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Sei bem que os meus amigos e também os "amigos-FB" bem preferem quando aqui deixo nota das minhas elaborações gastronómicas, (des)ânimos futebolísticos, amores paternos ou até memórias austrais. E que se enfadam, no dedilhar do scroll down, quando me permito divagar sobre a realidade dos dias, aquilo que deles não é espuma mas sim o caroço. Ainda assim volto agora a atrever-me a incomodar os alheios: as notícias de hoje sobre o rescaldo das maldades, até satânicas, do clero luso são um verdadeiro descalabro, um horroroso escândalo. E sobre elas urge cercear a pesporrência da padralhada sobre as coisas do país. E cobrar muito caro aos políticos que diante dessa gente da batina se desdobram em mesuras.
(Fotografia de Richard Burbridge)
Sou ateu. Nem baptizado fui. E aqui confesso, envergonhado, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa, que nunca completei a leitura do Livro (o exemplar lá de casa é esta versão, em edição 20 ou 30 anos anterior). Em assim sendo não venho armado em exegeta. Venho quase nu, qual eremita vestido apenas de espanto.
Invadiu-me este devido à polémica que neste adro vai. Pois há quem critique os grandes gastos estatais, mesmo alguma pompa, com a visita do Santo Padre. Ao que respondem (bons?) católicos, ciosos, que essa presença papal promoverá a vinda de muitos romeiros e assim receitas gigantescas.
Este tipo de raciocínio vem aconselhado na Bíblia? Como argumentação própria dos (bons?) católicos? Não há dúvida, tenho de repegar no Livro, ser exaustivo, entendê-lo para afinal (v)os perceber. E desde "no princípio Deus criou os céus e a terra. Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. Disse Deus: "haja luz", e houve luz...". Isto a ver se essa luz me iluminará sobre taxas de aeroporto, câmbios, flixbus, airbnb & hostels, pizzas, glovo, hamburguers, lojas chinesas de recuerdos, uber vs bolt, ali todos agregados em torno do macro-altar, novo templo. Enfim, a doutrina, segundo estes (bons?) católicos.
Mais de 5 milhões de euros gastará a câmara municipal de Lisboa na construção de um palco destinado a umas jornadas católicas. Mas o tal altar-palco foi pensado como obra perene. Sobre estas construções religiosas a cargo do Estado já botei o que teria a dizer - noto agora, com assombro, que há já sete anos (!), a propósito da mesma câmara se dedicar à construção de uma mesquita. Resmunguei primeiro aqui e depois aqui (irado com uma atoarda de um director da revista "Visão"). Presumo que muitos dos apoiantes da tal mesquita se indignem agora com o Santo Palco. E, ao invés, que muitos dos apoiantes do novo altar se tenham indignado com o projecto da tal mesquita do Martim Moniz. Qu'isto vai quase tudo por cardápio.
A matéria de agora nem sequer é muito relevante. É pacífico dizer que o Papa é bem-vindo a Portugal e que a organização das tais jornadas é algo relevante e que é normal que autarquia e Estado se associem a uma realização de tamanha monta. Os custos do palanque são enormes mas a infra-estrutura é extraordinária e poderá vir a ser um equipamento importante para a cidade (ou ficará um "elefante branco", tratar-se-á de o saber dinamizar). Nada escandaloso num país da nossa dimensão que há pouco construiu 10 (dez) estádios para acolher um torneio de futebol... (vários deles logo tornados os tais "elefantes brancos"). Ou seja, a ocasião pode servir para uma construção marcante. A condição da aceitabilidade seria óbvia: após estas jornadas o "santo palco" torna-se um "grande palco", retiram-se os símbolos religiosos e fica um espaço cívico.
O atentado sofrido por Salman Rushdie, 33 anos depois da sua condenação à morte pelo ditador Khomeini - em cujo país a imprensa já louvou esta acção - convoca a que se reflicta sobre como se concebe esta teofilia constituída como fascismo islâmico, que se vem alastrando nas últimas décadas. Pois na Europa há uma tendência "compreensiva" do fenómeno, de facto desresponsabilizadora dos seus agentes. Esse rumo tem dois grandes dínamos: 1) o viés autopunitivo da civilização ocidental, dominante nas correntes "identitaristas" tendentes a interpretações "multiculturalistas" deste fenómeno político, nas quais se enfatiza a relevância das suas raízes "culturais" - como se estas assim fossem legítimas, qual uma segunda natureza. No fundo, esta é a actualização da "obsessão antiamericana", oriunda do conservadorismo oitocentista europeu, neste ambiente impulsionada pela sua refracção em Foucault - ele próprio arauto da teocracia iraniana -, um grande inspirador desta deriva "identitarista"; 2) o reforço do pensamento antiliberal, um estatismo sempre tendente a impor limites à liberdade de expressão e de consciência, demonstrado em particular no anseio de reverter o direito à blasfémia e da aceitação - em primeiro lugar para as minorias residentes - da censura à liberdade de apostasia.
