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Nenhures

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Na morte de Prigozhin fico inconsolável. Não tanto pelo desastre que o vitimou, e aos seus mais relevantes lugares-tenentes, cujas causas desconheço. E, num plano mais particular, não o estou por continuar a incompreender o que se passa na cabeça dos seus concordantes lusos, meus vizinhos, esses que lhe foram atribuindo razão - uma razão histórica, que seja - como este ramalhete encabeçado por Boaventura Sousa Santos, esse já patético decano (pós-)enverhoxhista que continua a clamar que a responsabilidade desta guerra de ano e meio é dos norte-americanos. Ou os seus inversos soberanistas, afinal farinha da mesma palha, esses crentes na "nação" impoluta, que abominam a democracia liberal e nisso encontram virtudes (para mim insondáveis) na demanda russa do seu ratzeliano (e hitleriano) "espaço vital", como dizia a actual coordenadora do BE Mortágua, então comentadora política a tempo parcial.

Sigo inconsolável pois não encontro o meu "O Príncipe" de Maquiavel - legado avoengo, assim uma perda irreparável desta edição de 1945, enriquecida pelos comentários ao texto em tempos feitos por Bonaparte. Já basto usado, lombada desgastada, páginas oscilantes, amarelecidas. E uma preciosa colectânea de sublinhados, apostos pelos sucessivos donos Flávio, António José e este José Flávio. Que lhe terá acontecido, em que andanças terei perdido o querido livro? - e recordo até que há anos alguns ex-alunos me confidenciaram, risonhos, ter eu ganho entre algumas turmas a alcunha de "Maquiavel", decerto que pelo empenho veemente com que perorava sobre o autor, pois nunca fui de tratar maquiavelicamente alunos, colegas ou outrem...

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Pois caído o avião que transportava o "cabo de guerra" russo, logo avancei para as estantes, em busca da literatura necessária para compreender o acontecido. Muito mais o Tácito de "Anais" e "Histórias" do que Suetónio. E, claro, Maquiavel, esse do qual agora me resta apenas esta selecta, publicada em 1890 mas com poucos excertos da obra magna, o evidente "O Príncipe". E lá estão os nacos que procurava, para me aconselhar nesta queda mercenária, sobre o exercício do poder e sobre a privatização da guerra, como agora se chama. Para os partilhar abdico do francês doméstico e acorro aos fundos digitais, os gratuitos pdfs disponíveis, traduções brasileiras talvez menos apetecíveis aos nossos olhos. Mas suficientes. Aqui deixo os excertos sobre Prigozhin, esse que há tão pouco cruzara o Rubicão...

"Quando seja louvável em um príncipe o manter a fé (da palavra dada) e viver com integridade, e não com astúcia, todos compreendem; contudo, vê-se nos nossos tempos, pela experiência, alguns príncipes terem realizado grandes coisas a despeito de terem tido em pouca conta a fé da palavra dada, sabendo pela astúcia transtornar a inteligência dos homens; no final, conseguiram superar aqueles que se firmaram sobre a lealdade. Deveis saber, então, que existem dois modos de combater: um com as leis, o outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo, dos animais; mas, como o primeiro modo muitas vezes não é suficiente, convém recorrer ao segundo. Portanto, a um príncipe torna-se necessário saber bem empregar o animal e o homem. Esta matéria, aliás, foi ensinada aos príncipes, veladamente, pelos antigos escritores, os quais descrevem como Aquiles e muitos outros príncipes antigos foram confiados à educação do centauro Quiron. Isso não quer dizer outra coisa, o ter por preceptor um ser meio animal e meio homem, senão que um príncipe precisa saber usar uma e outra dessas naturezas: uma sem a outra não é durável.

Necessitando um príncipe, pois, saber bem empregar o animal, deve deste tomar como modelos a raposa e o leão, eis que este não se defende dos laços e aquela não tem defesa contra os lobos. É preciso, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Aqueles que agem apenas como o leão, não conhecem a sua arte. Logo, um senhor prudente não pode nem deve guardar sua palavra, quando isso seja prejudicial aos seus interesses e quando desapareceram as causas que o levaram a empenhá-la. Se todos os homens fossem bons, este preceito seria mau; mas, porque são maus e não observariam a sua fé a teu respeito, não há razão para que a cumpras para com eles. Jamais faltaram a um príncipe razões legítimas para justificar a sua quebra da palavra. Disto poder-se-ia dar inúmeros exemplos modernos, mostrar quantas pazes e quantas promessas foram tornadas írritas e vãs pela infidelidade dos príncipes; e aquele que, com mais perfeição, soube agir como a raposa, saiu-se melhor. Mas é necessário saber bem disfarçar esta qualidade e ser grande simulador e dissimulador: tão simples são os homens e de tal forma cedem às necessidades presentes, que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar." (cap. XVIII; "De que modo os príncipes devem manter a fé na palavra dada")

