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Nenhures

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05
Abr17

Torna-viagem

jpt

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(O Pedro Correia convidou-me para colocar um texto no Delito de Opinião. Enviei este “torna-viagem”)

Um tipo emigra. Fica nisso duas décadas, imigrado já adulto, envelhecendo, e assim se apresta aos cinquentas. Nesse entretanto rodeia-se, reconfigura-se. Mudam-se-lhe interesses e modos. Condizentes com o local onde se aboletou, com toda a certeza. A mim, lá no sul que me acolheu, tornaram-se uns mais rudes e os outros mais profundos. Para estes despertado muito pelos (muito) amigos construídos nesse caminho, gente de biografias densas e rugosas, de atenções múltiplas, a fazerem um ambiente bem mais intenso do que o salão luso, o “Terreiro do Paço” de Minho ao Algarve, mais ainda os promontórios lisboetas e afins, onde tudo parece, se visto lá de longe, algo coreografado.

Nessas décadas ali, se entre os nossos, patrícios, sempre foi comum o lamento, até lamúria, com a perspectiva do regresso à (cada vez menos) casa. Se por lá se anunciava e praticava o convívio fácil, desinibido, a entreajuda, o “amigo de amigo…”, mesmo que quantas vezes desiludindo, a cada um que tinha de regressar ao país, ou mesmo a cada visita de férias, se somavam as conversas sobre o gelo português, a solidão da vida que aqui ocorre. O anúncio, temor, que na “pátria”, por mais “amada” que seja, o ombrear escasseia. Os que iam voltando, os que já haviam voltado e depois revoltado, deixa(va)m sempre o aviso: em Portugal nada e ninguém é como lá fora. Pois, por poucos anos que tenham passado, aquando do retorno os amigos de ontem afinal desaparecem neste hoje d’agora, quanto muito uns jantares na chegada, quais comités de recepção, e depois o silêncio. Nem tecer nem cerzir comunhões. Pois a vida não o permite, vão as pessoas amargas com as crises – essa afinal singular, única, pois há pelo menos quinze anos que sempre gemida, em uníssono e contínuo, pelos residentes.

Quem volta(va) às pequenas cidades logo surgia queixando-se do vazio, da modorra, das polémicas e entusiasmos/irritações por coisas nada, em país de tantas facilidades. Os caídos em Coimbra logo azedos com aquele nicho de homo academicus provinciano, castrador. Os aportados ao Porto notando ainda assim mais cálidos os de lá, mas resmungando o quão estratificada é a cidade, nisso fechada a quem ali se quer acolher, coisas decerto do velho burgo de burgueses. E sobre Lisboa nem falar, cidade de gente ácida, desabrida, pois já urbe. E toda ela julgando-se sem tempo para si e para os outros, lesta a desamigar-se dos velhos amigos, inepta para os novos, devido ao trânsito, aos arrabaldes e condomínios, às distâncias que também são estatutos, importâncias. E impaciências. Ou também, sempre eu o disse, à malvada idade. Com tudo isso quando ainda por lá cada antevisão do regresso vinha com arrepio.

Depois calhou-me a mim assumir-me o atemorizado “torna-viagem”. Caído nesta mesma capital, agreste e superficial. E desarvorado de utilidade, daquela a que me habituara, até pressuroso em brandi-la, pois aqui vou sem o manancial de informações a partilhar, de conhecimentos peculiares para difundir ou contactos para recomendar, que algo me abrilhantavam no convívio de Maputo e arredores. Nem emprego para brandir nem a mesa farta, e até burilada, que me havia acompanhado. E, talvez pior ainda, carregando agora uma bolsa muito leve. Assim um “torna-viagem” basso, deshumorado, verve trôpega. Os meses foram passando, até os anos já, impávido o tempo. Mas os amigos, antigos, alguns até nisso imenso, outros novos, sempre aparecem, desafiam, almoçam, adoecem, discutem, curam-se, jantam, aguentam, lêem, riem-se, morrem, propõem, bebem, preocupam-se, preocupam-me. Vivem-me, vivo-os.

Afinal era mentira, aquela ladainha entoada lá longe, a da solidão que aqui nos esperaria. Cantávamo-la como exorcismo. Das saudades. Deste ombreio. Este aqui viçoso. Que saibam disto os que lá estão longe.

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