No caso de Salman Rushdie foi notório que muitas reacções após a sua condenação, provocada pelo "Versículos Satânicos", denotaram a subalternização da adesão aos direitos de consciência, tanto na sociedade britânica e suas congéneres como até em agentes políticos. Pois, mesmo que tenha vigorado o espanto, até repugnado, diante da proclamação de Khomeini, esse foi acompanhado de críticas ao escritor: este, avesso ao governo britânico de então e à política externa americana - e que havia defendido a revolução teocrática iraniana -, foi ridicularizado por aceitar a protecção policial que o Estado lhe proporcionou, como se isso fosse paradoxal. E, ainda mais significante, foi evocada a sua ascendência islâmica como factor que algo lhe deslegitimava a liberdade criativa, evidente refracção da aversão à apostasia (individual ou colectiva). Mas para além desses dichotes na vox populi, britânica e não só, e cujo valor foi apenas denotativo, o certo é que na sociedade britânica e em algumas congéneres, os cleros, e seus próximos, se mobilizaram, não só na crítica ao escritor como - e nisso foi relevante o então arcebispo de Canterbury - reclamando a extensão e (re)activação das leis contra a blasfémia e concomitantes acções censórias.
Para muitos, crentes ou descrentes, a blasfémia pode surgir como antipática ou mesmo anacrónica. E alguns consideram os seus defensores - numa evidente manipulação retórica - de "fundamentalistas seculares", até como incapazes de perceberem a "complexidade" socio-religiosa contemporânea. Naquilo que é um paupérrimo pensamento, pois deixa entender uma "simplicidade" pretérita das conflitualidades político-religiosas - ainda por cima num continente com séculos de guerras religiosas internas à cristandade, e de difíceis coabitações com minorias judaicas e islâmicas. Mas o certo é que a possibilidade blasfema é (tal como o é a apostasia) uma componente fundamental da liberdade de consciência e de expressão, e foi uma verdadeira conquista histórica.
De facto, as reacções que apelam a uma restrição à iconoclastia dedicada ao Islão contêm um ignorante "culturalismo", que implica uma generalização empobrecedora do complexo islâmico e uma vitimização - infantilizadora - daqueles crentes, como se esses sejam incapazes de ultrapassarem traumas advindos dessa iconoclastia. Mas contêm também o propósito de se aproveitar a imposição desses limites face ao Islão para os estender à totalidade do âmbito da religião - bem como a outras áreas da vida social.
Ou seja, essa deriva censória não se restringe ao Islão. No âmbito da cristandade contemporânea é ainda célebre a violenta reacção da igreja anglicana e de outras congregações face ao filme "Life of Brian" dos Monty Python. E mesmo que hoje em dia essa posição pareça absolutamente patética - de um ridículo que foi imensamente glosado, tão patente no sempre recordado debate entre John Cleese e Michael Palin com o bispo de Southwark Mervyn Stockwood - em pleno final da década de 1970 essa acção eclesiástica teve efeitos censórios, e não só na Grã-Bretanha. E convém recordar a violenta reacção do Estado russo e da sua Igreja Ortodoxa no caso do grupo Pussy Riot, condenado (também) por sacrilégio. E em Portugal, neste nosso registo manso dos "brandos costumes", ficou célebre - e muito ridicularizada - a exaltada passeata capitaneada pelo então presidente da Câmara de Lisboa, Krus Abecassis, aquando da apresentação do "Je Vous Salue, Marie" de Godard. Tal como a patética investida do clero católico - nisso então apoiado pelo actual presidente da República, Rebelo de Sousa - contra a singela "Última Ceia" de Herman José, já em 1996.