"Dissemos acima como é necessário a um príncipe ter bons fundamentos; do contrário, necessariamente, cairá em ruína. Os principais fundamentos que os Estados têm, tanto os novos como os velhos ou os mistos, são as boas leis e as boas armas. E, como não pode haver boas leis onde não existam boas armas e onde existam boas armas convém que haja boas leis, deixarei de falar das leis e me reportarei apenas às armas. Digo, pois, que as armas com as quais um príncipe defende o seu Estado, ou são suas próprias ou são mercenárias, ou auxiliares ou mistas. As mercenárias e as auxiliares são inúteis e perigosas e, se alguém tem o seu Estado apoiado nas tropas mercenárias, jamais estará firme e seguro, porque elas são desunidas, ambiciosas, indisciplinadas, infiéis; galhardas entre os amigos, vis entre os inimigos; não têm temor a Deus e não têm fé nos homens, e tanto se adia a ruína, quanto se transfere o assalto; na paz se é espoliado por elas, na guerra, pelos inimigos. A razão disto é que elas não têm outro amor nem outra razão que as mantenha em campo, a não ser um pouco de soldo, o qual não é suficiente para fazer com que queiram morrer por ti. Querem muito ser teus soldados enquanto não estás em guerra, mas, quando esta surge, querem fugir ou ir embora." (cap. XII: "De quantas espécies são as milicias, e dos soldados mercenários")

E agora vou ler Tácito. Um bom dia para os aqui visitantes.

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Há cerca de 15 meses, uns tempos após a invasão russa da Ucrânia foi anunciada uma manifestação em Lisboa, julgo que junto à sede do PCP, contestando posições explicitamente pró-russas que esse partido assumiu. Os promotores integravam imigrantes e recém-chegados refugiados ucranianos. Então eu escrevia num blog colectivo dedicado ao desporto sportinguista. Um dos co-bloguistas, um tipo com simpatia (e porventura militância) pelo PCP, escreveu no seu recanto pessoal refutando o direito dos estrangeiros se manifestarem contra os portugueses "que pagam os impostos". Indignado com aquela imundície fasciszante, que em muito ultrapassava  uma diversidade de interpretações sobre questões de política internacional, saí do blog comum, ainda que este excêntrico à temática pois monopolizado pelas coisas do futebol. Fi-lo pois sigo subordinado a um fundamental princípio, omnipresente ainda que apenas ocasionalmente de necessária invocação: o de que "não vou à bola com estes gajos". Um dito que neste caso tinha sentido literal! Alguns sportinguistas leitores contactaram-me, dizendo-me "exaltado", "exagerado", naquilo do "não havia necessidade".

Passaram os tais 15 meses. Nos discursos difundidos pelos líderes de Moscovo foi-se invisibilizando a inicial justificação para a acção militar - que os seus líderes julgaram que seria célere: a de enfrentarem um poder ucraniano "drogado" e "nazi", ilegítimo pois emanado de um "golpe". Primeiro sendo esquecido o item relativo aos psicotrópicos, este um tópico já antigo, herdado do propagandear desde o ocaso soviético da degenerescência "ocidental", dada ao hedonismo drogado - as pessoas que queriam passar para o lado ocidental faziam-no pelo anseio de terem acesso às drogas, era argumento de então, assumido por vários "quadros intelectuais" do PCP - e agora também à "homossexualidade", esta uma inovação invectivadora do mesmo teor sob a matriz discursiva de Putin.

E depois, de modo mais gradual, foi-se subalternizando a redução das particularidades políticas ucranianas ao seu nazismo - esta que fora uma evidente mobilização do nacionalismo russo, exponenciado na II Guerra Mundial, e às históricas tensões naquele terra, potenciadas já sob o sovietismo. E nisso vem ficando como legitimação da guerra o ser a Ucrânia um títere do expansionismo belicoso norte-americano e da UE, cujo apoio a Kiev é considerado a causa da guerra.

