e até conservadorismos. Um projecto até contraditório num país que nem tem um ensino patrioteiro nem alberga projectos de expansão nacionalista ou neo-colonial.

Parte deste rumo vem de uma até pungente condição, o facto de alguns intelectuais (historiadores e afins) terem dedicado parte das suas carreiras de investigação a temáticas da expansão portuguesa em África (e no Brasil) e de ansiarem por um estatuto de "intelectuais públicos". Algo para o qual sentem (erradamente, diga-se) necessitar de capitalizar, usando-o linearmente, o que estudaram sobre séculos prévios, atribuindo as características que nesses identificam às realidades actuais. O interessante é que se forçam a presença actual das categorias existentes na sociedade portuguesa de antanho são incapazes, ou disso desinteressados - por alguns motivos ideológicos -, de vasculharem nas sociedades africanas actuais alguns vestígios dessa realidade escravista ali duradoura durante séculos.

O que demonstra que, por mais punitivos que queiram ser sobre o passado e o presente português, são incapazes de ultrapassar um traço típico nacional - o da distracção face a realidades outras, sempre centrados no nosso país (isto é algo que esmiucei num texto longo, "O Olhar Português"). Ou seja, estes doutos intelectuais, 50 anos depois das independências das colónias portuguesas, sobre África pouco ou nada dizem, apenas lhes importam os ecos (demoníacos ou gloriosos) da história pátria. E é isso que os torna "intelectuais públicos", "críticos". É evidente que há diferenças internas neste eixo de discursos, entre os que analisam a história portuguesa, na sequência do que fizeram alguns da geração anterior - quantas vezes seus mestres -, e os que se limitam a gesticular - como alguns que, também no "Público" (sempre o palco privilegiado deste coro), defendem a "intervenção" "anti-colonial" sobre o património artístico. Mas, e o que é uma deliciosa demonstração da pantomina desses autores, daqueles itens patrimoniais que estão na rua, pois isentam os itens alojados no interior de edifícios desses propósitos "intervencionistas"...

O terceiro trombo, evidentemente ligado aos anteriores, é a afirmação de que o nosso país é um extremo caso de racismo, que "Portugal vive num apartheid", como clamava (no "Público", claro) há anos um antropólogo defendendo a inenarrável Katar Moreira (a tal da moamba racializada). Talvez por isso possa ter eu visto uma activista, apresentada como senhora professora, na televisão defendendo o "Mamadu" - assim como um sindicalista em apoio à "Isabel" (Camarinha), um autarca ombreando com o "Rui" (Moreira), um académico louvando o "António" (Sousa Pereira), um camarada subscrevendo o "Francisco" (Louçã), etc. E nessa candura, até pungente, afirmando a pés juntos que o racismo é monopólio dos brancos, explicitando querer ensinar isso à audiência televisiva enquanto tentava balbuciar uma recensão oral de um qualquer "paper" onde aprendera a atoarda, tão "decolonial". Pobre jovem senhora, com todos os sinais físicos e verbais da boa pessoa, cheia de boas intenções salvíficas, avatar de avoengas missionárias, nem sabia o que significava "uigures"! E ali estava defendendo, pedagógica, um conjunto de sábias (porque produtivas) patacoadas. 

Esquerdalhada? É isto, entre inúmeros, constantes, exemplos, provindos de algumas almas caridosas ou mentes fabianas misturadas com uns mariolas "activistas" - estes sempre com "um olho no racializado, outro no burro". De facto militantes da superficialidade, eles sim algemados à "atitude". Que julgam certa ou isso lhes convém no mercado estatutário.

Há uns anos dediquei um postal a uma querida amiga, que senti demasiado sensível a alguma daquela verve esquerdalha. Tinha até a ideia de lhe dedicar uma série de postais, procurando demonstrar-lhe os chorrilhos de asneiras convictas que ia lendo por cá. Mas depois desisti, que há tanto mais em que pensar. Então, sobre a superficialidade esquerdalha e suas patéticas atitudes, ficou só aquele postal: "O Corredor", minha memória de quando trabalhei na África do Sul. 30 anos depois o mundo mudou bastante. Mas não o esquerdalhismo, seus ademanes, trejeitos. E objectivos. Os quais são, como antes o foram, malévolos. Por mais roupagem garrida que traga.

No fundo, no fundo, a diferença é mais ou menos como olhar para este mural que encontrei patente na construção de um prédio de Bogotá: "Obrero Sexy". Que cada um interprete à sua maneira. De modo mais ou menos em voga...

13
Mar23

Polémicas literatas

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Não sou muito dado a livros, quase nada às novidades e ainda menos às coisas e causas da literatura portuguesa. E vivi 20 anos fora. Por tudo isto nada percebo destas polémicas literárias, trâmites que associava a um "Chiado" bem recuado, lido no liceu da vida - e nessa candura bem me surpreendera há poucos meses ao saber que o bom do António Cabrita, vindo de Maputo "a banhos", acabara rojado à calçada portuguesa em plena Av. de Roma ao procurar ele (no seu intrínseco civismo) apartar uma contenda entre poetas e críticos algo excêntricos aos escaparates. Bisonho episódio que me alertara para que nesta era de podcasts e tik toks ainda há, a sul do Trancão, quem se exalte em torno de livros... Mas tudo isso se me escapa, pois a última polémica livresca de que me lembro foi sobre este "A Tragédia da Rua das Flores", então confrontando-se os veementes avessos à publicação do calhamaço rascunho e os acalorados defensores da sua imprescindibilidade, tudo isso quando o meu pai teria mais ou menos a minha idade de agora... (e quem o lerá hoje em dia?).
 
Vem-me isto ao teclado diante do actual debate entre os autores, e respectivos amigos e adeptos, das duas recentes biografias de Pessoa, uma dita de pendor "académico", outras vocacionada para ser "popular". A surpresa para mim é tetra (que não tétrica...): 1) que os autores se zanguem em público, e de modo tão desabrido, tanto que até dá para demissões nos "jornais de referência"; 2) algumas das matérias que provocam dissenso - entre as quais avulta a relevante temática sobre se Pessoa frequentaria prostíbulos femininos, era dado aos "prazeres helénicos" ou teria morrido virgem. Isto para além de ser tópico de debate o tamanho do seu membro viril; 3) que tanta gente compre (e até mesmo leia) biografias, já 12 mil da "académica" e a "popular" para lá caminhará!... - mas isso é coisa do meu gosto, avesso que vou a tal molde, para o qual não tenho paciência; 4) o tamanho das tais muito compradas biografias, ao que consta cartapácios de 1200 páginas (a "académica") e quase 1000 (a "popular")! Tanto há para dizer... Enfim, nada tenho contra quem escreve, quem lê, nem mesmo contra quem discute o que escreveu ou leu. Apenas me surpreendo.
 
 
 

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