Como tal, esta vertigem censória é ainda uma questão interna à sociedade portuguesa, bem como em muitas das suas aliadas europeias e americanas. E é notório que muitos países, incluindo europeus, mantêm leis contra a blasfémia e há ainda dezenas que as têm contra a apostasia. E - associável a essa situação - continua a existir uma globalizada discriminação, ainda que com plurais conteúdos, dos ateus - sem que nenhuma dessas situações (consagração do direito à blasfémia e à apostasia, eliminação de entraves sociais, políticos e jurídicos à consciência ateia) surja com veemência nas agendas internacionais, seja nas articulações multilaterais seja no âmbito das relações bilaterais.
Esta refutação do direito à blasfémia, imensamente cruzado com a "vitimização" de um aparente universo islâmico - evidente eco destes discursos "identitaristas" que tendem a encontrar "comunidades" "racializadas" (esse sonho agit-prop de marxismo de bolso, que quer transformar a "raça-em-si" em "raça-para-si") -, aliada à vontade de (re)instaurar mecanismos censórios e de induzir os autocensórios, foi patente após o sanguinário atentado à "Charlie Hebdo".
Em Portugal lembro o aplauso (as "partilhas") entre a intelectualidade de esquerda de um texto do célebre padre Leonardo Boff, apelando à instauração da censura - e explicitamente agregando a temática "islão" à cobertura noticiosa das eleições brasileiras, num atrapalhado texto que bem demonstrava o anseio de vetusto teólogo, e de todos os que o ecoaram, essa amplitude das dimensões que esta temática implica: a instauração de uma censura e de uma autocensura que sejam "protectoras" de determinados grupos sociais (e políticos)...
E notória foi também a reacção de Ana Gomes, encerrando-se em críticas às vítimas, numa evidente "justificação" do(s) ataque(s), devido(s) às ofensas sofridas, mesmo atribuindo-os à... austeridade. E o que é relevante é que esse somatório de dislates que Gomes veio proferindo - incapaz de entender as dimensões políticas e ideológicas da situação, a particular e sua envolvente -, demonstrando o seu alheamento ao valor da liberdade de expressão, não lhe causaram qualquer ónus social ou político. Pois acabou por se afirmar como candidata a presidente da república, numa candidatura emanada de um partido cujo fundador se afirmara um dia "republicano, laico e socialista" - sublinhe-se "laico", e perceba-se que "laicidade" (pessoal e estatal) é algo que Gomes, e tantos outros, incompreendem.
Esta relativização do terrorismo islamita, o reenvio das suas causas para os contextos europeus, deste modo a estes querendo moldar em função das acções assassinas da teofilia fascista, surge também na igreja católica. Disso exemplo são as declarações de Manuel Linda, o bispo do Porto, em 2020 aquando de um atentado islamista em França: "O atentado de ontem na catedral de Nice não é luta do Islão contra o Cristianismo: é o resultado dos preconceitos daqueles europeus que não só não fomentam o diálogo intercultural e inter-religioso como até estão sempre de dedo em riste a acusar as religiões."
Mas o conúbio dos agentes políticos portugueses com esta deriva censória é um traço continuado. Em 2005 a revista dinamarquesa Jyllands-Posten publicou caricaturas centradas em Maomé, as quais viriam a ser republicadas em vários jornais mundiais. (Em Moçambique foram reproduzidas no "Savana", o que originou manifestações de muçulmanos que recordei neste "Kok Nam no Dia das Caricaturas"). As reacções internacionais foram violentas, tendo até a Liga Árabe e a Organização da Conferência Islâmica exigido que a União Europeia introduzisse leis contra a blasfémia. E a posição do governo português foi esclarecedora: em texto do ministro dos Negócios Estrangeiros, o antigo democrata-cristão Freitas do Amaral, condenou a revista, remetendo-a para uma "licenciosidade" e convocando "limites" para a expressão pública.
Esta secundarização da liberdade de expressão na sociedade portuguesa, consumada na repulsa pela blasfémia, esta permissividade face aos desejos censórios (e, insisto, autocensórios), é evidente. E é-o também na actual hierarquia das problemáticas levantadas, nos debates que emergem. E exemplifico tal situação recorrendo ao cerne do sistema jurídico português, o Tribunal Constitucional: o ano passado houve uma polémica sobre o novo presidente desse Tribunal, João Caupers, que muitos clamaram ser desadequado para as funções. O sobressalto, público e partidário, fora causado pela recuperação de um texto seu em jornal universitário, com mais de uma década, avesso ao casamento homossexual. Este ano foi também polémica a indicação de um novo membro desse Tribunal, Almeida Costa, num outro sobressalto colectivo, agora originado pelas suas posições antiaborto, expressas há mais de três décadas.