Após os tais 15 meses, de uma guerra terrível e de inúmeras ameaças russas de utilização de armas atómicas, e nas vésperas das recentes confrontações internas entre os próceres de Moscovo - e só por si é inenarrável a adesão de políticos portugueses a um regime que inclui um "warlord" como o é o chefe da empresa Wagner -, a inominável líder parlamentar do PCP vem invectivar a presidente do  Parlamento Europeu, continuando a perfilhar os tópicos discursivos do regime imperialista de Moscovo: o nazismo de Kiev, a responsabilização da UE (só não  refere a "droga").

Não haja qualquer dúvida, não sou eu o "exaltado". Pois não dá mesmo para "ir à bola com este tipo" de gente. Nem numa mera e pacífica geringonça bloguística, quanto mais em coligações políticas. Tamanho o asco que provocam estes malandros.

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Uma amiga informa-me que a recente missão do Vaticano à Ucrânia, anunciada como de contactos preparatórios para uma futura mediação pacificadora, é encabeçada por Matteo Zuppi. Surpreendo-me (e também ela). Vou ver e ainda torno a surpreender-me, agora ao invés. Afinal Zuppi, actual arcebispo de Bolonha e presidente da Conferência Episcopal Italiana, ainda nem 70 anos tem, contrariamente ao que imaginava eu. Era assim ainda um jovem - particularmente se pensarmos em termos das hierarquias católicas - quando foi durante anos mediador nas negociações de paz entre Frelimo e Renamo. E pode-se dizer que "sabe da poda". Que o seu Deus o proteja e lhe dê sucessos nesta missão.

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Na semana em que se cumpre um ano sobre a invasão russa da Ucrânia e na qual Putin discursa, ilegitimando este país e responsabilizando o "Ocidente" pela guerra em curso, dado  que "Tentaram arrancar as terras históricas da Rússia, o que é agora chamada de Ucrânia", enquanto brande a ameaça de utilizar armamento atómico, uma amiga - conhecida em Maputo - prefere enviar-me a ligação a uma "carta aberta ao presidente da República" emitida pela cidadã Sófia Smirnov (pelo nome presumo ser de ascendência russa ou de dupla nacionalidade). Na qual - tal como o PCP também faz - se insurge contra a condecoração atribuída ao presidente ucraniano, que vitupera como governante corrupto, agente de inúmeros crimes de guerra, cúmplice de militantes nazis, cabecilha de um Estado ditatorial e promotor de actividades criminosas.

 

 

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Foi Flávio (belo nome) Arriano que nos legou os dizeres do seu mestre, o estóico Epicteto - pois este nada terá sido dado aos afazeres da escrita (académica, ainda não se dizia naquela época). Entre esses a crua constatação de que "Não são as próprias coisas, mas as opiniões acerca das coisas o que atormenta os homens", tão impressiva que, 17 séculos depois, Sterne a elevou a epígrafe quando decidiu inventar o romance, ou quase... Cada um interpretará como assim o quiser mas fico-me eu a pensar que o antepassado militava na inquietude intelectual, a da crença de que tudo isto que nos ocorre na vida seria - se bem pensado - algo harmónico, por isso previsível pois compreensível e assim até justo. Disso retirando uma enérgica, como se heróica, placidez - o tal estoicismo - face ao fado, próprio e alheio, fazendo por controlar o controlável e resignada diante do imenso incontrolável. E que nessa inteligência, apesar de tamanhas agruras e amarguras que sempre brotam, o insuportável não é o destino mas sim o desatino, não a dor inadiável e inultrapassável mas sim as meras atoardas que os vizinhos vão perorando.

Lembro-me agora disso, um ano já que vai passando de guerra na Ucrânia. Do sobressalto (também cívico) que se sofreu. E muito das tais atoardas que atormentam, travestidas de pensamento "livre" e "alternativo", tão bastantes então foram elas. Um pouco das austrais - que me são (e sempre serão, sei-o) também vizinhas: na Ilha de Moçambique o escritor Agualusa logo se aprestou a namorar o belo mercado da esquerda brasileira regurgitando a propaganda russa na imprensa daquele país, ao nela clamar o nazismo dos ucranianos. Entretanto, um pouco mais a Sul inúmeros intelectuais erguiam-se contra os "ocidentais" (entenda-se, brancos), pois viciosos no nosso racismo por nos preocuparmos com uma guerra na Europa enquanto nos calamos com as desgraças africanas - curiosas argumentações, irritei-me eu, vindas de opinadores que desde há décadas praticam, por exemplo, um sepulcral silêncio sobre os milhões de sepulcros congoleses, ali quase vizinhos, e que mesmo haviam sofrido tão recentes anos de pasmo mudo face à "insurgência" no Norte do próprio país.

 

 

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