Ou seja, há - e ainda bem que o há - na sociedade e no espectro partidário uma vontade de escrutinar as opiniões tidas, mesmo que já muito recuadas, daqueles que concorrem ou ascendem a esse importante órgão de soberania. Mas recordo que há dois anos houve outro candidato a esse Tribunal, Vitalino Canas, um antigo governante socialista. Este, em 2006 aquando da discussão parlamentar de um voto sobre os acontecimentos internacionais provocados pela publicação das caricaturas dinamarquesas, considerou: "estão bem uns para os outros, os caricaturistas irresponsáveis e os fundamentalistas violentos". E uma proclamação destas, feita na Assembleia da República na condição de deputado eleito - e não em mero textos de opinião como nos exemplos congéneres que acima refiro - passou completamente ao lado de qualquer escrutínio às suas opiniões enquanto candidato ao Tribunal Constitucional.
E este é um exemplo sumamente demonstrativo das hierarquias políticas vigentes no país. No qual um esconso ditirambo contra o propalado "lóbi gay" faz levantar hostes, um vetusto e particular dislate sobre o aborto faz tremer de ira. E uma proclamação destas, um tamanho distanciamento à liberdade de expressão, proferida em pleno parlamento, é acolhida e "amnésiada" como irrelevante. E isto diz imenso sobre o ambiente político, e não só partidário, que o país vive.
Ontem, ao ver a fotografia de Rushdie - que me eximo de aqui reproduzir -, deitado no palco após o ataque sofrido, rodeado por aqueles que acorreram a acudir-lhe, comovi-me e de tudo isto me lembrei. Porque, contrariamente ao antigo deputado socialista, continuo a acreditar que o escritor Salman Rushdie e o criminoso Hadi Matar não "estão bem um para o outro".
E continuo a concordar, porque democrata, com o anterior vice-primeiro-ministro britânico Nick Clegg, que após o ataque à "Charlie Hebdo", veemente, lucida e enfaticamente clamou que "we have no right not to be offended" (e bem que se justifica ouvir estes dois minutos, aos quais aqui deixo ligação...). E isso é a democracia - a qual vale bem mais do que um qualquer incómodo sofrido. E são estes defensores da censura os seus inimigos internos.
O Presidente da República decidiu intervir, isentando a priori o cardeal de Lisboa (e o seu antecessor) de qualquer responsabilidade na ocultação de crimes de pedofilia e, por inerência, na preservação de pedófilo(s) em funções - e fê-lo numa conferência de imprensa decorrida a propósito da visita de um Chefe de Estado estrangeiro (!), assim sublinhando o desatino desta atitude de Rebelo de Sousa.
É consabida a incontinência verbal do presidente, o seu afã de sobre quase tudo pontificar - um desvio atitudinal que o leva a extremos tais que é possível vê-lo, até, a comentar jogos de futebol no cenário das entrevistas imediatas (flash) em pleno campo de jogos. Será legado psicológico das décadas de comentariado televisivo que o conduziram a Belém. Há quem aprecie, nisso veja uma salutar aproximação da instituição com o eleitorado, há quem veja nessa encenação de familiaridade uma depreciação da instituição.
Mas, independentemente do que se possa pensar desta pose presidencial, não é aceitável que o PR intervenha numa gravíssima situação destas, deixando a sua presunção (pois nada mais é do que isso) desresponsabilizadora. A igreja católica enfrenta um problema gravíssimo, de âmbito mundial. Os seus efeitos institucionais chegaram agora a Portugal. Vive, e desde há séculos, sob uma cultura institucional que (pelo menos) induz a sexualidade pedófila, hetero e homossexual. Algo que, é evidente, deriva do seu molde organizativo - o qual nem sequer assenta em dogmas fundamentais mas em opções estratégicas de cariz económico (para quem tenha interesse deixo este célebre The Development of the Family and Marriage in Europe do antropólogo Jack Goody, que explicita o desenvolvimento histórico do celibato eclesiástico).
Diante do que se passa, da generalizada (auto)consciencialização dos contextos católicos - e da sua instituição religiosa matriz - da horrível chaga que vêm acoitando, não me parece que seja admirável recuperar um anticlericalismo "iluminista" setecentista nem o exaltado "mata-fradismo" tão vigente até à nossa I República. Poderemos, crentes e incréus, aceitar a religião que nos é estruturante (mas não mandante) e a sua instituição fundamental. E nisso exigir, mas com esta última ombreando, o seu expurgar das horríveis práticas que os seus oficiais vêm cometendo. Ou seja, deverá a sociedade portuguesa - tal como tantas outras - exigir a responsabilização e combater silêncios e os biombos que a pesada instituição clerical veio procurando manter nestas últimas décadas. Como têm sido noticiados em tantos outros países. Ora nenhuma destas posições, justas, "humanistas" (no sentido de humanitárias e também no de vivificadas pelo respeito aos saberes antigos), ecuménicas no respeito às religiões, se acolhem sob esta intempestiva intervenção do presidente. Apenas um apressado, destravado até, acto de conivência com as autoridades clericais - e é importante recordar que noutros países várias autoridades eclesiáticas, até cardinalícias, foram apontadas pelo acto de denegação sem que tivessem sido alvo de defesa apriorística por parte das autoridades políticas democráticas. Ou seja, Rebelo de Sousa, nas suas funções de presidente, opta por defender - aprioristicamente, repito - não só os cardeais. Pois nisso, também, procura socorrer a igreja católica, desvalorizando à partida a hipótese das suas responsabilidades, minimizando as teias de silêncio a que esta recorre(u).
Esta inaceitável atitude do presidente não advém do seu catolicismo. Mas da sua concepção política. Sobre esta insisto naquilo que já escrevi: Rebelo de Sousa tem o projecto mais conservador ("reaccionário", para utilizar o velho termo) que este regime já acolheu. Por um lado, e num verdadeiro mimetismo do Estado Novo tardio, encena uma pose política que intenta a efectiva despolitização da sociedade - um populismo "lite", que invoca já não um pater familias até autoritário mas sim um "magister familias", o Professor afável - num rumo que é, verdadeiramente, antidemocrático ainda que nada ditatorial.
E por outro lado - e sem que isso tenha convocado reacções na sociedade, seja no espectro partidário, atrapalhado com outras circunstâncias, nem na intelectualidade ou na vasta sub-intelectualidade estabelecida no comentariado nacional -, Rebelo de Sousa investiu contra a laicidade do Estado, que é característica do nosso regime. Fê-lo, sem qualquer rebuço, desde o início do seu mandato - recordo que no dia do seu primeiro empossamento se deslocou a um templo lisboeta para se reunir com uma série de autoridades clericais de várias congregações religiosas, assim assumindo-as explicitamente como interlocutoras políticas. O que é um traço do secularismo estatal mas não é, bem pelo contrário, uma característica dos regimes laicos. E nesse viés anunciado colheu total silêncio por parte das elites partidárias, dos intelectuais e dos sub-intelectuais radiotelevisivos.
Enfim, agora surge com estas declarações sob assunto tão gravoso. As quais não lhe eram requeridas, bem pelo contrário. Poderiam ser "inaceitáveis" se efectivamente o fossem, se não estivesse a sociedade obnubilada pelo "Marcelo", tudo lhe aceitando. E assim serão consideradas apenas como mais um episódio do afável e gentil "Marcelo", justificadas (apolitizadas, entenda-se) pelo seu "catolicismo" e pela "amizade" pessoal que vota aos cardeais.
E não haverá muito mais a dizer, tudo isto segue politicamente impune. E até moralmente impune. Sobre o assunto - de facto é mesmo (também) sobre esta matéria - recordo um postal que escrevi em 27.09.2018, encimado pela mesma fotografia. Porque disse tudo o que tinha a dizer...
Marcelo Rebelo de Sousa diz que não saudou o presidente americano por respeito à posição portuguesa sobre o multilateralismo ( 25.9.2028 ). Ou seja, explicita que as suas formas de saudação denotam a posição do país, dado que ele é Presidente da República. Muito bem. E a posição portuguesa, do Estado e da sociedade, sobre a laicidade, essa conquista da democracia? Pode o Presidente da República, nessa condição, saudar o Papa neste gesto de "islão", de submissão expressa no beijo ao anel? Não. A "direita" portuguesa, mais ou menos católica, (pelo menos disto) gosta. A "esquerda" portuguesa, entre os descendentes da capela do Rato e a igreja PCP, encolhe os ombros. Está-lhe grata, pela protecção ao governo na cena dos fogos, pela protecção ao regime na cena da substituição da Procuradora-Geral da República - e é estruturalmente avessa à laicidade [Nem a compreendem, ignorantes seguem confundindo-a com um secularismo de tempero multicultural] (...) E os "tudólogos"? Falam do resto ...
A cada idólatra as suas idolatrias, terá de dizer qualquer idólatra da razão, se minimamente nesta mesmo crente e assim dela obrigatoriamente algo desiludido. E nisso fenece o espanto, substituído por um morno sorriso de tépida ironia, face a este envio da estátuta da virgem Maria para a Ucrânia, como se que a querer fazer do que lá se passa uma qualquer cruzada (mariana) ou mesmo um qualquer esclarecimento, empiricamente fundamentado, de um dos tais cele(b)rados segredos de Fátima. E face à (tão humana) pantomina nem me acorre, ateu que sigo, invocar alguma inadmissibilidade da guerra que tenha sido proferida em papado mais recente, pois argumento que decerto será apupado por exegetas mais belicosos e mais atreitos a exemplos da longa história dos santos padres...
Ou seja, nesta proto-vetusta idade já não sigo furibundo iconoclasta, encolho os ombros às patuscas leviandades alheias, ainda que sabendo-as nada despiciendas, de poluentes que são. Mas não será isso que funda uma neutralidade face às crendices. Pois que se envie, com tonitruante eco, este ídolo para afrontar o demo russo muito significa do pateta estado de alguma lusa pátria. Mas não do Estado pátrio.
Mas sobre este, e das idolatrias que promove, isso já será outro assunto e bem mais grave. Pois que o Estado suspenda o ónus sobre a idolatria nazi e a panóplia de crimes e abominações intelectuais que lhe são concomitantes, e nisso de facto envie à Ucrânia - qual simbólica escolta da estatueta - o líder dos nada patuscos nazis portugueses, demonstra um estado do Estado totalmente inadmissível.
E sendo inadmissível é necessário a ele obstar. Ou seja, identificar o juiz que isto promoveu. E retirar-lhe responsabilidades. Sem qualquer hesitação. Pois é ele um idólatra abjecto.
Sou ateu desde o berço - literalmente falando, pois o meu pai proibiu que me baptizassem. Disso não faço proselitismo (nem junto da minha filha o fiz, quanto mais com outros). Nem uma dessas estapafúrdias "identidades" com que os neo-commies querem animar as barricadas. Disso faço, e é muito, razão.
Dito isto, raras vezes me comovi tanto como quando, aos 24 anos, visitei o Tintoretto na Scuola Grande di San Rocco. Até às lágrimas, confesso envergonhado (homem que é homem não chora, muito menos diante de umas pinturas velhas). Certo, o ambiente soturno e, acima de tudo, a fome endémica de quem está em inter-rail terão ajudado a tal desvergonha. Ou seja, se dúvidas tivesse desvanecia-as ali: sou um cristão. Cultural.
Por isso percebo perfeitamente o que o desajeitado dr. Rui Rio quis dizer ontem, naquela disparatada declaração "sou católico, não praticante, não crente", ao querer remeter a sua posição para um conjunto de princípios "civilizacionais". Mas é um erro crasso, uma ignorância tétrica (ainda para mais num homem daquela idade). Para além de ser uma patética, de desesperada, piscadela de olho ao Portugal mariano. Pois os incréus (como eu, como ele) não são católicos. E há até quem defenda que os não praticantes não são católicos - mas essa será uma posição algo radical, que a igreja trata de modo algo abrangente.
Enfim, lembremo-nos de algumas gaffes de políticos: a (injusta) de Guterres com as contas da inflacção (ou do défice); a de Santana com os violinos de Chopin; a de Cavaco com Mann por Morus; a de Costa com vírus e bactérias. Etc. Podemos brincar com elas (com a de Guterres é imoral, dado o terrível momento que vivia). Mas não eram denotativas de algo particular, mas apenas uma distracção ou uma ignorância sectorial. Mas esta de Rio é bem diferente, denota uma irreflexão estrutural, sobre si mesmo e sobre a sua sociedade. E o seu Estado, ancorado numa laicidade.
Leio algumas pessoas (que não conheço) a defenderem as actuações de Rio nos debates, dizendo-o alvo de desinterpretações, de malévolas manipulações. Anunciando-o, até, como político superior a estes diálogos curtos. Estão enganados, e estas declarações mostram-no bem. É um trapalhão, cheio de si - condição que apela à irreflexão. O que nada augura de bom vendo-o como responsável político. Diz este ateu, cristão cultural, daquele ateu que se quer católico. (E não, isto não é uma mera questão de palavras).
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